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Clínicas privadas ameaçam reduzir serviços de diálise no SUS e cobram mais verba

Gestores de unidades particulares reclamam de defasagem de valores pagos pelo governo para procedimentos para pacientes com problemas renais; Estados dizem que reajuste é responsabilidade exclusiva da União

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Por Pedro Nakamura
Atualização:

Três vezes por semana, a pensionista Leda Kani, de 81 anos, vai até Perdizes, zona oeste da capital paulista, para fazer sessões de diálise em uma clínica privada às custas do Sistema Único de Saúde (SUS). “É uma rotina desgastante”, conta. Ela começou o tratamento em 2020 após oito anos com problemas nos rins. A idosa não queria fazer a terapia, mas foi convencida por um médico. “Todo o mal-estar que eu sentia não sinto mais”, diz.

O valor pago pelo SUS, porém, é insuficiente para custear a hemodiálise de 112 mil pacientes da rede pública que, como Leda, são atendidos em clínicas privadas. Hoje, unidades particulares já falam em fechar ou reduzir vagas se não houver reajuste neste repasse, segundo gestores de clínicas entrevistados pelo Estadão.

A pensionista Leda Kani, de 81 anos, passa por sessões de diálise em uma clínica privada na zona oeste de São Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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O setor pressiona o poder público por um adicional de até 47% aos R$ 218 remunerados hoje pela sessão do tratamento, valor que é integralmente custeado pelo Ministério da Saúde na maioria das unidades da federação. Pelo menos três Estados - Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul - ainda complementam o valor demandado pelas clínicas.

No Distrito Federal, unidades médicas têm solicitado redução de até 25% na quantidade de atendimentos à rede pública. Já a Sociedade Gaúcha de Nefrologia enviou carta ao governo estadual relatando que as clínicas não terão “condições básicas” de atender novos pacientes ou fazer consultas a partir de outubro.

A maior rede de diálise do Brasil, a DaVita, com 91 unidades em 15 Estados, também ameaça abandonar o SUS e exige do poder público a sinalização de reajuste até o mês que vem – a multinacional atende a cerca de 14 mil pacientes do SUS, cerca de 10% dos pacientes em diálise no País.

São Paulo, Distrito Federal e Rio Grande do Sul encaram a maior defasagem em relação à tabela paga pelo Ministério da Saúde, entre 44% e 47%, conforme a Associação Brasileira de Clínicas de Diálise e Transplantes (ABCDT).

“Como as clínicas estão com menor saúde financeira, têm menos recursos até para manter a qualidade de vida dos pacientes. Há mais pessoas sendo internadas por infecções de acesso vascular e outros problemas que antes eram melhor resolvidos”, alerta o médico nefrologista Dirceu Reis, que preside a Sociedade Gaúcha de Nefrologia.

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As diálises são terapias que substituem as funções de um rim deficitário e cerca de 112 mil pacientes do SUS com doenças renais crônicas dependem de clínicas particulares para o tratamento, diz a ABCDT, que culpa a inflação, o dólar e o alto preço dos insumos, em sua maioria importados, pela asfixia do setor.

A iniciativa privada gere dois terços dos 1.325 estabelecimentos que prestam o serviço à rede pública do País, conforme dados coletados pela reportagem no DataSus, do Ministério da Saúde.

“As clínicas, nessa situação, não investem na manutenção da qualidade dos serviços, como a troca periódica de equipamentos, que vão desde um simples ar-condicionado até a própria máquina de diálise, além do reaproveitamento de insumos. Tem um círculo vicioso porque a manutenção de uma máquina mais velha custa mais”, explica o nefrologista Yussif Ali Mere, presidente da ABCDT, que teme ver unidades irem à falência pela verba insuficiente. De 2016 até agora, foram 40, estima a associação.

No fim de 2021 e após cinco anos sem reajustes, o ministério chegou a incrementar o valor pago pela hemodiálise em 12,5%, de R$ 194 para R$ 218, mas o repasse foi incapaz de cobrir os custos que cresceram no período e que continuam a aumentar, diz Ali Mere.

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Isso tem intensificado casos de internação hospitalar para a realização de diálise de pacientes com doenças renais que não encontram vagas em clínicas, segundo Dirceu Reis. “Na última semana, havia dez internados só no hospital de referência em que trabalho”, diz o médico, de Porto Alegre.

Ao Estadão, a Secretaria da Saúde gaúcha admitiu o problema, mas afirmou que há vagas ambulatoriais para diálise no Estado. “Se não for possível (ser atendido) em seu serviço de referência, (o paciente) prontamente é encaminhado para outro disponível”, disse em nota.

Pressão da iniciativa privada preocupa gestores

O aumento insuficiente do ministério fez com que o setor mirasse as secretarias estaduais com pedidos por complementação dos valores faltantes. Apesar do déficit estar na casa dos 39% na média nacional, o custo real da hemodiálise varia entre R$ 293 e R$ 321, a depender do Estado, estima a ABCT, o que faz os pleitos variarem localmente. Enquanto o setor pede recomposição de R$ 103 por sessão em São Paulo, o incremento reivindicado é de R$ 74 na Paraíba.

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“Ou o setor abre uma mesa nacional junto ao Ministério da Saúde e solucionamos nacionalmente, ou vamos fragmentar discussões em todos os entes da federação, o que é inadequado porque desorganiza o SUS”, critica o médico sanitarista Nésio Fernandes, secretário de saúde do Espírito Santo. Ele também preside o Conass, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

“As terapias renais substitutivas estão em uma linha de financiamento do ministério em que, via de regra, não há o cofinanciamento dos Estados. Mas as clínicas acabam pressionando os Estados e municípios porque somos os signatários dos convênios”, pondera o médico ortopedista Eduardo Ribeiro, secretário-executivo de Saúde do Estado de São Paulo, que defende um debate federal sobre o reajuste.

A pressão contra os Estados, porém, não tem vingado. “Governos acham que gestor de clínica é um milionário, que está ali para ganhar dinheiro. Pelo contrário”, critica o médico nefrologista Osvaldo Merege, presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia.

Em torno de 60% das sessões de diálise são feitas por clínicas menores, segundo a ABCDT. Mas as ameaças de suspensão do atendimento ao SUS por algumas redes privadas têm sido vistas com desconfiança por gestores públicos.

O administrador Bruno Haddad, CEO da DaVita, nega que a multinacional esteja fazendo lobby pelo reajuste para cobrir lucros menores que o esperado. “Estamos, de forma muito responsável, avisando da situação há mais de seis meses, de forma antecipada e pedindo ajuda. Não estamos ameaçando fechar, mas dizendo para os gestores que há uma inviabilidade completa e pedindo, por favor, que façam algo”, justifica Haddad, que projeta um novo foco para a empresa no atendimento a pacientes de planos privados.

Isso porque, diz ele, o grupo não pode mais “subsidiar a realidade do SUS”. De 91 clínicas no País, 46 foram adquiridas pela DaVita nos últimos dois anos, a maior parte delas pequenas ou médias unidades que estavam em dificuldades financeiras.

A DaVita tem focado sua pressão por verbas no Estado de São Paulo, onde a rede controla cerca de 14% das clínicas de diálise que atendem o sistema público e a defasagem da terapia em relação à tabela SUS é maior.

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Segundo o médico nefrologista Sérgio Dias, que hoje pesquisa o mercado de diálise brasileiro em seu doutorado pela FGV, o setor vem sofrendo achatamento progressivo nos lucros nos últimos anos, o que, no longo prazo, pode sucatear o atendimento ao dificultar investimentos em novas máquinas e na expansão dos negócios.

Dias alerta, porém, que a concentração na mão de poucos prestadores pode favorecer a criação de um poder de barganha frente a convênios ou o SUS. “Em 2015, uma lei federal abriu espaço para multinacionais do ramo participarem do mercado nacional. Essa entrada foi evoluindo, assim como a concentração nesse setor, o que pode eventualmente trazer problemas. Se houver cartelização da diálise, empresas podem ameaçar a suspensão de atendimentos por reajustes”, diz ele.

Financiamento do SUS é compartilhado, diz ministério

Em carta de julho ao Ministério da Saúde, o Conass e o Conasems, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, manifestaram preocupação frente à pressão do setor de diálise junto aos Estados e municípios. Para as entidades, essa terapia deveria ter financiamento exclusivo da União.

Em nota, o Ministério da Saúde disse repassar mensalmente recursos financeiros a todos os Estados e municípios para custear procedimentos e serviços hospitalares, incluindo sessões de hemodiálise.

Em 2021, diz a pasta, foram R$ 63,1 bilhões repassados aos fundos estaduais e municipais de saúde. Já em 2022, até agosto, foram mais de R$ 36,3 bilhões, argumenta. “Vale lembrar que o financiamento do SUS é tripartite, cabendo a participação de Estados e municípios”, completa.

Procurada, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal não respondeu às perguntas, mas disse contar com sete clínicas de hemodiálise conveniadas, que juntas oferecem 1.003 vagas na terapia mensalmente, mais 475 de diálise peritoneal.

“É importante esclarecer que a secretaria segue a tabela SUS com valores estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Sendo assim, a Pasta recebe a verba do órgão federal e repassa para as clínicas conveniadas, conforme pactuado em edital de credenciamento”.

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A Secretaria de Saúde gaúcha não respondeu se irá recompor os valores demandados pelo setor, mas informou ter 63 serviços de diálise habilitados no Estado, 26 deles privados, e que “há novas solicitações de habilitação junto ao Ministério da Saúde em tramitação”. A pasta afirma haver vagas disponíveis para novos pacientes em diversos serviços no Rio Grande do Sul.

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