PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

À margem da História

Opinião|Lula não sinaliza que vai interromper lógica de desprezo de Temer e Bolsonaro pela arqueologia

Na semana da descoberta de 46 esqueletos de brasileiros que viveram nas praias de São Luís, há milhares de anos antes de Cristo, o Ministério da Cultura focou na ideia de mais um Museu da Democracia em Brasília

Foto do author Leonencio Nossa
Atualização:

A descoberta de 46 esqueletos incrivelmente bem preservados e quase cem mil peças cerâmicas de um povo de uma cultura de sete mil anos antes de Cristo, escavados num canteiro de obras do programa federal Minha Casa, Minha Vida, em São Luís, no Maranhão, é um capítulo notável da História da arqueologia brasileira. Mas descortina também uma realidade desafiadora. A pesquisa foi possível por conta de uma exigência da lei e segue o tempo dos poderes político e econômico e não aquele que deveria ser definido apenas pela ciência.

PUBLICIDADE

No dia 6, a empresa do arqueólogo Wellington Lage, contratada pela empreiteira MRV Engenharia, anunciou a descoberta capaz de revelar costumes e práticas de homens e mulheres baixos e fortes que viveram no litoral de São Luís muito tempo antes dos tupinambás, os indígenas encontrados no litoral maranhense por franceses e portugueses.

Por lei, a empreiteira era obrigada a contratar os especialistas diante de indícios de presença de peças arqueológicas. Assim foi feito. O grupo de arqueólogos chegou antes da retroescavadeira. Ao passo em que uma área era pesquisada, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, liberava o local para obras e os arqueólogos partiam para outra.

O ideal mesmo é que uma pesquisa começasse a partir da necessidade de se entender o passado. Faltam recursos para isso. A realidade é que quase todas as pesquisas arqueológicas em curso hoje no País são feitas em canteiros de empreiteiras - e por conta das obras. A legislação que ao menos garante esse tipo de trabalho é dos anos 1960 e vez ou outra algum grupo de lobistas propõe seu fim. A mesma lei não dá muita margem de manobra para os técnicos do Iphan embargarem um projeto e determinarem o tempo que os pesquisadores terão para revelar o passado. Ou mesmo garantir a preservação da área e interromper para sempre uma construção.

Publicidade

Esqueletos retirados do canteiro de obras do "Minha Casa, Minha Vida" podem ser do povo que viveu no Maranhão de três a sete mil anos antes de Cristo. Foto: W Lage Arqueologia

A descoberta dos esqueletos no Maranhão viralizou. Surpreendeu especialistas, despertou curiosidade dos leigos e animou uma classe que sofreu bastante, nos últimos anos, com ataques de autoridades federais – a dos arqueólogos e dos técnicos do patrimônio histórico.

Em 2021, o então presidente Jair Bolsonaro revelou ter cortado a cabeça da chefia do Iphan por razões econômicas. “Tomei conhecimento que uma obra de uma pessoa conhecida, o Luciano Hang, estava fazendo mais uma loja, e apareceu um pedaço de azulejo nas escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra. Liguei para o ministro da pasta: ‘que trem é esse?’ Porque não sou inteligente como meus ministros. O que é Iphan, com PH? Explicaram para mim, tomei conhecimento, ripei todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá.”

No ano anterior, Kátia Bogéa, funcionária de carreira, foi demitida da chefia do órgão. O pedaço de azulejo no canteiro da Havan no Rio Grande do Sul que Bolsonaro se referia era, na verdade, um conjunto de peças que incluía até material do período anterior à colonização portuguesa. Diante do pouco amparo da lei, o Iphan tinha se limitado a fazer um termo de conduta com o empresário, só isso. Bolsonaro ainda falou coisas escatológicas para se referir ao patrimônio da sociedade brasileira e ao trabalho dos arqueólogos. A notícia-crime contra ele sobre o episódio foi arquivada no mês passado pelo ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal.

Michel Temer também foi criticado por interferência no Iphan. Em 2016. seu ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, tentou conseguir na marra um parecer do órgão para construir um prédio de 30 andares em Salvador que colocava em risco o patrimônio de um período mais recente da História do Brasil – não menos valioso. O caso resultou na saída do ministro da Cultura, Marcelo Calero. Foi na gestão do jornalista Sérgio Sá Leitão, ainda no governo Temer, em 2018, que o Brasil perdeu sua maior base de pesquisa arqueológica, com o incêndio do Museu Nacional, no Rio.

Incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, em 2018 Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

É improvável uma repetição de tanta descompostura na área do patrimônio. O tempo é outro. Mas não deixa de ser um incômodo o silêncio da ministra da Cultura, Margareth Menezes, sobre o trabalho no sítio arqueológico de São Luís.

Publicidade

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Na semana, ela gastou seu tempo para lançar a ideia de um Museu da Democracia, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O projeto estimado em R$ 40 milhões terá por objetivo retratar, em especial, o 8 de janeiro de 2023. Todo museu, independentemente do corte temporal, pode contribuir para a compreensão da experiência humana. Entretanto, a capital federal já possui um espaço destinado à memória democrática. É o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, localizado na Praça dos Três Poderes. Com dois mil metros quadrados, a construção de Oscar Niemeyer foi planejada, em 1985, num momento decisivo da História democrática brasileira. “A ideia de se erguer um monumento para homenagear os heróis nacionais surgiu no Palácio do Planalto, diante do corpo do presidente Tancredo Neves, inspirado nos ideais de liberdade e democracia que, a exemplo dos seus conterrâneos inconfidentes, tão bem soube representar”, informa o site Mapa da Cultura, mantido pelo ministério de Margareth Menezes. Ficaria mais barato para o contribuinte se a ministra atualizasse o espaço. Turistas e estudantes, por tabela, teriam a vida facilitada.

Talvez fosse melhor mesmo priorizar a memória de quem está na fila há milênios. Seria um aceno para os mortos e também para os vivos que fazem pesquisa longe da Esplanada dos Ministérios. Aliás, o que não falta é museu arqueológico precisando de apoio Brasil afora e lugares que necessitam de espaço para contar o passado anterior à chegada dos europeus.

A capital federal já possui um espaço destinado à memória democrática: é o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, localizado na Praça dos Três Poderes Foto: Renato Araújo/Agência Brasília

O segundo Museu da Democracia proposto pela ministra virou tema do embate polarizado entre os chatos das redes sociais. O que importa é que o País nunca precisou tanto de reforçar a legislação para garantir as pesquisas arqueológicas e a preservação de seu passado mais remoto. Não há sinais do Ministério da Cultura e na cúpula do Iphan de início de uma ofensiva para uma mudança da realidade do setor.

Artista da música, Margareth Menezes tem a representatividade que faltava a muitos que ocuparam o cargo de titular da Cultura. No entanto, corre risco de marcar sua gestão na área do patrimônio como uma mera continuidade de uma política antiga. Ela não pegou o ministério, diga-se de passagem, de porteira fechada. O comando do Iphan foi entregue pelo PT ao sociólogo Leandro Grass, candidato derrotado do PV ao governo do Distrito Federal na eleição passada. Grass nunca entendeu de patrimônio histórico.

Se não é possível esperar muito de um órgão técnico de governo com poucos recursos e chefiado por um político sem experiência no ramo, ao menos o País pode ter expectativas em relação a seus arqueólogos.

Publicidade

A propósito, fazer pesquisa no Brasil não é fácil. Escavar sambaquis fora do Rio e de São Paulo costuma ser mais difícil ainda. “É um desafio tremendo”, observa Arkley Bandeira, professor de arqueologia da Universidade Federal do Maranhão. Ele aponta a falta de recursos e a condição periférica das universidades afastadas do grande eixo. Arkley ajudou em algumas escavações. As peças de cerâmica e os esqueletos retirados do canteiro da MRV ainda não foram estudados, mas as pesquisas do professor são uma referência para o trabalho.

Desde que concluiu o doutorado na USP, em 2013, Arkley voltou definitivamente para São Luís disposto a mostrar que a História da ilha não começou com os franceses no século XVII. Mas com os sambaquieiros, homens e mulheres que pescavam, caçavam, mariscavam, acumulavam conchas e fabricavam cerâmica há pelo menos 6.600 anos antes de Cristo. Quando os tupinambás se fixaram no litoral do Maranhão esse povo semi-nômade já tinha desaparecido há muito tempo. O nome usado pelo pesquisador para definir o grupo vem do termo sambaqui, um amontoado de conchas, restos humanos e artefatos formados no tempo ao longo do litoral.

Arkley chama a atenção para a realidade possível. Das escavações arqueológicas que estão sendo tocadas no Brasil, 99% são por conta de grandes obras. Só um por cento é demanda dos próprios institutos e instituições de pesquisas, ele estima. “É uma balança que está desequilibrada”, observa. A classe, porém, segue com seu trabalho e sua dedicação, sempre com medo de que o pouco que a legislação permite pode ser derrubado numa sessão do Congresso.

Está acertado que a MRV irá construir um espaço de reserva técnica especializado em restos ósseos na UFMA e dará suporte para os arqueólogos fazerem escavações nas áreas sem obras do empreendimento. A descoberta dos esqueletos e das peças cerâmicas, na avaliação de Arkley, tem ainda a importância de conscientizar o empresariado da importância da arqueologia. Mesmo pessoas comuns, que, na obra de uma casa ou um poço, encontram um objeto arqueológico, podem a partir da notícia informar sobre o achado às instituições de pesquisa. A legislação não é tão clara no quesito da preservação, daí a necessidade de muita negociação.

A descoberta de São Luís ocorre num momento de mudanças de visões até mesmo dentro da arqueologia. Arkley observa que museus e universidades estão tendo um olhar mais humano para evitar a exploração da morte e do universo simbólico de antigos povos. Quanto menos um espaço arqueológico for alterado melhor. “Se eu fosse um gestor público, eu ia procurar preservar o cemitério no local”, afirma o professor. “Eu preferia manter tudo na íntegra”, diz. Mas a realidade é outra, e mesmo pessoas esclarecidas costumam questionar o trabalho dos arqueólogos, observa. Então, resta a eles aproveitar a oportunidade possível para cumprir a missão de revelar como éramos há milhares de anos.

Publicidade

Iphan sempre foi um órgão incômodo para o governo

Rodrigo Mello Franco, criador do IPHAN, à direita, com o escritor Mário de Andrade.  Foto: Arquivo AE

Criado em 1937 na ditadura do Estado Novo, o Iphan teve como primeiro comandante Rodrigo Mello Franco. O político mineiro marcou sua gestão com a inovadora política de preservar cidades históricas. Ouro Preto ficou de pé muito por causa dele e da intelectualidade de sua época. Nas últimas décadas, passou a se entender como patrimônio histórico áreas até então marginalizadas, como terreiros de candomblé e feiras populares. lugares que contam especialmente o passado dos brasileiros esquecidos pelo presente. Mas o órgão sempre foi marginal na estrutura burocrática do Estado brasileiro.

Não é que as elites políticas ignoram a História. Elas valorizam a História que elas entendem como potencial de voto. É o caso do governador de Brasília, Ibaneis Rocha, do MDB, que vive em busca de dinheiro para construir um Museu da Bíblia na cidade. A própria equipe de Bolsonaro no Iphan estava mais disposta em reconhecer, por meio de uma portaria, o valor cultural das armas de fogo.

A elite dos novos “influenciadores” muito menos se interessou pelas notícias arqueológicas de São Luís, e ficou à margem da viralização do tema. Faça um exercício, leitor: veja quantos posts seu “influenciador” predileto, seja do campo político que for, escreveu sobre o assunto. Essa turma é tudo, menos idiota. Vive dos assuntos banais, em embates tóxicos. Se o tema não impacta e causa cancelamentos e constrangimentos, a discussão não vai para a frente. É comum ver essa gente discutir desindustrialização, saúde pública, inovação tecnológica, Amazônia para valer e patrimônio histórico?

Não há uma cultura de preservação das fontes arqueológicas. Muitos dizem que ossos e cacos velhos pouco importam, que as máquinas têm mesmo é de seguir em frente. É um ponto de vista. Mas esses devem aceitar o fato de que a arqueologia não é uma bobagem em outros lugares. Os noruegueses desligam o trator quando encontram restos de um barco viking, os romanos interrompem as máquinas se acharem uma miniatura do tempo dos godos. Os turcos jamais aceitam a destruição de algum ídolo dos hatitas. Áreas inteiras são fechadas para as pesquisas, grandes museus são construídos. O ensino e a indústria do turismo importam. A valorização da ancestralidade não é apenas um discurso.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.