Estados veem risco de desabastecimento da AstraZeneca nas próximas semanas

Demanda pela segunda aplicação será crescente nos próximos meses e deve desafiar planejamento de encurtar período entre doses. Secretários cobram liberação para misturar vacinas

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Por Mariana Hallal e Ítalo Lo Re
Atualização:

Estados veem risco de desabastecimento de vacinas da AstraZeneca para as próximas semanas. O receio ocorre diante de um cenário em que a demanda pelas doses produzidas no Brasil pela Fiocruz seguirá em alta, e deve se intensificar ainda mais com o plano de encurtar o intervalo entre as aplicações, de 12 para oito semanas. Trinta e dois milhões de pessoas começam a retornar para a 2ª dose da AstraZeneca a partir de setembro até novembro.

Nesta quinta-feira, 9, metade dos postos da cidade de São Paulo estava sem o imunizante e ainda não há previsão de reabastecimento. As contas já estão sendo feitas pelos secretários de saúde de outros locais. Parte deles reforça a posição de que será necessário misturar doses de diferentes fabricantes entre 1ª e 2ª dose para fazer frente à demanda crescente. A adoção do chamado esquema heterólogo (aplicação da AstraZeneca na 1ª dose e Pfizer na 2ª, por exemplo) está em análise pelas autoridades.

Vacinação contra a covid-19 em unidade básica de saúde (UBS) de São Paulo. Foto: Governo de SP

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Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Lula diz que já havia expectativa de faltar doses da vacina da AstraZeneca para completar os esquemas vacinais iniciados nos últimos meses. O desabastecimento pode acontecer principalmente em Estados e municípios que usaram as vacinas destinadas à 2ª aplicação como 1ª dose.

"A gente já tinha pedido ao Ministério da Saúde para resolver isso com o intercâmbio de vacinas", diz Lula. Estudos mostram que é seguro e eficaz fazer o chamado esquema heterólogo. No País, isso foi feito em gestantes que tomaram o imunizante fabricado pela Fiocruz antes de a Anvisa recomendar a suspensão do uso das vacinas de vetor viral neste grupo.

No Maranhão, o intervalo entre a 1ª e a 2ª dose da AstraZeneca é de 12 semanas. Lula ainda não se compromete a diminuir esse tempo para oito semanas a partir de 15 de setembro, conforme orientação federal. "O ministério não disse no que está se baseando para fazer essa conta. Só poderemos diminuir o intervalo quando a vacina chegar aqui", reforça.

A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo informou que está cobrando o envio de 4 milhões de doses da AstraZeneca para concluir esquemas vacinais com vencimento em setembro e outubro. “Caso o governo federal não tenha disponibilidade de mais remessas da AstraZeneca, o Estado aguarda envio imediato do quantitativo da Pfizer para suprir esta demanda e concluir os esquemas em conformidade com a solução de intercambialidade indicada pelo próprio PNI.”

O secretário municipal de Saúde de São Paulo, Edson Aparecido, diz que estava conseguindo cumprir o calendário de aplicação da 2ª dose até esta quarta-feira. Na manhã de quinta, o estoque era de só 37 mil doses, insuficiente para abastecer todas as unidades. "É a primeira vez que estamos tendo problemas com a 2ª dose da AstraZeneca", diz.

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Questionado sobre a possibilidade de aplicar uma dose de Pfizer em quem recebeu a 1ª de AstraZeneca, Aparecido diz que essa poderia ser uma saída viável se houvesse Pfizer em abundância. No momento, esses imunizantes estão sendo usados na vacinação de adolescentes, que têm aderido fortemente à campanha.

Fila para vacinação contra a covid-19 em posto na região da Avenida Paulista, em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

O secretário de Saúde do Espírito Santo, Nésio Fernandes, também cobra mais diretrizes ao ministério sobre a falta de doses e a possibilidade de adotar o esquema heterólogo. "A câmara técnica do PNI [Programa Nacional de Imunização] e gestores estaduais são favoráveis ao assunto. Só falta o ministério se posicionar." Para ele, a redução do prazo de aplicação entre doses aumenta ainda mais o desafio de cumprir o calendário. "Se o ministério quiser antecipar a 2ª dose, será praticamente obrigado a aprovar o esquema heterólogo", diz.

A epidemiologista Ethel Maciel relembra que, na nota técnica 6/2021, o ministério determinou que vacinas heterólogas podem ser administradas quando houver indisponibilidade do imunizante aplicado como 1ª dose e o intervalo entre doses já estiver no limite. O documento do órgão ficou conhecido por determinar que gestantes e puérperas (mães que tiveram o filho há até 45 dias) vacinadas com a 1ª dose da AstraZeneca poderiam receber a 2ª dose de outros imunizantes.

Ainda com esse trecho presente em uma nota técnica, de acordo com Maciel, os critérios para a vacinação heteróloga seguem vagos no País, não havendo uma indicação de como os municípios devem agir em casos de falta de segunda dose. “Essas orientações precisam estar mais explícitas, mais claras e mais assertivas, para que não haja demora e confusão”, defende a epidemiologista.

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Em Florianópolis, o secretário municipal de Saúde, Carlos Alberto Justo da Silva, diz que, como o município reservou as segundas doses enquanto fazia a primeira aplicação, a previsão é que não irá faltar vacina da AstraZeneca para completar o esquema vacinal na cidade. Ele reconhece, porém, que esse pode ser um problema para municípios que não guardaram a quantidade total de segundas e contaram com a chegada de novas remessas.

Consultados pelo Estadão, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Tocantins afirmam que podem enfrentar desabastecimento da vacina da AstraZeneca caso o governo federal atrase as entregas previstas. Em Mato Grosso, municípios que não reservaram a segunda dose correm risco de ficar sem vacinas para cumprir esta etapa. O governo de Santa Catarina também admitiu que pode ficar sem estoque de AstraZeneca e, caso isso aconteça, usará a vacina da Pfizer.

Fiocruz diz que 15 milhões de doses estão asseguradas para setembro

Com 32,8 milhões de primeiras doses de AstraZeneca aplicadas no País nos meses de junho a agosto, a alta demanda por segundas doses pode dificultar os planos de encurtar o intervalo entre aplicações da vacina.

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Seguindo o intervalo máximo de 12 semanas, as 32,8 milhões de segundas doses que completam o esquema vacinal de quem foi vacinado de junho a agosto teriam de ser administradas do início de setembro ao final de novembro no País. Para encurtar o intervalo, por outro lado, a mesma quantidade de doses teria de ser aplicada no máximo até outubro.

Dados do Ministério da Saúde apontam que foram distribuídas aos Estados até aqui um total de 101,1 milhões de doses de AstraZeneca, sendo que 83 milhões delas já foram aplicadas de janeiro a agosto. Em tese, há cerca de 18 milhões de doses restantes que serão somadas às vacinas que ainda vão ser entregues para aplicação de segunda dose.

A Fiocruz informou que recebeu na última sexta-feira, 3, mais um lote de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) da vacina contra covid-19, o que seria suficiente para a produção de mais 4,5 milhões de doses. “A remessa, somada às duas anteriores recebidas no mês de agosto, comporá as entregas ao Ministério da Saúde no mês de setembro, a serem realizadas a partir da semana de 13 de setembro. Com o novo lote, já estão asseguradas para este mês cerca de 15 milhões de vacinas”, acrescenta.

Na semana passada, a Fiocruz tornou público um atraso na chegada da matéria-prima, o que a fez interromper por cerca de dez dias as entregas previstas. As doses devem voltar a ser entregues a partir da próxima segunda-feira, 13.

Coordenador na Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt não descarta a possibilidade de faltar doses para completar o esquema vacinal de quem foi vacinado com a primeira dose da AstraZeneca. “Pelo que vimos, as distribuições são feitas em um cenário de não atraso, sempre contando com a produção máxima”, explica.

Schrarstzhaupt reforça que, a cada semana sem produção, passa a ser necessário, “na melhor das hipóteses”, ir ‘comendo’ o estoque excedente, caso haja. Com isso, a vacinação com a segunda dose, que já é considerada ajustada no País, torna-se ainda mais desafiadora e pode passar por percalços em alguns locais. “Como a gente viu a falta da Coronavac por semanas, percebemos que esse erro já foi cometido”, complementa o coordenador.

Para o diretor da Fiocruz SP e professor de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Rodrigo Stabeli, um ponto de atenção é que, com o recrudescimento da pandemia em países da Europa e da Ásia, um desafio é saber se os fornecedores irão honrar os contratos para entrega dos Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), já que eles foram firmados antes do cenário atual. O IFA é usado para fabricar as vacinas no Brasil.

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“Lembrando que Butantan e Fiocruz dependem muito da variação internacional tanto do dólar, quanto também da disponibilidade do IFA, frente aos países que estão vendo a covid aumentar em seus solos e que são produtores de vacina”, reforça Stabeli. Caso dificuldades como essa sejam superadas, explica, a possibilidade de avançar ainda mais a imunização até o final do ano é grande.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que o recebimento de imunizantes contra a covid-19 “segue o ritmo previsto”. “A pasta contratou mais de 600 milhões de doses das vacinas contra covid-19 para serem entregues até o fim do ano. O quantitativo é suficiente para vacinar toda a população adulta e completar o esquema vacinal”, apontou.

Procurado, o Instituto Butantan informou que, após a interceptação de 12 milhões de doses da Coronavac, criou uma força-tarefa para “agilizar a liberação dos lotes o mais rapidamente possível para o Programa Nacional de Imunizações (PNI), considerando a urgência dentro do contexto pandêmico”.

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