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‘Haverá outra pandemia. Teremos erros, mas não podem ser os mesmos’, diz brasileira que foi da OMS

Nova diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde adverte que a epidemia de covid-19 ainda não acabou

Por Roberta Jansen
Atualização:
Foto: Nicolas Lieber/UNAids
Entrevista comMariângela SimãoDiretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde

RIO - Diretora-geral adjunta da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2017 até o fim do ano passado, a médica brasileira Mariângela Simão está de volta ao País, onde acaba de assumir o cargo de diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde. A iniciativa foi criada durante a pandemia de covid-19 e, em um primeiro momento, teve como foco a emergência global e seu monitoramento. Agora, a atenção está voltada para as ações que podem ajudar o Brasil a se preparar para a próxima epidemia mundial – segundo ela, inevitável.

“Vai ter outra pandemia, isso é certo”, afirmou a especialista em entrevista ao Estadão. “E nós vamos cometer erros, mas não podemos cometer os mesmos erros.”

Já dá para dizer que a pandemia acabou? Por que a OMS mantém a emergência global?

A pandemia não acabou. Estamos, inclusive, vendo aumento de casos no Brasil e no mundo, mesmo num contexto de menos testagem. O que não estamos vendo é o aumento de casos graves e hospitalizações (e a consequente pressão no sistema de saúde) por conta das vacinas. Mas o vírus continua “mutando” (se modificando). A tendência é que “mute” para formas menos virulentas, mas isso não é dado. É bom lembrar que esse vírus já nos surpreendeu algumas vezes. Por exemplo, esperávamos picos no inverno, quando as pessoas ficam mais tempo em ambientes fechados, e isso não aconteceu. Ele vem em ondas que não têm nada a ver com as estações. É importante que as pessoas continuem seguindo as orientações do ministério e tomando as doses de reforço, sobretudo quem tem mais risco.

Quais são os principais pontos, na sua opinião, em que o Brasil precisa melhorar para enfrentar uma nova pandemia?

Alguns elementos precisam ser corrigidos. Temos estruturas de sequenciamento de vírus bem estabelecidas, mas elas estão desarticuladas. E é importante que estejam articuladas para que tenhamos resultados com mais rapidez. Vimos (durante a pandemia) amostras vindas do Norte para serem analisadas no Sul, por exemplo. É preciso conseguir detectar precocemente a entrada de um vírus. Porque quando alguém morre, já é muito tarde. O segundo ponto é que os municípios têm de estar mais bem preparados. O sistema é hierarquizado, claro, há responsabilidades federais e estaduais. Mas a detecção inicial acontece no município. Estamos trabalhando com os municípios para melhorar a capacidade dos serviços para serem capazes de detectar precocemente qualquer anomalia; por exemplo, um pico de febre. Temos as ferramentas, mas é preciso que alguém esteja especialmente de olho nessas coisas. Ou seja, precisamos criar as condições para que a atenção básica possa atuar melhor na detecção da entrada de um patógeno. No passado, convivíamos com pessoas das redondezas das nossas casas, no trabalho. Hoje, com as viagens aéreas, os vírus de transmissão respiratória se espalham muito mais rapidamente por todo o mundo. A nossa comunidade é global, o senso de aldeia global aumentou. Essa noção também é importante no que diz respeito a vacinas. Tivemos capacidade de produção, mas elas não foram distribuídas de forma equitativa; e essa é uma grande preocupação minha. Quem nasceu em um país rico teve acesso imediato. Mas quem nasceu em países em desenvolvimento levou ao menos mais seis meses para se vacinar. Isso não pode acontecer. Vamos cometer erros, mas não podemos cometer os mesmos erros.

A próxima pandemia será de que tipo? É possível prever isso?

Há vários grupos internacionais estudando isso. Os vírus respiratórios são os que mais preocupam. Todo mundo respira, né? E, se for de transmissão fácil, é o pesadelo. O (Anthony) Fauci (cientista dos Institutos Nacionais de Saúde, que, durante boa parte da pandemia, era consultor médico da Presidência dos EUA) é que diz isso, “o pesadelo do sanitarista é a pandemia respiratória, de fácil transmissão e alta letalidade”. A varíola de macaco, por exemplo, se fosse de transmissão respiratória como a varíola humana, estaríamos enrascados novamente (a varíola de macaco se transmite pelo contato com secreções contaminadas). Os países ricos não tinham mais vacinas, a doença tinha caído no esquecimento. Havia algumas doses congeladas nos EUA e no Japão. Precisamos ter iniciativas internacionais. O Brasil está preparado para detectar e responder, para atender pessoas, mas não vai achar a solução para um vírus específico sozinho. Precisamos de acordos internacionais para pesquisa e desenvolvimento. Por exemplo, tem um grupo de trabalho técnico-científico que está estudando a forma de conseguir desenvolver uma nova vacina, qualquer que seja o patógeno, em cem dias. É ambicioso.

Diretora-geral adjunta da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2017 até o fim do ano passado, a médica brasileira Mariângela Simão está de volta ao País, onde acaba de assumir o cargo de diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde Foto: FELIPE RAU/ESTADAO - 05/03/2023

Cientistas vinham alertando havia décadas sobre a possibilidade de uma pandemia global e a necessidade de preparação para enfrentar a emergência, ainda assim, praticamente nenhum país estava preparado para a covid-19. Será que agora será diferente?

Foram três anos difíceis da vida coletiva. Mas é importantíssimo que se tenha claro – porque a memória coletiva funciona de um jeito estranho, a vida leva a gente para decisões mais urgentes – que agora é o momento de preparação para uma nova pandemia, é o momento de nos concentrarmos para termos certeza de que não cometeremos os mesmos erros. Como eu disse, vamos cometer erros, mas não podemos cometer os mesmos erros. Porque vai ter outra pandemia, isso é certo.

Por falar em alertas que os cientistas vêm fazendo há décadas, o que dizer do aquecimento global? Para além de todos os problemas relacionados às mudanças climáticas que teremos que enfrentar, elas também podem potencializar pandemias, não?

Sim, há uma relação direta. Ao destruir florestas, o homem invade espaços onde estão milhões e milhões de vírus desconhecidos. Já estamos tendo registros de dengue, por exemplo, em países em que antes não havia essa doença. A elevação das temperaturas está criando condições para que a dengue surja em outros lugares. Isso está ocorrendo também com vários fungos que antes não cresciam em determinados locais. O que me incomoda muito na questão climática é que me sinto impotente. Há tantos fatores, interesses comerciais, políticos, governos tentando minimizar e atrasar as tomadas de decisão. Por outro lado, para indivíduos, problemas muito grandes tendem a ser paralisantes. Se não conseguirmos quebrar em pedaços, os acordos internacionais não vão andar. Nenhum país isoladamente é capaz de deter isso. E é um fator importante para a saúde. Não apenas em termos de facilitar a entrada de novos patógenos, mas também na saúde de rotina. E essa área de saúde ambiental ainda é muito incipiente, um território inexplorado. Eu costumo brincar dizendo que é importante estudarmos sobre tudo. Quando que a gente ia imaginar, por exemplo, que estudar as aves migratórias seria tão importante? Parecia uma coisa só de interesse acadêmico e, de repente, tivemos a gripe aviária e o padrão das migrações passou a ser crucial. Por isso, digo: todo conhecimento é importante.

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Quando a senhora imagina que será seguro para a OMS retirar a emergência global?

Acho que em algum momento ainda neste ano. Na verdade, eu tinha a expectativa de que isso acontecesse no fim do ano passado, mas a pandemia continua, como eu disse. O número de casos está aumentando e o vírus segue evoluindo. Mas espero para este ano, com certeza. Já está ficando claro que o vírus está aqui para ficar, ele não será erradicado. Poderá ser controlado, com a vacina, e vamos reduzir o impacto no sistema de saúde – porque houve um impacto muito grande inclusive em países desenvolvidos. O que a gente vê acontecendo agora não tem impacto no sistema de saúde mais, a situação está estável. Então, desde que não haja um aumento de mortes, estamos aprendendo a viver com o vírus.

Como a senhora vê o surgimento dessa nova variante e até que ponto devemos nos preocupar com ela?

É sempre um sinal de alerta porque o vírus que causa a covid-19, o Sars-CoV2, não está estável, ele ainda está apresentando variações. E é importante que o sistema esteja alerta. Essa decisão da OMS de reclassificar as variantes xbb1.16 (a Arcturus) é bem vinda no sentido de que não se está baixando a guarda em termos de vigilância.

No momento, a OMS tem duas variantes de interesse, a Xbb1.5, cuja prevalência é um pouco maior, e a Xbb1.16. Mas observou-se um aumento muito grande na prevalência da arcturus, que passou de 0,5% no banco internacional para 4,2%. E há evidências de que ela tenha maior capacidade de crescimento e isso influencia na transmissibilidade, mas não há evidência ainda de que ela tenha um impacto negativo na severidade da doença.

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De qualquer forma, é importante ressaltar que a covid não acabou. Apesar de o número total de casos ter diminuído globalmente no último mês, há regiões em que a doença está aumentando. Quando a gente diz que diminuiu o número de casos, a gente está falando em quase 3 milhões de casos novos. E 18 mil pessoas ainda morreram declaradamente por conta da doença, fora os óbitos associados à covid, mas não declarados oficialmente.

É importante que estejamos alertas, importante que o Brasil tenha detectado o primeiro caso da Xbb1.16. Agora, temos que monitorar a gravidade, determinar se há escape imunológico, que é a capacidade da variante de evadir a vacina, algo que não sabemos ainda. Mas como foi classificada como variante de interesse, isso reforça a mensagem de que ela precisa ser monitorada. E que as pessoas com sintomas de doenças respiratórias procurem os serviços de saúde e façam o teste para covid. Se possível, façam também o sequenciamento genético, para sabermos que tipo de variante está circulando no Brasil.

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