Corregedor da PM de São Paulo vira coach nas horas vagas

Responsável por fiscalizar corporação de quase 85 mil pessoas, coronel Marcelino Fernandes oferece cursos motivacionais

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Por Brenda Zacharias , Carla Menezes , Isaac de Oliveira , Levy Teles , Luisa Laval e Marina Cardoso
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SÃO PAULO - Uma música de fundo tenta recriar o clima épico. Projetado contra a parede, o slide expõe o tema da palestra: “O que é o sucesso?”. O coach Marcelino Fernandes - de 54 anos, com careca reluzente, de terno bege e camisa bordô - dá conselhos à plateia enquanto caminha a passos firmes de um lado para o outro da sala. “Sonhos devem ser transformados em metas e metas em realidade. Mas, quando você sonhar, por favor, sonhe alto. Mire na Lua. Porque, se você errar, estará entre as estrelas.”

Entusiasta do coaching, Fernandes está à frente de cursos motivacionais desde 2013. Embora calcule já ter palestrado para mais de 25 mil alunos, esta não é sua principal atividade. Fora da sala de aula, ele atende por coronel Marcelino, o corregedor-geral da Polícia Militar. Em outras palavras, é o responsável por chefiar investigações de crimes cometidos por policiais - ou contra eles - em São Paulo.

Entusiasta do coaching, Fernandes está à frente de cursos motivacionais desde 2013 Foto: Werther Santana/Estadão

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Na Corregedoria, o coronel Marcelino deveria cumprir expediente de 40 horas semanais, mas costuma passar do horário todo dia, na tarefa de fiscalizar a corporação com quase 85 mil homens e mulheres, o maior efetivo do Brasil.  Para conciliar com as jornadas de coach, Fernandes se acostumou a dormir, segundo ele, quatro horas por noite. “Em dezembro, tiro férias e é quando acontece a maioria dos meus cursos”, diz.

Entre advogados da área de Direito Militar, ele é visto como corregedor "rígido", mas "garantista". Sob seu comando, o órgão atuou em uma série de casos emblemáticos, entre eles o assassinato da PM Juliane Duarte, executada pelo crime organizado em 2018. Ele também chefia a investigação sobre a morte de nove jovens após ação em um baile funk em Paraisópolis, em dezembro.

Já como coach, Fernandes costuma explorar a própria história em palestras. Filho de um cabo da PM, ele conta que trabalhou na juventude como auxiliar de garçom, vendeu pastel na feira e até engraxou sapatos em rodoviária. Hoje, no posto de oficial superior, recebe um contracheque mensal de R$ 25.237,98, segundo o Portal da Transparência do governo.

No Youtube, há palestras de Fernandes com mais de 23 mil visualizações. Também acumula fãs nas redes sociais - só no Instagram, onde se apresenta como “PM de Cristo” e publica pílulas diárias de conselhos, são 9,6 mil seguidores. “Nunca desista... A realização de seu sonho pode estar para acontecer ainda nesse ano, acredite e já agradeça! O nome disso é fé!”, diz em uma das mensagens.

Para chegar à posição de comando na PM, um episódio da adolescência teria sido decisivo, segundo relata nos cursos. Certa vez, viu militares batendo continência para “um cara cheio de medalha, de quepe e coisas douradas”. Impactado pela cena, Fernandes teria comentado em voz alta: “Vou ser coronel”. Ao ouvi-lo, o pai, que era policial de baixa patente, reagiu. “Moleque, para de falar besteira.”

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O “segredo” seria o método “Mentalização Ativa Intuitiva para o Sucesso”, o Mais, do qual Fernandes se declara criador. Em resumo, o Mais consiste em mentalizar sonhos e objetivos, para alcançá-los de maneira mais prazerosa. “Se você tiver vontade interior e for sua missão, com certeza vai conseguir”, afirma o coach ao Estado. “Todo mundo consegue dentro da sua crença, da ética, da honestidade. Tudo é possível.”

Além de membro do Instituto Brasileiro de Coaching (IBC) e da Sociedade Brasileira de Coaching (SBC), Fernandes apresenta no currículo uma formação em programação neurolinguística (PNL). Para o coaching, ele diz aplicar conceitos de PNL e também de física quântica.

O best seller de autoajuda O Sucesso Não Ocorre Por Acaso (1992), do cardiologista Lair Ribeiro, foi a primeira inspiração de Fernandes. Entre as suas referências, ainda aparecem os filósofos brasileiros Clóvis de Barros Filho e Mario Sergio Cortella, além de Napoleon Hill, Joseph Murphy e Dale Carnegie - estes últimos, nas palavras do coach, “os três mestres do sucesso”.

Aluna da primeira turma, a advogada Angela Bello aprova o método. “O curso me ajudou demais. Depois de participar, tomei coragem para abrir meu escritório e trabalhar por conta própria”, diz. Admiradora de Fernandes, a advogada Deomira Dias afirma que o coach a ensinou a “seguir um caminho que leve a algum lugar”. Segundo conta, foi por causa do curso que decidiu entrar na faculdade de Direito aos 50 anos.

Jornada dupla

Na Corregedoria, o coronel Marcelino é benquisto por advogados com experiência na defesa de PMs. Assim que assumiu o posto, uma das suas primeiras decisões foi desativar a carceragem que funcionava no órgão - o que agradou a categoria e foi interpretado por defensores como sinal de respeito a direitos humanos.

Fernandes é membro do Instituto Brasileiro de Coaching e da Sociedade Brasileira de Coaching Foto: Werther Santana/Estadão

Presidente da comissão de Direito Militar da OAB São Paulo, Fernando Capano diz que nunca recebeu queixa de abuso sobre a condução de processos desde que ele assumiu o posto. "Embora seja linha dura, é bem legalista", afirma.

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Entre os casos recentes, está o afastamento de 31 PMs que teriam participaram da ação no pancadão de Paraisópolis. "Acompanhei as oitivas dos policiais. Até segunda ordem, está tudo dentro do devido processo legal", diz o advogado, que representa agentes da ocorrência.

O advogado João Carlos Campanini avalia que, comparado a antecessores, o coronel Marcelino demonstra mais prudência na hora de punir PMs. "Não é que passe a mão: é que ele é bastante justo", afirma.

Para ele, a exceção teria sido em 2019, quando decidiu expulsar, às vésperas do julgamento em segunda instância, três policiais condenados pela chacina de Osasco e Barueri - um deles, seu cliente. "Foi a única situação que, no meu entender, faltou um pouco de tato, mas também não sei se houve ordem de cima."

"Acompanhei a passagem de cinco corregedores, seguramente o coronel Marcelino é o mais acessível à advocacia paulista. Recebe todos no gabinete", diz a advogada Flávia Artilheiro. "Mas também é um corregedor rigoroso. Esteve à frente de diversas investigações de vulto, como a Operação Ubirajara que prendeu 54 policiais", afirma.

Tida como a maior da história da Corregedoria, a ação aconteceu em dezembro de 2018, na capital, e mirou agentes que estariam recebendo dinheiro do tráfico.

Embora tenham atuação oposta no dia a dia, Flávia é elogiosa ao corregedor e relata que até já participou do curso oferecido pelo coronel. "Gostei muito, as técnicas e ferramentas que ele fornece foram muito úteis", afirma "Recomendei para o meu pai."

Algumas das atividades de coaching oferecidas por Fernandes são gratuitas. Já no Instituto Legale, onde ele é diretor acadêmico e dá aulas de Direito Administrativo e Didática, é preciso pagar para fazer parte das turmas. O coronel também ministra cursos de curta duração que custam R$ 99.

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Pelo regimento disciplinar da PM, nenhum policial pode trabalhar de forma remunerada fora da corporação - ainda que, na prática, o “bico” seja uma alternativa comum para driblar o salário baixo. As exceções são para atividades culturais ou educacionais, permitidas pela norma.

Professor de Direito Administrativo e Empresarial da Universidade Mackenzie, Armando Rovai afirma que a atuação do coronel Marcelino como coach é legal. “Desde que destinada ao conhecimento, não vejo problema nenhum”, diz. “Acho até salutar um servidor público, com experiência efetiva e preparo acadêmico, transmitir essa quantidade de conhecimento aos seus alunos.”

Especialista em Segurança Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rafael Alcadipani concorda que não há irregularidade, mas pondera que o corregedor-geral representa o órgão responsável por fiscalizar as regras da PM e, portanto, sua atividade fora da corporação pode incentivar outros policiais a cometer infrações. “Percebo que existe uma permissibilidade muito grande com relação aos bicos dos policiais por causa da situação financeira”, afirma.

Por sua vez, o coronel Marcelino é da visão que dificilmente outra atividade prejudica a rotina policial. “Não dá para ter um mecanismo para mensurar: ‘Está cansado? Está com bico’. Não dá pra fazer essa matemática." 

Em nota, a PM informou que foram instaurados ao menos 338 procedimentos disciplinares por “bico” até novembro deste ano. Desses, 130 policiais foram punidos por transgressão, os demais processo estavam em andamento.

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