Brasil não preparou sistema de saúde para atender população envelhecida; veja 8 principais desafios

Para especialistas, embora cenário de envelhecimento acelerado já fosse esperado, País não avançou na estruturação dos recursos físicos e humanos necessários para lidar com questões de saúde mais prevalentes entre idosos

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Foto do author Cindy Damasceno
Por Fabiana Cambricoli e Cindy Damasceno
Atualização:

Embora estudos mostrassem há décadas que o Brasil passaria por um envelhecimento populacional acelerado como o retratado pelos números do Censo 2022 divulgados nesta sexta, 27, e que isso exigiria uma preparação do sistema de saúde para lidar com novas demandas epidemiológicas, o País não conseguiu avançar com a rapidez necessária e agora terá um cenário ainda mais desafiador para os próximos anos, segundo especialistas.

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Se por um lado, o envelhecimento populacional deve ser celebrado como um reflexo dos avanços da Medicina e de melhores condições de vida, por outro, ter uma população mais envelhecida traz o ônus do aumento da incidência de problemas de saúde como doenças cardiovasculares, cânceres e demências.

No Brasil, esse desafio é agravado pela escassez de profissionais especializados e de leitos em instituições de longa permanência ou de reabilitação, pela falta de centros-dia de assistência e de serviços domiciliares e pelo preconceito etário. A ausência de políticas públicas que promovam a integração do idoso e incentivem conexões sociais tem impacto na saúde mental dessa população, que tem taxas crescentes de depressão e outros transtornos.

“A gente tem há décadas pesquisas mostrando o aumento de idosos, a queda das taxas de fecundidade. Isso não é novidade, mas poucos setores da sociedade se moveram para fazer algo. E o primeiro fator que explica isso é o idadismo”, diz Alexandre Kalache, médico geróntologo e presidente do Centro Internacional da Longevidade.

Para ele, lideranças políticas, instituições de saúde e a própria sociedade se negam a enxergar as necessidades dessa população, o que impediu que nos preparássemos com mais calma para o cenário de envelhecimento. “Fizemos a análise dos 37 partidos políticos brasileiros e só em dois ou três o tema do envelhecimento e da longevidade entram na pauta. Nas escolas médicas, só 10% tem uma disciplina de geriatria”, destaca.

Brasil não se preparou adequadamente para atender demandas de saúde de uma população mais envelhecida Foto: Diego Cervo/Adobe Stock

Um trabalho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) publicado em abril mostrou que apenas 0,7% dos médicos que concluíram a residência em 2020 se especializaram em geriatria, índice que se manteve praticamente estável ao longo dos dez anos anteriores e que contrasta muito com os 9,5% dos que concluíram a especialização em pediatria, por exemplo. O Brasil tem hoje pouco mais de 2,6 mil geriatras, mas a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) estima que o déficit seja de 28 mil desses profissionais.

“Precisamos de mais geriatras, mas também precisamos capacitar os demais profissionais de saúde para ter um olhar individualizado para o idoso”, diz Maisa Kairalla, médica geriatra da SBGG.

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O estudo do IEPS mostra que, também na contramão da demanda brasileira, o número de leitos em instituições de longa permanência ou de reabilitação caiu de 0,6 para mil idosos em 2010 para 0,4 para mil idosos em 2021.

“O sistema de saúde está pouco preparado porque tem baixa disponibilidade de recursos humanos e físicos no cuidado de idosos. O número de geriatras e de leitos está estagnado. Só 36% dos municípios brasileiros têm instituições de longa permanência e a maioria delas são privadas. Os cuidados domiciliares, que são um pilar central da assistência ao idoso em outros países, também não estão bem estruturados no Brasil”, diz Matías Mrejen, pesquisador sênior do IEPS e um dos autores do estudo.

Veja abaixo os principais desafios do envelhecimento populacional para o sistema de saúde brasileiro, segundo especialistas:

Doenças crônicas não detectadas ou descompensadas

Com o envelhecimento populacional, aumenta a prevalência de doenças crônicas, como hipertensão arterial (mais conhecida como pressão alta) e diabetes. Sem controle ou tratamento, elas levam a quadros de infarto e acidente vascular cerebral (AVC), hoje as principais causas de morte no País.

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Embora tenhamos tido avanços nos tratamentos destas doenças nas últimas décadas, milhões de brasileiros ainda convivem com esses problemas sem saber ou não seguem as recomendações médicas. Somente a hipertensão afeta cerca de 30 milhões de pessoas no País. “Um terço dessas pessoas não foram diagnosticadas. Outro terço não faz o controle adequadamente”, diz Kalache.

Gargalos no diagnóstico e tratamento do câncer

Outro problema de saúde que aumenta à medida que nossas células envelhecem são os tumores. No Brasil, segundo dados do portal Datasus, do Ministério da Saúde, o número de mortes por câncer cresceu 26,8% na última década, passando de 191,5 mil em 2012 para 242,9 mil no ano passado.

O cenário epidemiológico exige investimento no sistema de saúde para que seja possível diagnosticar os tumores mais precocemente, quando eles têm maior chance de cura, e tratá-los com as melhores tecnologias disponíveis. Segundo levantamento do Instituto Oncoguia com base em dados do ministério, dois terços dos brasileiros com câncer receberam o diagnóstico com a doença localmente avançada ou já com metástase.

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Demências e transtornos mentais

O aumento de pacientes com Alzheimer e outras demências também é esperado em países com maior proporção de idosos. “Estima-se que 40% das pessoas com 85 anos ou mais terá algum nível de declínio cognitivo”, diz Kalache.

Hoje, o Brasil já contabiliza cerca de 1,2 milhão de pessoas com demências e são esperados pelo menos 100 mil novos casos por ano, o que aumenta a necessidade tanto de serviços de saúde para dar assistência a essas pessoas quanto de políticas para prevenir ou postergar o aparecimento da condição.

Transtornos mentais também são outro ponto de atenção da saúde do idoso. Pesquisa feita em 2019 pelo governo federal mostrou que a faixa etária dos 60 aos 64 anos era a mais afetada com depressão (13,2%). Segundo especialistas, o cenário deve ter se agravado após a pandemia. “Os idosos foram os que mais sofreram com sequelas físicas, perdas, isolamento. Isso ainda não está superado”, diz Maisa Kairalla.

Problemas osteoarticulares

Outro problema que impacta a qualidade de vida e funcionalidade do idoso e sobrecarrega o sistema de saúde são as doenças osteoarticulares, como osteoporose e artrose. O enfraquecimento dos sistemas que dão sustentação ao corpo aumentam ainda o risco de quedas, que, em idades mais avançadas, representam uma causa importante de morte e incapacidade.

Para especialistas, é preciso trabalhar com a prevenção desses problemas (veja mais abaixo) para que os idosos cheguem à velhice menos vulneráveis a esses problemas, mas também é necessário fortalecer a rede de saúde com leitos de reabilitação e profissionais como fisioterapeutas.

Falta de políticas de prevenção

Todos os problemas acima, embora sejam, de fato, mais prevalentes em idosos, podem ser muito menos frequentes em populações que, desde a idade adulta, são incentivadas a adotar hábitos de vida mais saudáveis, com dieta adequada, peso sob controle e rotina com atividades físicas. O tabagismo e o consumo exagerado de álcool e outras drogas também devem ser evitados.

Tais decisões, porém, não devem ser colocadas somente sob uma perspectiva de escolha individual, dizem os especialistas. “A gente tem que preparar a pessoa que está com 40 anos hoje para envelhecer com saúde: fazer com que ela tenha engajamento na dieta, oferecer acesso à saúde para que ela faça seus exames básicos, receba vacinas. É preciso ter políticas públicas de prevenção e promoção da saúde”, diz Maisa.

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É importante ainda que, para além do sistema de saúde, as cidades ofereçam mais espaços verdes e acessíveis, transporte de qualidade e também acessível, mais segurança e atividades culturais e sociais para que o cuidado da saúde seja facilitado. “Tem idoso que não consegue vir à consulta porque o ônibus que passa perto da sua casa não tem acessibilidade. Isso precisa mudar”, diz a geriatra.

Déficit de profissionais e leitos

O já mencionado déficit de geriatras e de outros profissionais da saúde capacitados para as demandas do envelhecimento deve ser enfrentado, sim, com aumento de vagas nos sistemas público e privado, mas também com a sensibilização dos recém-formados para essa nova realidade demográfica.

Para os especialistas, as escolas médicas precisam dar mais ênfase a essa especialidade desde a graduação e a sociedade deve parar de invisibilizar essa população. “Nem sempre o problema é a falta de vagas de residência médica de geriatria. Falta também interesse e conhecimento sobre a área”, diz Maisa.

Sobre a falta de leitos para essa população, Kalache defende como medida prioritária a abertura de centros de convivência para os idosos. Esses equipamentos, diz ele, podem oferecer cuidados básicos de saúde e promover conexões sociais e integração ao mesmo tempo que evitam que familiares sejam obrigados a deixar seus empregos para os cuidados com o idoso.

Carga do cuidado sobre familiares - sobretudo mulheres

Como a estrutura de leitos e centros de convivência ainda é insuficiente e a maior parte da população brasileira não tem condições de pagar serviços particulares, o cuidado dos idosos hoje é majoritariamente feito por familiares, especialmente pelas mulheres.

Em muitos casos, um dos integrantes da família precisa abandonar o emprego para se dedicar à assistência aos pais, avós ou companheiros. “Isso tem um impacto na renda das famílias brasileiras e pode mudar significativamente a participação feminina no mercado de trabalho”, alerta Matías Mrejen, do IEPS.

Desigualdades sobrepostas

As questões acima tornam-se ainda mais desafiadoras ao considerar o cenário de desigualdade social, racial e de gênero no País. O estudo do IEPS mostra que, quando maior a renda da população idosa, melhor é seu estado de saúde, conforme relatos dos próprios idosos.

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Por isso, para enfrentar as questões de saúde próprias do envelhecimento, é também preciso olhar para as demandas específicas das populações mais pobres e marginalizadas. “A demanda de um idoso do Jardim Paulista não é igual à de um que vive em Paraisópolis. Não adianta você falar que o idoso precisa ser ativo, ir a atividades culturais, ao teatro se ele não consegue nem entrar em um ônibus por não ser acessível. É preciso ouvir a necessidade de cada um e dar protagonismo a eles”, destaca Kalache.

Ministério da Saúde diz investir em ações e capacitação

Questionado sobre o que planeja diante do cenário de envelhecimento acelerado no País, o Ministério da Saúde afirmou que “tem se organizado para acompanhar e preparar a rede de atenção à saúde” diante do cenário e que “estão sendo estruturadas ações para qualificação dos profissionais de saúde em temáticas do envelhecimento por meio de parcerias com hospitais de excelência (projeto PROADI-SUS), além de projetos de ensino-pesquisa e capacitação em parceria com universidades e instituições de ensino”.

De acordo com a pasta, “também são realizadas articulações intersetoriais e interfederativas para qualificação da rede de atenção à saúde da pessoa idosa com ações de estímulo à avaliação multidimensional, com vistas ao cuidado integral e integrado, conforme preconizado na Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa”.

Outra prioridade, diz o ministério, é qualificar a rede de atenção diante da crescente demanda por cuidados de longa duração às pessoas idosas que deles necessitam.

O órgão diz que a principal porta de entrada para o SUS, as unidades básicas de saúde (UBSs), estão preparadas para lidar com as diferentes demandas da população idosa.

“No nível da Atenção Primária, espera-se que sejam solucionados 85% das demandas e situações de saúde mais comuns, incluindo as das pessoas idosas. Elas recebem atendimento principalmente em UBSs, mas também podem receber cuidados em reabilitação com equipes multiprofissionais (e-Multi) como com profissionais da fisioterapia, da fonoaudiologia, da terapia ocupacional ou da psicologia”, informou o ministério, em nota.

A pasta destacou ainda a existência das academias da saúde, dos ambulatórios de geriatria/gerontologia e outros ambulatórios de especialidades clínicas. O ministério não detalhou o número de leitos em unidades de longa permanência nem a capacidade de atendimento em centros de reabilitação.

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Ainda no campo da capacitação de profissionais, o ministério disse que “o treinamento e a reciclagem de profissionais são incentivados por meio de articulação com Estados e municípios e cabem à gestão municipal e estadual a definição e priorização das principais ações e temáticas para treinamento”. Disse ainda que disponibiliza diversos cursos na plataforma Unasus que abordam a temática do envelhecimento e da saúde da pessoa idosa, com mais de 50 mil matrículas realizadas.

Por fim, informou que lançou, neste ano, programa para oferecer cuidado com equipes Multidisciplinares (e-Multi) na Atenção Primária à Saúde e que o geriatra é um dos especialistas que integram a iniciativa. A pasta não informou quantos desses profissionais integram o programa nem sua capacidade de atendimento.

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