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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Brasília arde e faz contas. Como passar do antagonismo ao agonismo?

A hora é da paixão. Ao menos nas tribunas, pois nos bastidores prevalece o cálculo. Brasília arde e faz contas, flutua sobre estimativas e indefinições, sem que um futuro se vislumbre. Jogos de cena, palavras fortes, histrionismo, ofensas explícitas aos adversários, pressões e ameaças: está valendo tudo, políticos de direita, do centro e da esquerda usam e abusam de recursos que, à primeira vista, pareceriam surrados e inadequados, mas que parecem funcionar.

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Por Marco Aurélio Nogueira

A direita sempre soube empregá-los, mas imaginava-se que a esquerda -- a petista ou a dos que estão à esquerda do PT, como o PSol -- não se valeria deles. Basta uma rápida visualização do que dizem seus representantes na tribuna da Câmara para que caia por terra tal expectativa. A demagogia prevalece, revestida com aquela arrogância típica da esquerda, que se acha melhor que os demais e se sente autorizada a aconselhá-los sugerindo que pensem bem antes de se posicionar num processo que teria "inegável" e "inquestionável" caráter golpista.

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Não se fala somente de golpe, mas de obscurantismo, trevas, maldade, sujeira, criminalidade, larápios, corja, canalha, farsa, cicatrizes profundas, sangue esguichando sem parar. Quanto mais agressivo e pesado o palavreado, mais atenção os oradores imaginam obter. Ilusão, num jogo de poucos ouvintes e cartas marcadas.

Destes recursos tradicionais da política, dois têm sido mais intensamente empregados nestes dias que têm sido vividos -- demagogicamente -- como se estivessem a representar a "refundação" ou o "fim" da República democrática. Trata-se da chantagem e do medo. Compram-se votos com promessas, cargos e apoios. E com a bandeira do medo. "A palavra golpe estará para sempre gravada na testa dos traidores da democracia", disse Dilma. Foi secundada por Lula, para quem "o golpe do impeachment não passará" e "um passo errado, impensado" levará o país "ao caos e à incerteza permanente". Na tribuna, os deputados de esquerda seguiram os motes como palavras de ordem, que repetiram sem cansar. Para eles, se passar o impeachment na Câmara, será o apocalipse neoliberal.

Fora dali, as redes sociais estrebucham, com direito a exibições explícitas de sadomasoquismo e irresponsabilidade. Mais além delas, líderes e chefes dos movimentos sociais radicalizados reverberam os slogans, ameaçando "parar" e "incendiar" o país, ocupar diariamente as ruas e não dar trégua à "corja" que ousa dar um golpe na democracia.

Há muita vitimização e simulação: joga-se para amedrontar e ameaçar, com boa dose de blefe. À direita e à esquerda, por parte dos que defendem e dos que atacam o impedimento de Dilma. Dizem que Temer acabará com os programas sociais e a operação Lava-Jato, que Lula será preso, que Dilma convocará as Forças Armadas para garantir a ordem pública, que o país quebrará se a presidente ficar. Cada um tem seu golpe preferido na ponta da língua.

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Poucos medem o efeito de gestos e palavras, não se preocupam em considerar o que produzem na cabeça das pessoas, não analisam politicamente a situação, desprezam a compreensão das reais condições do país. É uma macrovocalização, feita por quem se acha predestinado a fazer a história por conta própria, com inimigos e sem aliados.

Juntos e abraçados, dão extraordinária contribuição para o travamento do futuro. Confundem, chantageiam e pressionam a pretexto de persuadir.

Mas é do jogo e o que cabe é torcer para que o processo enverede por uma trilha racional-legal que agregue mais e agite menos.

Lembro de uma conhecida teoria política que defende a relevância do conflito que busca se tornar legítimo e que, para isso, se dedica a não destruir as bases da associação política, procurando manter vivos os nexos que fazem com que as partes conflitantes permaneçam ligadas, interagindo não como amigos/inimigos, mas como adversários que compartilham referenciais comuns.

Chantal Mouffe propôs-se a fixar uma teorização que valoriza o agonismo e não o antagonismo como estratégia para radicalizar a tradição democrática moderna. O agonismo -- do grego 'agonistés', competidor, pessoa engajada em um desafio ou competição -- não esfria paixões nem diferenças, muito ao contrário, e também não faz com que a política se afaste do antagonismo. A pretensão de Mouffe é fazer com que se possa viver a política democrática como combate sem que se deslegitimem os oponentes, sem que se negocie com o propósito de produzir falsas "conciliações" ou processos racionalizados de negociação. Ou seja, procurando fazer com que o antagonismo potencialmente desagregador se transforme em "agonismo democrático", no qual oponentes e adversários estejam de acordo sobre um bom conjunto de regras, valores, princípios e procedimentos.

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Interessante e particularmente útil nos dias atuais.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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