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Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião|Como encontrar otimismo no desvendar do caso Marielle

O País continua com traços racistas, a pobreza persiste, mas o encarceramento dos supostos mandantes da morte da vereadora pode nos oferecer uma tênue esperança de que há alguma saída

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Uma mulher negra, periférica, homossexual e de origem pobre foi assassinada de maneira covarde e brutal. Talvez, na história do Brasil, um crime como esse não tivesse qualquer consequência por séculos. Os poderosos mandantes jamais poderiam imaginar que teriam que enfrentar as garras da lei em situação tão assimétrica.

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A prisão hoje do deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ), do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Domingos Brazão, e do delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil no Rio, pelo assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), seis anos após o crime, pode significar que melhoramos. Muito menos do que o necessário, em ritmo dramaticamente lento, mas mudamos.

O País continua com traços racistas, a pobreza persiste tanto em áreas urbanas como rurais, a desigualdade segue infame no sentido também de que o próprio Estado, muitas vezes, suga recursos de toda a população para entregar a certo grupos de escolhidos e privilegiados. Mas o encarceramento dos supostos mandantes da morte de Marielle pode nos oferecer uma tênue esperança de que há alguma saída.

Talvez pelo fato de a vítima ter se tornado vereadora, talvez pela enorme repercussão, não deixaram o caso morrer, o que é um avanço mínimo. Hoje, apenas 35% dos crimes de homicídio no Brasil são solucionados contra uma média mundial de 65%, segundo o Instituto Sou da Paz.

A vereadora do PSOL, Marielle Franco, executada no Rio de Janeiro em 2018 Foto: Mário Vasconcellos/CMRJ

O momento da prisão dos suspeitos não coincide com um sentimento de confiança no Judiciário. Principalmente por causa das anulações das penas da chamada Operação Lava Jato. O que o brasileiro entendeu como uma ação de enfrentamento contra os atos bilionários de corrupção se transformou em abuso de Estado. A mesma Justiça que condenou resolveu soltar. Afinal, houve ou não houve abusos? Ocorreram ou não os grandes esquemas envolvendo as estatais e as empreiteiras? Acusaram pessoas inocentes por razões políticas? Em toda a complexidade, o Judiciário nos deve esta resposta.

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Em um mundo ideal a questão deveria ter menos matizes. Cometeu crime? Punição. Cometeu crimes graves? Cadeia. É inocente? Que seja absolvido. Mas, há tempos, a resposta a essas perguntas simples se tornou extremamente complexa. Quem era culpado se transformou em mocinho e os antigos heróis, muitas vezes tomados pela vaidade, hoje se tornaram bandidos. Parece que não superamos o padrão de que o que importa no Brasil não é a lei, mas as relações pessoais.

No final das contas, pelo que se sabe até agora, a morte de Marielle teve a ver com movimentos que envolviam a regularização ilegal de lotes no Rio de Janeiro. Caso que envolviam milícias e seus protetores na política. Marielle se opôs às tenebrosas transações e pagou com a vida, incluindo a de seu motorista, Anderson Gomes. Vamos aguardar mais esclarecimentos.

Há toques aí de gangsterismo que os roteiristas dos filmes noir de Hollywood ficariam com inveja. Um dos cúmplices era o chefe da polícia civil do Rio de Janeiro. Porém, os vilões eram do baixo clero da política brasileira. Protegidos pela aba do Estado. O surgimento das milícias no Brasil é sintoma dessa confusão em que os que deveriam ser guardiões da lei se tornam seus algozes.

Nesse momento de nebulosidade, a Justiça ainda é obrigada a ser objetiva o suficiente para julgar um ex-presidente que, ao que tudo indica, tentou cometer um golpe de Estado e destruir nossa democracia. E, mais grave, parte considerável dos admiradores desse ex-presidente, milhões, não acreditam que vivamos numa democracia tênue. Ser justo é andar no fio da espada.

Hoje, até mesmo a Justiça sofre com a chamada polarização. Quem está de um lado quer inocência para os seus e punições para os adversários. Não deveria ser assim já que crime não tem ideologia. Tomara que o restante das investigações mostre que crimes com o de Marielle não podem prosperar em uma nação que se pretende civilizada e democrática, não importa quem sejam os culpados (e, caso os acusados sejam inocentes, coragem para absolvê-los). É o único caminho possível para o Brasil.

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Opinião por Fabiano Lana

Filósofo e consultor político

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