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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise | Os planos e as reações de militares brasileiros diante das ameaças e ações de Trump contra aliados

Corte de ajuda militar para a Colômbia e as ameaças ao Canadá, Panamá e Dinamarca reforçam necessidade de o Brasil levar adiante os projetos do submarino nuclear, do míssil tático de cruzeiro e da artilharia de média altura

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:
Correção:

O exército e a polícia da Colômbia estão em busca de recursos para manter o combate aos guerrilheiros do ELN e aos dissidentes das Farc bem como aos narcotraficantes do Clã do Golfo. O corte da ajuda americana ao país – suspenso por 90 dias – e a perspectiva de que o governo de Gustavo Petro deixe de receber os US$ 400 milhões que os EUA enviaram ao país para operações militares na selva ameaça paralisar a frota de helicópteros Black Hawks, usados para transportar operações especiais. Ações estão sendo suspensas, facilitando a vida do crime organizado.

Helicópteros H-60L Black Hawk da FAB em voo: Exército comprou 12 dessas aeronaves em 2024, iguais às da Colômbia Foto: Johnson Barros/Força Aérea Brasileira (FAB)

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Aliado às ameaças de Trump à Dinamarca, um aliado da OTAN, e à soberania canadense e do Panamá despertaram a atenção de militares brasileiros e de integrantes da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa da Câmara dos Deputados. Antes de tudo, acredita-se que a nova administração americana afetará o relacionamento militar do Southcom, o comando sul americano, e suas relações com as Forças Armadas do Caribe e da América do Sul.

Durante seu comando, a general Laura Richardson chegou a defender um Plano Marshall para a região como forma de fechá-la à influência chinesa. Mais do que negar esse caminho, Trump sinaliza para a retirada do dinheiro americano que servia a muitos desses países. E onde o dólar sai, o yuan entra. Era o que Richardson dizia. As prioridades americanas serão outras, como o combate às drogas e o uso de Guantánamo para guardar imigrantes ilegais, inclusive brasileiros.

O tom assertivo da nova diplomacia americana pode, de acordo com militares ouvidos pela coluna, levar à revisão de parcerias. Embora não haja nada de concreto que afete as relações com o Brasil no campo da Defesa. Mas as especulações começaram. Entre os cenários vislumbrados pelos militares brasileiros ouvidos pela coluna está o de possíveis ameaças à soberania do País, o que forçaria o Brasil a buscar soluções militares cada vez mais autônomas em relação a potências extrarregionais. Mas isso tem um custo. E não é pequeno.

Forças Armadas do Brasil realizam exercício de adestramento com participação de militares chineses e norte-americanos durante a Operação Formosa, em 2024 Foto: Sargento Dias/Marinha do Brasil

Veteranos da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), disse que diversificar fornecedores “é positivo”. Para ele, a situação brasileira é diferente da colombiana. Primeiro, porque não há bases americanas no País – o governo Bolsonaro permitiu que a inteligência dos EUA operasse em Roraima, quando Washington buscou derrubar Maduro. Depois, porque “há pouco recurso americano no Brasil”. “Nós compramos (O Exército adquiriu, em 2024, 12 Black Hawks dos EUA por US$ 960 milhões). Temos helicópteros de fabricação americana e não americanos no País”, afirmou, em referência à prática de leasing adotada pela Colômbia.

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É nesse contexto que surge, para os militares, um novo momento para convencer as lideranças civis da importância de projetos como o Prosub – com sua frota de submarinos convencionais e um nuclear –, o MTC-300 (Míssil Tático de Cruzeiro com alcance de 300 quilômetros) e a aquisição de um sistema de artilharia de média altura. As assessorias parlamentares das Forças aguardam a definição da composição das Comissões de Relações Exteriores e Defesa da Câmara e do Senado para voltarem a defender previsibilidade dos gastos na área e dinheiro para projetos estratégicos para a nossa soberania.

A lógica por trás desse movimento é uma só: e, se depois do Canal do Panamá, for a vez da Amazônia? Para o coronel Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, do Centro de Estudo Estratégico do Exército, o Prosub e o MTC-300 são “um bom começo” para garantir a capacidade antiacesso/negação de área (A2/AD) para nossas forças. Permitiria negar o uso do mar e alvejar potenciais adversários antes de chegarem ao território nacional.

Com débito estimado em R$ 1 bilhão, a Avibras renegocia pela terceira vez suas dívidas judicialmente: na foto, o protótipo do MTC-300 Foto: JF Diorio / Estadão

O Prosub já entregou dois submarinos convencionais à Marinha e deve entregar outros dois, além do Álvaro Alberto, o primeiro a ter propulsão nuclear. Em construção no Complexo Naval de Itaguaí (CNI), litoral Sul do Rio, ele deve ficar pronto até 2033. Além disso, a Marinha prepara uma versão com alcance ampliado do míssil Mansup que atingiria alvos a até 200 quilômetros de distância e poderia ser usado para a defesa da costa pelos batalhões de fuzileiros.

O caso do MTC-300 depende do desenlace da crise da Avibrás, a empresa responsável pela produção do míssil em parceria com o Exército. Um consórcio de quatro empresas nacionais e estrangeiras apresentou uma proposta para salvar a indústria até 4 de abril. Entre elas estaria a Akaer, que lidera o consórcio Força Terrestre, responsável pela modernização dos blindados Cascavel. O MTC-300 poderia ser disparado pelo sistema Astros – suas primeiras unidades deviam ter sido entregues em 2020 em um programa cujo investimento estimado era de R$ 2,5 bilhões.

Outro ponto fundamental seria a aquisição da antiaérea de média altura. Este é um interesse das três Forças e, por isso, envolve o Ministério da Defesa. A solução poderia ser um acordo entre os governos do Brasil e da Índia, o que permitiria ao País adquirir o novo sistema de mísseis terra-ar Akash NG.

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O Exército lançou em 2024 uma consulta pública para a aquisição do sistema dentro do Programa Estratégico do Exército Defesa Antiaérea. A Índia está expandindo sua indústria de defesa e a compra de seus equipamentos não causaria questionamentos geopolíticos. Outra opção aposta em um projeto nacional, que poderia ser feito pela Avibrás.

O teste do míssil Spike LR2 em um centro do Exército brasileiro, no Rio Grande do Sul Foto: Reprodução / Exército Brasileiro

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O Exército está preparando o 12º Grupo de Artilharia de Campanha (12º GAC), com sede em Jundiaí (SP), para abrigar o novo sistema. Ao longo deste ano, ele se tornará o 12.º Grupo de Artilharia Antiaérea (12º GAAAe). Além da aquisição externa, o Exército não descarta o desenvolvimento dentro do nosso País, da mesma forma que ocorreu com o míssil anticarro MSS 1.2 AC, produzido pela Siatt, que se tornou fundamental para a dissuasão a qualquer aventura venezuelana em Roraima diante do atraso dos israelenses entregar os Spike LR2 e da relutância dos americanos em vender o Javelin.

Enquanto o Exército e a Marinha aguardam para saber com quem falar nas comissões do Congresso, o comandante da Força Aérea, brigadeiro Marcelo Damasceno, tem uma reunião marcada com parlamentares para esta semana. Deve tratar da Alada, a nova empresa da Força para cuidar de projetos aeroespaciais, e das prioridades de investimentos da Aeronáutica. Nas três forças há um consenso sobre a necessidade de deixar muito claro à sociedade brasileira a visão delas em relação à mudança do cenário geopolítico internacional.

Para muitos oficiais generais, o País poderá ser obrigado a buscar um nível de autonomia, termos soluções autônomas em relação a potências extrarregionais que, talvez, o Brasil não tenha tido até então. O posicionamento da política americana sob Trump em relação à América do Sul pode obrigar o Brasil a assumir novas responsabilidades como liderança regional. A dependência americana, porém, se manteria. “É muito, muito difícil substituir a indústria do ocidente. Causaria um terremoto técnico e doutrinário. muita coisa teria que mudar, a um preço enorme”, disse o coronel Paulo Filho.

Trump ameaçou a Dinamarca, o Panamá, o Canadá, a Colômbia e o México, todos aliados dos americanos. Foto: Evan Vucci/AP

Quando a Guerra Fria acabou e os americanos tentavam entender o seu lugar no mundo, Joseph Nye descreveu em um artigo de 19 páginas o que chamou de soft power: uma estratégia de se obter poder e prestígio sem o uso da força. Naquela época, os americanos já temiam o declínio da nação e pensavam que o protecionismo seria a melhor saída, livrando-se de compromissos externos. Mas tanto então como agora, é possível afirmar, como Nye fez, o quão contraproducente pode ser essa resposta. “Se a mais poderosa nação falhar em sua liderança, as consequências para a estabilidade internacional podem ser desastrosas.”

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Ainda mais em um mundo em que, como Henry Kissinger dizia já em 1975, se torna cada vez mais independente na economia, nas comunicações e nas aspirações humanas. Em 1990, Nye alertou que “a atual negligência dos EUA em relação ao fraco Terceiro Mundo podia reduzir a sua capacidade de influenciar as suas políticas” sobre temas como fluxo migratório, drogas e contrabando. Propôs o soft power como um modo mais atraente – e eficaz – de exercício do poder em relação aos meios tradicionais, como o uso da força. Trata-se de uma lição aprendida pela China.

Trump parece jogar tudo isso no lixo. Aposta nas ameaças explícitas à soberania de países aliados, no porrete das taxas e na estrutura militar, um dos poucos campos em que o poder americano – a capacidade de fazer coisas, controlar outros e obrigá-los a fazer o que de outra forma não fariam – permanece quase inconteste. Diante desse cenário, o que permitirá o Brasil ter um destino diferente do Panamá? É este o desafio que se coloca diante da Defesa e de nossos representantes.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

Correções

Em uma versão anterior do texto o nome do futuro submarino nuclear brasileiro estava errado. O correto é Álvaro Alberto

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