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'Preocupa muito a questão dos recursos humanos na área da saúde', diz pesquisador da UERJ

Para professor Mario Dal Poz, com mais de 40 anos de experiência na área, é preciso elaborar e implementar o quanto antes normas técnicas de proteção e cuidado com os profissionais da saúde

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Diante da pandemia do novo coronavírus, que já contaminou mais de 2,6 milhões de pessoas e deixou quase 190 mil mortos em todo o mundo, é preciso ter atenção especial com os profissionais da saúde, em especial no Brasil. "Não temos uma força de trabalho de saúde em quantidade e capacidade de atendimento para o grau de necessidade que a pandemia está exigindo. Além disso, a pandemia começa a atingir muito fortemente os profissionais da saúde", afirma Mario Dal Poz, pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e líder de um centro colaborador da OMS para informação e planejamento de recursos humanos na área da saúde.  

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Neste mês, um relatório da Organização Mundial da Saúde revelou que 8 em cada 10 enfermeiros estão em nações que representam metade da população mundial. Portanto, os outros 50% da humanidade têm apenas 20% de profissionais de enfermagem. Mario Dal Poz, que coordenou por dez anos a área de recursos humanos em saúde da entidade e tem mais de 40 anos de experiência na área, defende uma ação política imediata tanto do Ministério da Saúde quanto das secretarias na elaboração e implementação de um conjunto de normas técnicas de proteção e cuidado com os profissionais da área.

E um levantamento feito pelo jornal O Globo mostra que há dificuldades no País na contratação de profissionais. De acordo com a reportagem, feita com base em editais lançados desde março, há pelo menos 3.668 vagas disponibilizadas para médicos que ainda não foram preenchidas. Abaixo, a entrevista completa. 

O professor Mario Dal Poz, pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Foto: Arquivo Pessoal

Qual o cenário da pandemia do novo coronavírus hoje no Brasil? 

Bastante complexo e grave, pois apesar de cada Estado ter um ritmo e uma velocidade diferentes, não temos informação e monitoramento adequados e de qualidade sobre como a epidemia está se desenvolvendo. A medida do isolamento social está sendo realizada de maneiras diferentes em distintas regiões, de forma que alguns estados já estão começando a atingir o limite da capacidade de atendimento de pacientes no sistema de saúde, particularmente nos serviços públicos, e isso tende a ter consequências graves, tanto em termos de internação como de óbitos. É um momento muito crítico e todas as análises mostram um pico da pandemia no fim deste mês e começo de maio. 

Por que isso ocorre? 

O mais grave é a ausência de testes diagnósticos e as dificuldades logísticas, tecnológicas e de recursos humanos do SUS. E isso resulta das limitações do próprio mercado internacional ou por outros motivos, como as fragilidades do SUS e as disputas políticas. O Ministério da Saúde não harmonizou esse processo. Há Estados brigando com outros Estados ou municípios. Há situações de todo tipo, incluindo organizações não governamentais ou privadas oferecendo testes, alguns dos quais parecem ter baixa sensibilidade.

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Aqui no Rio de Janeiro, como em outros estados, falta articulação entre os diversos entes públicos. A perspectiva, considerando essa desarticulação e falta de coordenação, não me parece boa. Se, do ponto de vista da contaminação, alguns lugares parecem estar conseguindo reduzir o ritmo da propagação do vírus, há uma pressão grande de certos setores da sociedade - e do presidente - para que as atividades voltem ao normal. Essa expectativa desconhece o poder de contaminação desse vírus.

O que se sabe desse vírus que é diferente dos outros? 

Do quanto se conhece, o potencial patogênico extremamente grande é uma diferença importante. O potencial de transmissão do vírus, para o qual não há vacina e nem um tratamento eficaz ainda, também representa um desafio muito grande para os cientistas, mas também para os gestores de saúde. Como muitas pessoas podem não ter nenhum sinal clínico e, ainda assim, transmitirem o vírus, a velocidade e o potencial de disseminação precisam ser estimados, pois não há informações sobre quantas pessoas efetivamente estão contaminadas ou não.

Não temos um desenho preciso de quantos estão contaminados, o que faz com que decisões muitas vezes sejam tomadas quase que às cegas.

Alguns hospitais de campanha têm sido montados, equipes reforçadas. Qual sua avaliação disso? 

É um esforço louvável de intervenção emergencial. Mas, como é uma ação reativa, não planejada, parece haver uma descoordenação entre os diversos agentes públicos. Muitos colegas têm lembrado que há uma quantidade grande de leitos desativados, que talvez pudessem ser reativados. Esse é o caso da rede federal aqui no Rio de Janeiro, onde grandes hospitais antes considerados de referência, estarem totalmente fora desse esforço de atendimento aos pacientes com covid-19.

Há uma preocupação e muita dificuldade com o equipamento e funcionamento desses hospitais de campanha e também com os EPIs. E, mais gravemente, com o quadro de pessoal.

O Ministério da Saúde fez um cadastro de voluntários. O ex-ministro Mandetta chegou a fazer referência sobre possibilidades de mobilizar especialistas de diversas áreas para cobrir regiões com déficit, mas ninguém sabe como isso pode funcionar direito. Evidentemente não se consegue transferir ou adquirir capacidades ou habilidades clínicas em tão curto espaço de tempo.

Não temos uma força de trabalho de saúde em quantidade e capacidade de atendimento para o grau de necessidade que a pandemia está exigindo. Além disso, a pandemia começa a atingir muito fortemente os profissionais da saúde, tanto pelo mecanismo de transmissão comunitária como pela própria exposição no atendimento aos pacientes. Assim, preocupa muito a questão dos recursos humanos. 

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Professor destaca a luta de trabalhadores da área da saúde contra o vírus Foto: Alberto PIZZOLI / AFP

Como é a preparação dos profissionais? 

Os diversos profissionais precisam ter preparação técnica, competências específicas, e estar mobilizados para trabalhar em equipe, um saber o que o outro vai fazer. As tendências de expansão da doença alertam para o número de casos entre os trabalhadores de saúde. Cerca de 10% do total de casos reportados na China ocorreram entre esses trabalhadores.

Na Itália, os dados variam entre 9% e 22%, em Portugal e na Espanha são mais de 13% e 14%, respectivamente. No Brasil, estima-se, pelos números que teremos cerca de 40% de afastamento dos profissionais de saúde devido à covid-19 e a outras doenças.

O mercado de trabalho em saúde no Brasil é bastante desigual, tanto no nível regional quanto nas diferentes categorias profissionais de saúde.

Assim, os técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos, dentre outros, muitas vezes trabalham em dois, três hospitais ou clínicas, sejam públicos ou privados. Se essa pessoa se contamina, ela vai se afastar de todos esses serviços. Na medida em que os leitos e UTIs estão ficando cheios, essas pessoas vão fazer falta. É necessário, a curto ou médio prazo, conhecer melhor a dinâmica e o fluxo do mercado de trabalho de saúde no Brasil, para que seja possível desenvolver respostas adequadas aos problemas de déficit e distribuição por nível de atenção e situação geográfica, estabelecendo parâmetros para financiamento, remuneração e incentivos dos trabalhadores da saúde.

O senhor tem experiência em trabalhar com sistemas de saúde. Durante o período na Organização Mundial da Saúde, observou de perto como eles funcionam em países menos desenvolvidos. Como vê os impactos da pandemia em regiões mais pobres? 

Essa epidemia atinge fortemente os sistemas de saúde. E quanto mais frágil for o sistema, se não houver regularidade e sustentabilidade do financiamento, mais sérios serão os problemas. Pensemos em Moçambique, em Angola, no Equador, em que os sistemas de saúde são bem frágeis. Se essa pandemia tiver o mesmo comportamento nesses países como teve na Europa, não só as pessoas com covid-19 vão sofrer, o número de óbitos será grande, mas também as pessoas que precisam normalmente de atendimento não vão ter acesso.

Em alguns países, faltam equipamentos adequados para profissionais da saúde realizarem o trabalho Foto: Alex Edelman / AFP

Países que têm tido sucesso no combate à pandemia adotam uma resposta unificada ao vírus. Qual a importância disso nesse momento? 

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Muito importante, pois essas medidas de intervenção não medicamentosas, como o isolamento social e a higiene pessoal, exigem consenso técnico-científico e mudanças de comportamento individual e social. No momento, isso não ocorre no Brasil. A demissão do ministro Mandetta expressa muito dramaticamente esses conflitos de opinião que opôs setores da sociedade e a Presidência da República com as recomendações de cientistas e especialistas, apesar do sucesso dos países que adotaram nacionalmente o distanciamento social.

É essa intervenção que vai permitir, progressivamente, que o sistema de saúde seja capaz de atender a todos, no seu devido tempo, e não seja obrigado a fazer escolhas de Sofia. No Brasil temos uma dificuldade adicional relativa às características do nosso sistema de saúde. O SUS tem três componentes: federal, estadual e municipal, o que exige uma articulação negociada permanente. E, além disso, temos um setor privado desproporcional, relativamente a outros países. Nas últimas décadas, o setor privado cresceu, com diferentes mecanismos, mas particularmente através dos planos de saúde. É preciso, assim, uma liderança muito grande do Ministério da Saúde para fazer a articulação e coordenação entre os diversos agentes dos SUS.

A pandemia vai muito além das medidas sanitárias e de atendimento médico-hospitalar. Falta definir melhor papéis e responsabilidades nesse esforço de articulação. 

Como vê o sistema de enfrentamento de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS)? 

Eu entrei na OMS em 2000 para trabalhar com sistemas de saúde, coordenando a área de recursos humanos em saúde. Era um departamento pequeno, mas a área foi se desenvolvendo e ganhando visibilidade e importância por conta do aumento de situações nos quais a questão sanitária se impunha. Em 2006, fizemos um relatório mundial mostrando a existência de uma crise global de recursos humanos, com déficit crítico de médicos e enfermeiros em pelo menos 57 países.

Posteriormente essa área ganhou maior visibilidade com resoluções da Assembleia Mundial da Saúde. Em paralelo, cresceram muito as situações nas quais os sistemas de saúde nacionais foram gravemente afetados por crises humanitárias, tanto por ocorrência de epidemias, como por conta de acidentes ambientais, como tsunami, terremotos ou ainda decorrentes de crises políticas ou militares como guerras civis, com populações obrigadas a fugir.

Cresceu assim, enormemente a necessidade da OMS responder a essas situações, construindo parcerias eficientes para a gestão de emergências e garantir que estas sejam devidamente coordenadas, desenvolvendo orientações baseadas em evidências para todas as fases do trabalho de emergência no setor de saúde e assegurar a capacidade internacional para apoiar os países na resposta a emergências, através de treinamento e estabelecimento de capacidade de intervenção.

Por que essa área cresceu? 

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Em 2007, entrou em vigor o regulamento sanitário internacional que exige dos países a notificação de certos surtos de doenças e eventos de saúde pública. Com esse instrumento, a OMS aumentou bastante sua capacidade para a vigilância global de doenças, alerta e resposta. E é esse mecanismo que tem sido mobilizado para articular uma rede de especialistas e mobilizar diferentes atores em todo o mundo no combate à covid-19. Mas também é esse mecanismo que tem permitido à OMS apoiar e cooperar com os países que têm seu sistema de saúde e vigilância de doenças fragilizados por guerras regionais,

pela fuga ou migração forçada de populações de situações de fome e miséria levando consigo muitas vezes consigo doenças prevalentes em outros lugares. Então, essa expansão foi e tem muito importante para a atuação do OMS. 

Entidade tem 7 mil funcionários em 150 países Foto: WHO/P. Virot

Como vê a questão do subfinanciamento da OMS?

É uma questão grave e que já vem de longa data. Essa ameaça do presidente americano de retirar os recursos não é a primeira. No passado, no governo Bush filho, os EUA bloquearam recursos para a área materno infantil por discordância com as diretrizes e normas técnicas relativas à atenção ao aborto. Na época, as pressões vinham claramente de grupos religiosos. A situação só melhorou no governo Obama. Então, essa ação dos EUA não é novidade, e foi criticada por quase a totalidade dos líderes mundiais.

A OMS recebe as contribuições regulares dos países cujo valor não tem se alterado há décadas. Os recursos extra orçamentários ou voluntários ocorrem como doações ou apoio a projetos específicos, e vem crescendo ao longo dos anos. Esses recursos são transferidos por certos grupos de países, como os países nórdicos, o Japão ou fundações (a mais importante é a fundação Bill e Melinda Gates) ou ainda agências de cooperação como a americana, britânica ou outras, que respondem, muitas vezes a chamadas específicas, como para o combate à tuberculose, malária e HIV-AIDS, o desenvolvimento de vacinas, ou ainda a realização de determinados eventos ou campanhas.

Essa modalidade de transferência de recursos voluntários se ampliou muito, tornando-se maior que a de regulares. E isso é um problema, pois deixa a OMS em situação de muita vulnerabilidade e dificuldade de estabelecer estratégias de longo prazo. 

O que acha das críticas à entidade? 

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É preciso esclarecer como a OMS funciona. Não sendo uma instituição de pesquisa, ela necessita de quem faz pesquisas para poder apoiar os países com os melhores conhecimentos sobre os problemas de saúde e os fatores que desencadeiam ou levam à disseminação doenças, por exemplo. Mas ela opera em articulação com as instituições de pesquisa e pesquisadores e, mais importante com o conjunto dos países membros. Os processos de decisão são baseados no consenso científico e na aprovação de resoluções pela Assembleia Mundial da Saúde.

Uma forma bastante eficiente de trabalho da OMS é a de promover o encontro, a reunião de vários países para, juntos, discutirem as melhores opções e trocar as experiências sobre como enfrentar determinado problema.

Nem sempre a solução de um país serve para o outro, mesmo que seja correta técnica ou cientificamente. Assim, os países e os especialistas vão aprendendo uns com os outros, adaptando, avaliando as possibilidades de implementação e tentando extrair o melhor de cada exemplo. As lições aprendidas depois são utilizadas pelos países, segundo a realidade daquele país. Então, todos se beneficiam.

A sede da Organização Mundial da Saúde, em Genebra, na Suíça Foto: WHO/P. Virot

O senhor acha que a entidade errou na resposta ao coronavírus?

Difícil dizer, pois logo apenas 2 dias depois da China reconhecer a gravidade da ameaça, a OMS se pronunciou com o apoio de conjunto de especialistas indicado pelos países. E mesmo ocorreu na declaração de que se tratava de uma pandemia. 

Que reformas e mudanças o senhor sugere na entidade? 

Por volta de 2010, a OMS iniciou um processo de reforma por decisão dos países membros e resolução aprovada na assembleia mundial da saúde, ainda na gestão de Margaret Chan. Esses processos têm sido talvez limitados, por conta das limitações de recursos da OMS e, por algumas características organizacionais, como a eleição dos diretores regionais.

Assim, a OMS que era fundamentalmente técnica, tem aumentado os mecanismos políticos e diplomáticos de negociação e discussão, particularmente na Assembleia Mundial da Saúde. Se essa tendência pode ser questionável em algumas situações, ela foi bastante positiva em questões como a negociação e implantação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que é o primeiro tratado internacional de saúde pública, desenvolvido sob os auspícios da OMS.

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