Por meio da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB), a gestão Ricardo Nunes (MDB) firmou contratos emergenciais – sem licitação – com construtoras ligadas a um mesmo grupo econômico investigado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) por suspeita de superfaturamento em obras públicas. Tais contratações foram realizadas após o início das investigações e somam R$ 527,43 milhões.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo afirmou, em nota, que as contratações “respeitaram os ritos legais e a legislação vigente”. Também informou que as companhias investigadas “estão aptas a licitar e contratar com a administração pública, conforme o portal oficial do Governo Federal e os Certificados de Registro Cadastral atualizados junto à Secretaria, não havendo, portanto, qualquer impedimento legal”.

Entre 2022 e 2024, a SIURB contratou dez obras emergenciais com quatro construtoras ligadas ao empresário Ernaldo Caetano do Nascimento, 51. Ele é investigado pelo MP-SP desde 2021 por suspeitas de favorecimento na obtenção de contratos emergenciais junto ao governo do Estado. Além disso, foi condenado por falsificação de documentos. A reportagem contatou o empresário, mas não obteve retorno.
Apesar da investigação do MP-SP, a Secretaria procurou empresas ligadas a Nascimento para executar uma dezena de obras na cidade. Como as contratações em regime emergencial não passam por licitação, as companhias foram selecionadas pela pasta. Segundo documentos oficiais consultados pela reportagem, as empreiteiras foram indicadas pela “superior administração” do órgão.
A Ercan Construtora, empresa da qual o empresário é sócio junto com seu filho, Enann Peach do Nascimento, 30, foi a primeira companhia da família Nascimento a obter um contrato emergencial com a Secretaria de Obras, em 18 de julho de 2022. O acordo, de R$ 5,5 milhões, previa a contenção de um talude (encosta) num córrego na Subprefeitura do Campo Limpo, zona sul. Na época, a Ercan já era investigada pelo MP.
Tribunal de Contas aponta superfaturamento em obra
Em 29 de julho de 2022, a Ercan assinou outro contrato emergencial para contenção de uma encosta na Subprefeitura do Jaçanã, zona norte. A obra, de R$ 44,2 milhões, foi auditada pelo Tribunal de Contas do Município (TCM). Os auditores identificaram um superfaturamento de R$ 14,5 milhões e um sobrepreço de R$ 19,7 milhões no orçamento executado pela empresa.
Além disso, a auditoria constatou que a construtora não possuía a qualificação operacional necessária para executar o projeto. Segundo o relatório, a companhia não teria condições de ser habilitada em um processo licitatório para executar a obra declarada emergencial. O TCM também apontou atraso no andamento da obra e pagamentos antecipados para a Ercan Construtora.

A equipe técnica que vistoriou a obra concluiu que a área apresentava condições precárias e de risco, mas sem elementos imprevisíveis que justificassem a urgência do contrato. Os auditores apontaram indícios de uma “emergência fabricada”. O engenheiro da SIURB que atestou a emergência, Ricardo Francisco Pereira Cimino, já foi condenado pelo TCM por contratação irregular de obra emergencial.
No total, a Ercan firmou sete contratos com a SIURB, totalizando R$ 327,6 milhões em obras sem licitação. A quantia a coloca na quarta posição entre as construtoras que mais receberam recursos em regime emergencial da pasta, segundo levantamento do Estadão. Em primeiro lugar está a FFL Engenharia, com R$ 624,2 milhões, seguida pela B&B Engenharia (R$ 457,8 milhões) e FP Projetos (R$ 344,8 milhões).
Em nota, a SIURB negou qualquer hipótese de superfaturamento e sobrepreço. Também esclareceu que “os orçamentos das obras têm como base a tabela pública de custos da Secretaria, utilizada amplamente pelo mercado e atualizada semestralmente pela FIPE”. Em relação à auditoria, disse que “todas as informações já foram prestadas à Corte e o procedimento ainda se encontra em fase de instrução no TCM”.
Construtora já foi concessionária de automóveis
O grupo econômico da família Nascimento inclui ainda a Construnan Engenharia e a EMP Construções, administradas por Enann Peach do Nascimento, e a Naspe Engenharia, que tem Ernaldo Caetano do Nascimento e seu filho como sócios. A Construnan possui R$ 4,9 milhões em contratos emergenciais com a Secretaria de Obras; a EMP, R$ 77,3 milhões; e a Naspe, R$ 117,7 milhões.
Juntas, as construtoras da família Nascimento declaram um capital social de R$ 240,5 milhões, segundo dados da Junta Comercial do Estado (Jucesp). O crescimento, no entanto, é recente. As empresas foram fundadas ou adquiridas a partir de 2020, período em que firmaram contratos emergenciais com o governo do Estado, e viram seu capital social crescer até 8 mil vezes em poucos anos.
A Eran e a Construnan foram criadas em 2020 com capital social de R$ 5 milhões e R$ 150 mil, respectivamente. Em 2024, os valores subiram para R$ 101,6 milhões e R$ 5 milhões. A transformação mais significativa, porém, é da Naspe. Adquirida pela família em 2021, a empresa era originalmente uma concessionária de automóveis chamada Ton Ren, com capital social de apenas R$ 10 mil.
Após a compra, a família Nascimento renomeou a empresa para Naspe e alterou sua atividade econômica de comércio de automóveis para serviços de engenharia. O capital social subiu para R$ 5 milhões no mesmo ano, depois para R$ 30 milhões e, em 2022, para R$ 60 milhões. Em 2024, chegou a R$ 83,9 milhões. O capital social é um dos critérios de elegibilidade para obras públicas.
Empresário é investigado pelo Ministério Público
Desde 2021, Ernaldo Caetano do Nascimento é investigado pelo MP-SP por suspeita de favorecimento na obtenção de contratos sem licitação junto ao Departamento de Estradas de Rodagem (DER), órgão ligado ao governo do Estado responsável pela administração de rodovias. As possíveis irregularidades teriam ocorrido entre 2020 e 2021, durante a gestão de João Doria (então no PSDB, atualmente sem partido).
O Ministério Público Estadual suspeita de superfaturamento nas obras realizadas pelo grupo econômico capitaneado por Nascimento. O inquérito civil contra ele foi relevado pelo portal Metrópoles em 2022. O Estadão apurou que a investigação segue em andamento sob sigilo. Nos últimos quatro anos, uma série de diligências foram realizadas, e o processo contra o empresário já acumula mil páginas.
A investigação é conduzida pela Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (PJPP-CAP). No momento, o órgão aguarda a conclusão de um laudo técnico do Centro de Apoio à Execução (CAEx), que analisa dados coletados em campo. Além disso, a Corregedoria-Geral do Estado instaurou um processo administrativo para apurar a atuação das construtoras de Nascimento, após solicitação do MP-SP.
Também pesa contra Nascimento uma condenação na Justiça Federal por falsificar o contrato social de uma empresa. A perícia comprovou que ele falsificou as assinaturas de duas pessoas, sem o conhecimento delas, para incluí-las como sócios laranjas. Em 2014, ele foi condenado a dois anos de prisão e multa.
O empresário, no entanto, nunca foi localizado. Em 2017, foi citado por edital pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Em 2018, o desembargador Nino Toldo aceitou o recurso da defesa e extinguiu a punibilidade, alegando que a pena havia prescrito. O crime de falsificação ocorreu em 2004.
Contratação de empresa investigada segue legislação
O professor Luís Felipe Valerim, da Fundação Getulio Vargas (FGV), esclarece que não há exigência legal que impeça gestores públicos de contratar empresas que estejam sob investigação. “A única restrição se aplica a empresas condenadas, pois essa é uma das penalidades previstas em lei. Após a condenação, a empresa fica impedida de prestar serviços à administração pública”, diz o sócio do VLR Advogados.
Ex-coordenador de Licitações, Infraestrutura e Energia da Casa Civil da Presidência da República (2011-2014), Valerim conta que algumas empresas públicas adotam uma abordagem mais sofisticada, baseada nos conceitos de integridade e compliance. Esse modelo pode restringir as empresas aptas a participar de contratações, excluindo aquelas sob investigação.
“Trata-se de um filtro baseado em avaliação de risco, no qual determinadas empresas nem sequer são consultadas. Ainda que não estejam condenadas, a administração pública pode optar por não contratá-las. No entanto, essa ainda é uma prática bastante avançada — the crème de la crème — e a maioria das prefeituras está longe de adotar regulamentos com esse grau de sofisticação”, afirma.
O especialista diz ainda que a contratação emergencial é um instrumento legítimo e não deve ser demonizado, pois é utilizado em situações de calamidade, quando a demora de uma licitação causaria mais prejuízos do que benefícios. Porém, ele destaca a importância do planejamento, alertando que um aumento repentino desse tipo de contratação pode sinalizar falhas na gestão de problemas estruturais da cidade.
Suspeitas de irregularidades nas contratações
Como mostrou o Estadão, o Tribunal de Contas do Município identificou indícios de concentração de chamados por meio de ofícios para as mesmas empresas nas contratações emergenciais da Secretaria de Obras. A pasta é comandada por Marcos Monteiro desde 1º de janeiro de 2021.
Segundo o TCM, a Secretaria não realiza pesquisa de preços antes das contratações emergenciais e se baseia apenas no desconto sobre o BDI, índice que inclui custos indiretos. Essa prática não garante a escolha da melhor proposta, avalia o Tribunal.
Para as contratações emergenciais, a SIURB costuma enviar ofícios a três empresas indicadas pela “superior administração”. Na maioria dos casos, vence quem oferece o maior desconto sobre o BDI.
No entanto, nos dez contratos firmados entre a Secretaria e empresas ligadas a Ernaldo Caetano do Nascimento, não houve concorrência real, segundo apurou o Estadão nos respectivos processos administrativos. Apenas construtoras associadas ao empresário apresentaram descontos relevantes.
Em dezembro de 2023, por exemplo, a SIURB contratou a Ercan para outra contenção de talude no Campo Limpo. Duas outras empresas também foram consultadas – Progredior e B&B Construções –, mas a companhia da família Nascimento levou o contrato por ser a única a oferecer desconto sobre o BDI. A obra foi fechada por R$ 128,6 milhões, maior valor para um contrato emergencial na gestão Ricardo Nunes.
De 2021 a 2024, a B&B Construções firmou 21 contratos emergenciais com a SIURB, totalizando R$ 457,8 milhões. A Progredior garantiu 11 obras sem licitação, somando R$ 83,6 milhões. Em grande parte dos casos, as empresas vencedoras foram as únicas a oferecer descontos relevantes, o que levanta suspeitas de conluio.
Gastos com obras emergenciais disparam na gestão Nunes
Levantamento do Estadão mostra que os gastos com obras emergenciais da Secretaria de Obras somaram R$ 6 bilhões entre 2021 e 2024, um aumento de 5.171% — ou 53 vezes — em relação aos R$ 113,7 milhões do período anterior (2017-2020). O crescimento coincide com a chegada de Nunes à Prefeitura, após a morte de Bruno Covas (PSDB), em maio de 2021.
Além do aumento nos valores, o perfil das obras emergenciais mudou. Contratos menores, com prazos de até 180 dias, deram lugar a projetos multimilionários com duração de até um ano.
Essa mudança foi impulsionada por alterações na Lei de Licitações, que ampliou os prazos para execução das obras emergenciais, e por decisões internas da Prefeitura de São Paulo, que centralizaram as contratações na SIURB, eliminando a exigência de relatórios de risco da Defesa Civil.
Antes, as subprefeituras contratavam diretamente essas obras. O Decreto Municipal 59.135/2019 exige que elas apresentem relatório da Coordenação Municipal de Defesa Civil (Comdec), classificando o risco e justificando a emergência da intervenção.
A SIURB, no entanto, não exige esse documento em suas contratações emergenciais. Em 2023, o TCM recomendou que a Secretaria incluísse manifestações da Defesa Civil nos processos, mas a reportagem não encontrou esses registros nas obras realizadas pelo grupo econômico da família Nascimento em 2024.
Em nota, a Secretaria afirmou que “acolheu recomendação do Tribunal de Contas do Município e desde 2023 passou a utilizar os relatórios da Defesa Civil nas contratações emergenciais”. Porém, esclareceu que, em casos de intervenções emergenciais em pontes e viadutos ou em situações como o rompimento de galerias subterrâneas, essa análise não se aplica.
Sobre o crescimento das obras emergenciais, explicou que a necessidade de tais ações tem sido resultado de um acúmulo de demandas não atendidas ao longo de gestões passadas.