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Diagnosticada com autismo nível 1, conhecido como autismo leve, a jornalista Renata Simões vai debater abertamente sobre o tema

Opinião|Duvidar sempre: a autopercepção é um desafio para típicos e atípicos

As pessoas entram em conversas não para aprender, mas para ganhar. Isso é quase autista

“Você tem de aprender a se relacionar de uma maneira menos autista.” Não tivesse vindo da minha terapeuta, essa frase me despertaria uma mistura de desconfiança e ódio. No contexto da sessão, gerou uma gargalhada. Para quem não está no espectro entender: é comum pessoas com TEA se relacionarem “só do seu lado”. Um modo de agir que vale para todas as relações, não só as românticas. Você não necessariamente contempla o que o outro está sentindo ou entendendo da situação. A percepção é de que todos sentem o mundo como você, e só depois você se lembra que nem sempre isso acontece. Na prática, é preciso exercitar a dúvida de sua certeza.

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No começo da vida com diagnóstico isso foi um choque. Se tudo no autismo é levado “ao pé da letra”, imagina ouvir que é preciso questionar o que é uma afirmativa dentro de si? Saí de “acredito veementemente em tudo o que penso”, para “não posso confiar na minha própria compreensão”. E não é assim. Muito do que sinto está em coerência com o que acontece. É que leva um tempo para calibrar esse balizador.

Uma das maneiras de fazer esse ajuste é perguntar, como em uma checagem de fatos. Pessoas no espectro costumam ter taxas maiores que a média da população de alexitimia, dificuldade em reconhecer seus sentimentos e imaginar a mente dos outros. “Reconhecer seus sentimentos” me é infinitamente mais fácil que imaginar a mente dos outros. Constantemente pontuo como me sinto nas minhas relações. Ainda hoje percebo momentos em que não contemplo o que o outro está sentido ao longo do caminho.

A necessidade de se questionar constantemente gera uma insegurança quando se descobre que essa é a maneira que sua mente opera. Você começa a duvidar de todas as suas percepções. Com o tempo, é possível verificar de forma mais precisa. No fim, a prática da dúvida faz todo o sentido – difícil é acomodar isso no dia a dia acelerado e programado para o sucesso.

A autopercepção é um desafio para típicos e atípicos. Por mais que a ciência já tenha explorado a questão dos vieses cognitivos, e a psicologia estabeleça limites para a intuição e entendimento humano, nossa sociedade não estimula o hábito de questionar. Ao contrário, encoraja a individualidade. Com isso, as pessoas não entram numa conversa para ouvir, aprender e trocar. Entra-se no ringue para ganhar, para fazer com que a nossa certeza seja comprovada como verdade absoluta. Vocês nem imaginam o quanto isso é autista.

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A dita dificuldade de relacionamento do autista parece que se expandiu para nossa sociedade. Será que estamos mesmo nos relacionando com o outro, ou na verdade só tentando adequar o mundo ao roteiro que queremos? Deixo aqui então essa dica: lembrar de duvidar. Por exemplo, esta semana li sobre exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas. Faz sentido seguir nesse modelo em meio a uma crise climática?

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