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Vídeo engana ao dizer que há embasamento legal para convocar novas eleições após relatório do PL

Vereador de Bauru afirma que artigo 224 do Código Eleitoral pode ser usado para convocar novas eleições, e que artigo 142 da Constituição pode ser usado se TSE se negar a cumprir a lei; isso não procede, segundo especialistas em direito

Por Clarissa Pacheco
Atualização:

Um vídeo no Instagram engana ao afirmar que o relatório do PL que pede invalidação dos resultados das urnas eletrônicas pode embasar a convocação de uma nova data para eleições. O Código Eleitoral brasileiro determina que novas eleições devem ser convocadas se mais da metade dos votos do País forem considerados nulos. No entanto, o relatório entregue na última terça-feira, 22, não prova fraude. Portanto, não provocaria a aplicação do artigo 224 do Código, que prevê a convocação de novas eleições em até 40 dias.

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O argumento consta em um comentário feito por um vereador de Bauru (SP) na Jovem Pan News de Bauru na última quarta-feira, 23. Um trecho da fala 25 mil visualizações e mais de 6 mil curtidas em 24 horas no Instagram. Os comentários mostram que internautas entenderam que o Código Eleitoral está sendo descumprido, o que não é verdade.

Segundo especialistas em direito eleitoral e constitucional ouvidos pelo Estadão Verifica, o relatório do PL não prova fraude. Para que os votos de um candidato sejam anulados, é preciso uma prova cabal de que isso tenha ocorrido, o que não é o caso. O comentário também engana ao citar outro dispositivo, o artigo 142 da Constituição Federal, para sugerir que cabe às Forças Armadas tomar providências para garantia da lei e da ordem, caso o TSE resolva descumprir o dispositivo legal. Isso também não é verdade: o artigo 142 não admite intervenção militar.

 Foto: Estadão

O comentário foi feito mais de uma vez em transmissões do dia 23 pela emissora de TV em Bauru. O autor da fala é o vereador Eduardo Borgo (PMB), que também é advogado. Durante o comentário, ele diz que a base jurídica para a convocação de uma nova eleição está no artigo 224 do Código Eleitoral. O artigo determina que, se mais da metade dos votos do País forem considerados nulos na eleição presidencial, as demais votações serão prejudicadas e o Tribunal -- nesse caso, o TSE -- terá que marcar uma nova eleição num prazo de 20 a 40 dias.

O PL, contudo, não diz no relatório que os votos são nulos, e sim que 59,2% das urnas usadas no segundo turno são de modelos anteriores a 2020 e apresentaram uma falha que impediu que elas tivessem números de série individuais. Para o partido, os votos dessas urnas não podem ser considerados porque as urnas não podem ser identificadas, enquanto aqueles depositados no restante das urnas, de modelo UE 2020, dariam uma vitória a Bolsonaro com 51,05% dos votos válidos no segundo turno. O Verifica já mostrou que o argumento não se sustenta, já que há mais de uma forma de identificação das urnas eletrônicas.

O ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, rejeitou a ação do PL na última quarta, 23, e determinou o pagamento de multa no valor de R$ 22,9 milhões por "litigância de má-fé". Antes, no mesmo dia da entrega do relatório, Moraes já havia dito que o PL deveria incluir o 1º turno das eleições na contestação, sob risco de a ação ser rejeitada.

Procurado pelo Verifica, o vereador Eduardo Borgo disse em nota que o relatório do PL é suficiente para que seja deferido um pedido de verificação extraordinária com base no artigo 51 da Resolução n° 23.673/2021, do próprio TSE. "Sendo confirmado o conteúdo do relatório dos três peritos formados no ITA, em consonância com o Relatório produzido pelas Forças Armadas, após a ampla defesa e o contraditório, os votos deverão ser anulados", diz Borgo.

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Ele afirma que, apesar de ação ter sido rejeitada pelo ministro Alexandre de Moraes, ainda cabe recurso, já que a decisão foi monocrática, e que isso não prejudica a instauração de um inquérito policial por crime militar. Isso porque o vereador disse pretender entrar com uma representação junto ao Procurador Geral da Justiça Militar até a próxima segunda-feira, 28, com base em uma entrevista concedida ao Estadão pelo ex-presidente do TSE, ministro Edson Fachin, em fevereiro deste ano.

Na ocasião, Fachin disse que a Justiça Eleitoral já poderia estar sob ataque de hackers, não apenas de atividades criminosas, mas de países como a Rússia. O vereador entrará com a representação sob o argumento de que um "possível ataque à soberania representa perigo à segurança externa do País".

Anulação dos votos exige prova cabal de fraude

Para a advogada Carolina Cyrillo, professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contudo, o argumento do PL não é suficiente para determinar que os votos são considerados nulos. "Teria que ter uma prova cabal de que os votos foram fraude. Por exemplo, quando se constata, através de provas, que o candidato que venceu a eleição comprou votos, portanto cometeu um crime eleitoral. Então, nesse caso, sim, incide aquele artigo do Código Eleitoral. O relatório apontando que, quem sabe, talvez, as urnas não pudessem ser auditadas não é prova cabal de uma fraude eleitoral. Uma fraude eleitoral precisa de algo mais grave, não uma mera suposição", aponta.

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Ela observa ainda que, neste caso, se fosse verdadeira a existência de fraude, teriam que ser anuladas todas as eleições, inclusive o 1º turno, para deputados, senadores e todos os 27 governadores, já que as urnas foram usadas nos dois turnos, e não apenas no segundo. "Eles falam em relação às urnas e o que querem é anulação de todos os votos naquelas urnas, portanto eles não comprovam que teve fraude nos votos. Eles deveriam comprovar o motivo pelo qual teve fraude nos votos que estão na urna, mas eles dizem efetivamente que o problema é com as urnas em termos genéricos", diz Cyrillo.

Especialista em direito eleitoral, o advogado Alberto Rollo também sinaliza que não cabe aplicação do artigo 224 nesse caso. "Tudo isso é de uma ignorância profunda. O TSE, de forma técnica, já rejeitou todos os argumentos, está na própria decisão. Não tem como considerar corretas apenas a parte das urnas em que o Bolsonaro ganhou e não admitir que, se as mesmas urnas foram usadas no primeiro turno, se houvesse nulidade, deveria ser pelos mesmos motivos nos dois turnos. Está muito longe a aplicação do artigo 224", afirma.

Ataques a Alexandre de Moraes

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Ao longo do comentário, o vereador insinua que a convocação de uma nova eleição poderia não acontecer por vontade pessoal do presidente do TSE, o ministro Alexandre de Moraes. Ele, afirma, então, que a convocação não estará mais nas mãos do ministro e que, se ele se recusar a cumprir o que está previsto em lei, o Ministério Público Federal (MPF) tem a obrigação de punir os culpados e, junto com o Tribunal, providenciar a convocação de um novo pleito.

A atuação do Ministério Público está realmente prevista nos parágrafos 1º e 2º do artigo 224 do Código Eleitoral, mas isso não significa que a instituição tenha a atribuição de convocar eleições caso o ministro Alexandre de Moraes não o faça, como dá a entender o comentário. "As atribuições do Ministério Público Federal estão nos artigos 127, 128 e 129 da Constituição Federal e na Lei Complementar 73, e em nenhum momento lá está convocar eleições. Não existe isso, o MPF não tem essa atribuição. O Ministério Público Federal é titular da ação penal e defensor do povo, como a gente chama. É defensor da democracia, dos direitos humanos", diz Carolina Cyrillo.

Ao Verifica, Eduardo Borgo afirmou que vários aspectos devem ser analisados no do que respeito à "responsabilização do ministro Alexandre de Moraes". Segundo ele, a ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Eliana Calmon disse que o Judiciário assumiu um lado nessa eleição, e que se a denúncia dela for confirmada, "deve ser instaurado um processo visando apurar os fatos e, sendo confirmado, devem ser punidos aqueles que se afastaram da imparcialidade, diante a necessidade de as instituições serem preservadas".

Artigo 142 não permite intervenção militar

O último argumento a aparecer no vídeo é de que, se a lei não for cumprida em nenhum desses casos, entra em ação o artigo 142 da Constituição Federal. Bolsonaristas vêm recorrendo a esse dispositivo como se ele servisse de amparo legal para justificar uma intervenção militar, mas isso não é verdade. O Estadão Verifica e o Projeto Comprova já desmentiram essa tese, e os dois advogados especialistas consultados para esta checagem também descartam que o artigo torne legal um golpe militar.

O artigo 142 da Constituição diz que "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

"O artigo 142 da Constituição Federal não serve pra golpe. Seria usado em caso de colapso da segurança institucional e provocado por um dos poderes", afirma Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral.

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Carolina Cyrillo acrescenta que o artigo não admite intervenção militar, nem serve como autorização para isto. "No artigo 142 da Constituição não existe intervenção militar, os militares não são o quarto poder, os militares não têm essa atribuição e os militares não querem ter essa atribuição. O artigo 142 é para que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário possam contar com as Forças Armadas, caso haja uma agressão contra a democracia", explica.

Segundo ela, não há possibilidade de as Forças Armadas interferirem nos três poderes. O que elas podem fazer é manter a democracia interna a pedido dos poderes. "O problema desses discursos, tanto de uso do MPF quanto das Forças Armadas, é querer transformar instituições de Estado, de garantia do Estado Democrático de Direito, como as Forças Armadas e o Ministério Público, em instituições golpistas. Não tem cabimento nenhum, elas servem para proteger a democracia, e não para fazer golpe", pontua Cyrillo.

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