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"A última floresta": a resistência yanomami no mundo imaginário e no mundo material

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Por Redação
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Imagem: arquivo pessoal.  

Nicole Pudo, Aluna do 10º semestre da Escola da FGV Direito SP. E-mail: nicolepudog@gmail.com

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Essa resenha foi produzida no âmbito da disciplina Cinema e Política: sociedade, política e cultura no cinema documental brasileiro da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), lecionada pelo professor Alexandre Abdal.

A obra e sua direção

"Os brancos não nos conhecem. Seus olhos nunca nos viram. Seus ouvidos não entendem nossas falas. Por isso, eu preciso ir lá onde vivem os brancos". Esses são os dizeres - registrados no início do documentário - que Davi Kopenawa, líder político Yanomami, faz ao seu povo. Essa fala simboliza o propósito de toda essa obra: utilizar o audiovisual para transmitir as visões dos Yanomami e ser uma forma pela qual esse povo vai até onde os brancos vivem para contar sobre suas vivências.

Após passar por diversos festivais internacionais, como o de Seul e o de Berlim e também nacionais, como É Tudo Verdade, Pachamama, e mostras como a Ecofalante, A Última Floresta teve a sua estreia no cinema nacional no dia 9 de setembro de 2021 e hoje se encontra disponível na plataforma de streaming Netflix. Também foi ganhadora de prêmios, como o na categoria Grand Prix e Melhor Filme Nacional da Comic Con Experience (CCXP) Awards 2022, o Oscar Latino de melhor documentário em Madri e o prêmio de Melhor Filme nos festivais de Seul e Berlim.

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O diretor Luiz Bolognesi se une ao ativista e xamã Davi Kopenawa Yanomami com o objetivo de registrar e representar o cotidiano Yanomami permeado de tradições e espíritos da floresta, misturado ao conflito com garimpeiros no Brasil. Em anterior produção intitulada Ex-Pajé, o diretor repete a temática indígena, sendo exposto um contexto em que os xamãs estão potentes, no epicentro político, filosófico, científico e cosmológico daquele povo. Esse protagonismo indígena sobre a sua história se repete em também em A Última Floresta.

Bolognesi é um diretor que se engaja politicamente através de suas produções audiovisuais, veja, por exemplo, Uma História de Amor e Fúria, outra de suas obras. O ponto em comum é a mistura de ficção com problemas complexos da realidade política, além da temática sobre grupos vulneráveis. A animação Uma História de Amor e Fúria se assemelha a um livro ilustrado do ensino básico que está passando pela devida correção política, fazendo com que a história dos vencedores seja questionada e a dos perdedores seja contada. Em A Última Floresta, o diretor deixa os indígenas, que foram excluídos da história oficial do Brasil, contarem as suas próprias experiências vividas nos últimos anos, colocando-os em um espaço de protagonismo, fazendo com que os próprios guiem e escolham como as suas tradições e experiências devem ser contadas.

Contexto geopolítico

Em 2017, alguns meses antes das eleições, Jair Bolsonaro, em palestra no Clube Hebraica em São Paulo, afirmou "se eu chegar lá, no que depender de mim, [...] não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena". Anos depois, já com Bolsonaro eleito, A Última Floresta é filmada e essa obra não se dissocia do contexto em que nasce. Os garimpeiros se sentem à vontade com o enfraquecimento dos órgãos ambientais e com a legitimidade dada aos seus atos pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Presidente da República e voltam a penetrar de modo massivo e agressivo nas florestas do Brasil.

O documentário serve como crítica não só ao governo de Jair Bolsonaro, contemporâneo no lançamento da obra, pois ilustra que, apesar da mudança dos governos, os indígenas sempre estiveram ameaçados, à margem. Independente das trocas políticas a cada quatro anos, os povos originários do nosso país constantemente se encontram em uma posição de resistência e alerta para que seus direitos não sejam violados ou atrofiados. Por esse motivo, Bolognesi não faz uma denúncia direta a um culpado e nem enfática apresentando as evidências de um crime. Prefere fazer com que ao desenrolar do longa, os personagens critiquem algo mais profundo, a motivação das nossas escolhas econômicas e políticas: o modo como os brancos veem o mundo e se relacionam com o meio natural. Essa é a origem dos problemas, dessa forma, o mercúrio nas águas, assim como o encantamento de jovens indígenas para trabalhar com garimpeiros são consequências desse modo de pensar.

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Davi Kopenawa é a principal liderança Yanomami e é amplamente conhecido por sua defesa dos povos indígenas e do meio ambiente. Os impactos de sua atuação, através de falas e livros, são de repercussão nacional e internacional. A escolha de Kopenawa para roteirizar a obra foi uma tentativa acertada de fazer com que a voz dos Yanomami fosse representada pela perspectiva desse povo que não se vê dissociado da natureza, diferentemente dos brancos. Aqui, ser guardião da floresta é ser guardião de si mesmo e dos seus semelhantes e, o contrário também é válido, defender a comunidade é defender a natureza. Ver e entender o mundo de dentro e o de fora da comunidade Yanomami torna Kopenawa o melhor e único narrador-protagonista possível para esse longa.

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Seguindo essas escolhas, os conflitos são expressos de forma complexa e múltipla, já que o que esse povo enfrenta não é apenas a ameaça externa da invasão dos garimpeiros, mas também ameaças internas em relação aos jovens que são encantados pelo consumo e pelo modo de vida dos brancos. A obra registra diversas críticas ao modo de vida dos brancos, estimulando a reflexão sobre a nossa própria compreensão de bem-estar nas cidades e o que de fato é importante na nossa existência. Essas críticas são expressas em diálogos cotidianos desse povo, como na fala do xamã ao jovem indígena que pensa em trabalhar no garimpo que "apesar de ter muitas mercadorias, o branco não divide".

Escolhas narrativas

O documentário opta por nos contar sobre a vivência e resistência dos Yanomami através da representação de mundos imaginados e também de mundos conhecidos e compartilhados, ou seja, um misto entre ficção e realidade[1]. O documentário se mistura com a ficção quando pretende convencer, mas também conectar o espectador com a subjetividade do mundo Yanomami e para isso se utiliza de captação direta, atores não profissionais, ausência de voz-over e de entrevistas. A direção constrói documentário argumentativo-informativo através da coerência do mundo imaginado por esse povo.

A partir do momento político vivido, a obra poderia escolher demonstrar a calamidade da situação indígena por meio da aposta em uma produção audiovisual que grita aos quatro cantos as violências sofridas por esses povos, mas não o faz. Não o faz porque o dia a dia dos Yanomami demonstra que a política faz parte integral da vida de quem nasce indígena. A captura de jovens para trabalhar no garimpo, a comunicação entre aldeias acerca da contaminação de mercúrio nos rios, a organização de mulheres em uma cooperativa e a luta direta na expulsão de quem busca extrair minérios na região é algo comum, que muitas vezes se mistura no dia-a-dia com atividades cotidianas da comunidade. A política e a luta se mostram parte da vida dessas pessoas, sem a necessidade de verbalizá-la em depoimentos explicativos e enfáticos.

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E talvez seja exatamente esse um dos diferenciais do documentário: ele não resume os Yanomami à sobrevivência de um grupo marginalizado. O filme retrata o povo através também de suas vivências, singularidades, experiências e visões de mundo. O povo Yanomami, assim como todos os povos originários, vive resistindo a mais de 500 anos, mas não deixou de construir a sua história, de perpetuar a sua cultura e de viver a vida cuidando de seus semelhantes. Aqui, inclusive, se aplica perfeitamente a frase de Emicida na música AmarElo: "Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência. É roubar o pouco de bom que vivi. Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes". A Última Floresta permite que o povo Yanomami fale de suas cicatrizes e as da floresta, mas não invisibiliza os momentos subjetivos e práticas de significado profundo que esse povo vive, muito menos deixa que essas cicatrizes falem por si só.

A direção de Bolognesi permite que o povo originário em questão seja quem narra e quem roteiriza a história contada. Assim, a ideia desse documentário foge de uma prática antes comum na antropologia de que o detentor do conhecimento sobre as dinâmicas sociais se infiltra em uma comunidade para observá-la e depois compartilhar o que viu com o mundo a partir de seus olhos. Mesmo que a completa equivalência de poderes entre cineasta e personagens seja impossível, a direção de Bolognesi tem uma interessante proposta que faz com que o documentário se destaque: a política de cumplicidade. Nela, os indígenas possuem o conhecimento da própria cultura, a história de suas lutas e a resistência atual que enfrentam, além dos problemas encarados a cada governo eleito; já os diretores Bolognesi e Pedro Márquez, o editor Ricardo Farias e demais membros da equipe têm os conhecimentos fundamentais para transformar essa visão de mundo em cinema. O documentário é feito com os personagens e não de um olhar externo sobre eles. Dando liberdade para gestos e falas espontâneas, o cinema nessa obra se adequa ao extraordinário mundo deste povo e não ao contrário. [2]

Escolhas estéticas

A Última Floresta mostra o olhar poético dos indígenas acerca da vida. Um olhar profundo e cheio de significados, com histórias e lendas que se misturam com problemas sérios do mundo real vividos por essas pessoas. Nessa mistura nós, público, somos incapazes de compreender quais cenas aconteceram de forma espontânea e quais foram criadas, arranjadas, repetidas ou decoradas. Passamos a questionar a natureza do mundo e a natureza do cinema. Indagamos o que é real e o que não é e se aquilo que entendemos como fantasia, não tem de fato nada de realidade.

A escolha por contar o mito fundador Yanomami, a respeito de Omama e Thüeyoma, nos provoca acerca dessa incompreensão do que é genuíno e o que é artificial. Os indígenas desconhecem os estudos de composição cênica e do cinema, mas, conhecem cada aspecto da lenda e as encenam com um respeito e domínio que nenhum ator branco poderia realizar. Para os Yanomami essas lendas não são ficção e por isso encenam de maneira tão natural e serena quanto vivem as cenas de sua vida na comunidade, como quando pescam ou confrontam garimpeiros. Nessas cenas um incômodo é gerado em quem assiste. Esse incômodo criado propositalmente parece ser uma crítica clara: Somos nós, brancos, que erguemos muros entre o real e o imaginário e entre a natureza e o ser humano.[3]

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O longa-metragem se expressa através do tipo de filme documentário, sendo uma mistura dos subgêneros observativo e performático[4], já que se utiliza da mistura da performance com cenas em que o cinegrafista parece apenas "uma mosca" no ambiente, observando o desenrolar do cotidiano daquelas pessoas. O diretor representa a identidade Yanomami, sendo comprometido com a integridade desse grupo marginalizado, dando nome, forma, visibilidade e voz. O diretor aposta na utilização de discurso mais subjetivo e pessoal, com ênfase no estético-performática e na profundidade psicológica das personagens. Dessa forma, a obra transmite uma experiência subjetiva diversa nos saberes indígenas.

A direção toma cuidado para realizar esse trabalho de conscientização sem deixar cair-se nas tentações de tornar exóticos aqueles a quem quer representar. E além disso, esqueça o senso de urgência comum a tantos documentários políticos nos quais o conteúdo se sobrepõe à forma. A Última Floresta aposta justamente na forma para contar sua história e deixa que a forma da narração seja uma escolha dos próprios personagens. Aqui, a estética expressa um posicionamento político consciente.

Entre os contos compartilhados e os afazeres do dia a dia, como caçar, cuidar dos filhos, preparar beiju e trançar cestas, o documentário nos faz sentir como se estivéssemos sentados na fogueira junto aos personagens, escutando as reflexões ali feitas sobre a facilidade de dormir quando não se tem tantas luzes e barulhos artificiais. Nessa cena, uma personagem diz que a noite é silenciosa. O documentário também é. As cenas têm diversos planos fixos e a câmera se posiciona em ângulo e distância ideais para captar simultaneamente os corpos, os rostos, os objetos e o cenário. O documentário apresenta a narrativa de uma outra forma, com seu próprio ritmo, o ritmo de quem vive os ciclos da natureza, contrário ao ritmo de vida das cidades.

Referências e comparações

A obra demonstra a cosmovisão indígena sobre a vida através do roteiro e imagens com uma lógica observadora. Quem filma parece em muitos momentos apenas observar de forma distanciada o dia a dia daquele povo, com a certeza de que as ações pacatas do cotidiano têm muito a nos ensinar sobre a forma de outras pessoas verem e existirem no mundo. Deixando claro que não é somente o extraordinário que se enquadra como resistência, o dia a dia tem um potencial grande de luta. Nesse ponto, é interessante o paralelo com a diretora Maria Augusta Ramos que busca o mesmo registro de quem apenas observa a vida se desenrolar, mas com a diferença das imagens serem dentro de grupos sociais que vivem nas cidades. Os quatro documentários Justiça, Juízo, O Processo e Futuro Junho da cineasta, utilizam dessa mesma lógica na construção do desencadeamento de imagens.

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Esperam-se duas coisas com essas escolhas de registro feitas por Bolognesi e Maria Augusta Ramos: (1) capturar o cotidiano de lugares que não são todas as pessoas que têm acesso para gerar reflexão acerca do funcionamento daquelas instituições/grupos; e (2) como o cotidiano pode revelar coisas extraordinárias sobre a vida e sobre os processos, gerando não só um entendimento da realidade e da burocracia, como também sendo central para o público se reconhecer naqueles personagens, gerando empatia e/ou identificação. Bolognesi e Maria Augusta Ramos sabem que o pacato cotidiano pode ser muito poderoso quando capturado de forma imersiva, para que o telespectador se sinta sentado ao lado do banco dos réus ou ao lado de um Yanomami na fogueira. Desse modo, A Última Floresta não cria uma trama em si: é uma colagem de momentos, interconectados por diferentes narrativas, que no fim representam as realidades imaginária e concreta desse povo.

A fotografia vibrante e imersiva na floresta é um acerto da obra, além disso é certamente inspirada nas obras da fotógrafa Claudia Andujar que soube usar a sua arte para demonstrar a luta dos Yanomamis, representando as suas vivências com respeito e profundidade, como o documentário também faz. A trilha esplendorosa, que acompanha as sonoridades da floresta, também traz sensorialidade para o longa. As músicas e escolhas de fotografia demonstram o cuidado em expressar o quanto essa pequena comunidade é grandiosa em suas tradições, modos de pensar e, principalmente, corajosa em suas lutas. Isso fica claro quando a imagem filma de cima a aldeia em meio a floresta amazônica e demonstra a contradição desse pequeno lutando por uma grande floresta, volumosa e preponderante e que, mesmo em sua pequenez, resistem ao poder político e econômico das mineradoras, do agronegócio, das hidrelétricas e de diversas outras atividades política e econômicas que ameaçam essa floresta e esse povo.

Considerações finais

A Última Floresta é uma viagem imersiva no meio da floresta amazônica, retratando o povo Yanomami que lá vive de forma poética, autêntica e profunda, não limitando esse povo a sua luta, mas sim exaltando a grandiosidade de sua subjetividade e cultura permanecerem em um território constantemente ameaçado pelos detentores do poder político e econômico. Através de registros onde a natureza, a espiritualidade, a luta e os seres humanos não se desassociam, notamos que entre humanidade e natureza não há muros, assim como entre o real e o imaginário.

O cotidiano representado nos faz aproximar daquela comunidade, enxergando seus valores e como o seu ritmo de vida é diferente das cidades. Mostram com essas cenas que pensar na vida sendo comunhão com a natureza e comunidade é resistência em um mundo onde o consumismo enfeitiça a todos. São assim guardiões não só da floresta, mas de uma forma de ver a vida longe das noções de mercadoria. Assim, a obra demonstra a cosmovisão indígena de uma forma única e, principalmente, poderosa e vibrante.

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O documentário opta por encerrar a narrativa com a fala de Davi Kopenawa na Universidade de Harvard. Kopenawa ensina que "Vocês que vivem aqui na outra margem, daqui vocês não enxergam. Pensam que na floresta é tudo bonito. Mas os brancos que são autoridades liberaram o garimpo em nossas terras. As autoridades não indígenas usam muito a palavra "importante". Para vocês que vivem na cidade, o mais importante é a mercadoria. Apesar de ter muitas mercadorias, o branco não divide. Fazer muita mercadoria faz mal para a floresta. São sovinas. Para nós o importante são os animais da floresta, a fertilidade. Importante é dividir o alimento entre o nosso povo, nossa sobrevivência, nosso crescimento e nossa forma de viver e nossa existência como povo".

Alinhada com a fala do líder indígena, essa obra pode ser resumida como importante. Importante para o audiovisual brasileiro, retratando um povo vulnerável de forma tão respeitosa, importante para representar esse povo que se vê obrigado a combinar vivências e resistência e, também, importante para conscientizar quem assiste, para que essa não seja de fato a última floresta.

Notas

[1]NICHOLS, Bill. Introduction to Documentary. Indiana University Press, 2001

[2] CARMELO, Bruno. Crítica A Última Floresta. Papo de Cinema. Disponível em:

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[3]  CARMELO, Bruno. Crítica A Última Floresta. Papo de Cinema. Disponível em:

[4] NICHOLS, Bill. Introduction to documentary. 2010. Second Edition. Indiana University Press.

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