Testes com anticorpos para o coronavírus: podemos confiar nos resultados?

Pesquisadores norte-americanos trabalham para verificar resultados de testes com anticorpos do coronavírus

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Por Apoorva Mandavilli
Atualização:

Os pesquisadores trabalharam sem parar, em turno de três a cinco horas, na esperança de afastar o cansaço e manter o foco na delicada tarefa da qual tinham sido incumbidos.

Organizaram linhas de produção de voluntários nos laboratórios: residentes de medicina, estudantes de pós-doutorado, até veteranos com experiência na ciência, cada um lidando com uma tarefa específica. Verificaram os dados várias vezes, como se o mundo dependesse disso. Afinal, sob certos aspectos, dependia mesmo.

Testes de coronavírus em laboratório Foto: REUTERS/Axel Schmidt

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Nas duas semanas mais recentes, mais de 50 cientistas têm trabalhado disciplinadamente em algo que a vigilância sanitária americana (Food and Drug Administration) não tem feito: verificar se os 14 testes para anticorpos do coronavírus disponíveis no mercado de fato produzem resultados confiáveis.

Esses testes são cruciais para a reabertura da economia, mas especialistas em saúde pública citaram preocupações urgentes com a sua qualidade. A nova pesquisa, concluída dias atrás e publicada na internet na sexta feira, confirmou alguns desses temores: dos 14 testes, apenas três produziram resultados consistentes e confiáveis. Até as melhores alternativas tinham problemas.

A pesquisa não passou pela revisão de pares e seus resultados podem mudar. Mas são informações que já apontam para questões difíceis ligadas ao futuro da pandemia.

Levantamentos com moradores da Baía de Sãn Francisco, de Los Angeles e de Nova York realizados essa semana revelaram que um percentual substancial da população teve resultado positivo para os anticorpos do SARS-CoV-2, nome oficial do novo coronavírus. Em Nova York, essa proporção chegaria a 21%. Em outras áreas, estava mais próxima de 3%.

A ideia segundo a qual muitos moradores de certas partes do país já teriam sido expostos ao vírus tem amplas implicações. No mínimo, a confirmação dessa hipótese poderia complicar muito os planos para a reabertura da economia.

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Os americanos já estão correndo para realizarem o teste de anticorpos para saberem se poderão escapar das quarentenas. Especialistas em saúde pública se perguntam se as pessoas que apresentam resultado positivo poderiam voltar ao trabalho.

Mas essas táticas nada significam se não pudermos confiar no resultado dos testes.

Na nova pesquisa, os cientistas descobriram que apenas um dos testes jamais produziu um falso resultado positivo — ou seja, nunca errou identificando anticorpos em pessoas que não os têm de fato.

Dois outros testes produziram resultados positivos reais em 99% das vezes.

Mas o contrário não é verdadeiro. Mesmo esses três testes mais precisos detectaram os anticorpos nos infectados em apenas 90% das vezes, na melhor das hipóteses.

Essa métrica de falsos resultados positivos é particularmente importante. O resultado pode levar pessoas a acreditarem que estão imunes ao vírus sem que isso seja verdade, expondo-se ao risco ao abandonar o distanciamento social e outras medidas de proteção.

O resultado é também o ponto que mais divide os cientistas.

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“Há vários testes que parecem sólidos e promissores", disse o Dr. Alexander Marson, imunologista da Universidade da Califórnia, em San Francisco, e um dos líderes do projeto. “Isso nos dá motivo para o otimismo.”

Marson também é pesquisador do Chan Zuckerberg Biohub, que financiou parte do estudo.

Outros cientistas são menos otimistas do que Marson. Quatro dos testes produziram resultados positivos falsos em 11% a 16% dos casos; muitos dos demais davam resultado errado em cerca de 5% das tentativas.

“Esses números são simplesmente inaceitáveis", disse Scott Hensley, microbiólogo da Universidade da Pensilvânia. “O estudo parece dizer, ‘Veja como os testes funcionam’. Mas não é isso que os dados revelam.”

É provável que a proporção da população dos Estados Unidos já exposta ao coronavírus seja de 5% ou menos, disse Hensley. “Se o kit de teste produz falsos resultados positivos em 3% dos casos, como interpretar isso? Basicamente, é impossível", disse ele. “Se um teste produz falsos resultados positivos em 14% das vezes, podemos considerá-lo inútil.”

Ainda assim, Hensley disse que o estudo foi bem pensado e suas conclusões são urgentes, levando em consideração a proliferação de testes de anticorpos no mercado e a pressão para usá-los como base da suspensão da quarentena.

“Me parece que esse é exatamente o tipo de estudo que precisamos no momento", disse ele.

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Marson e seus colegas disseram que foi justamente isso que os atraiu para o estudo.

Em um momento em que as universidades da região da Baía de São Francisco paralisam todas as pesquisas que não estão relacionadas com o coronavírus, alguns pesquisadores começaram a se concentrar em formas de melhorar os testes que diagnosticam os casos de SARS-CoV-2.

Marson e seu colaborador, Patrick Hsu, biólogo engenheiro da Universidade da Califórnia, em Berkeley, imaginaram que os testes de anticorpos teriam sua qualidade questionada.

Em meados de março, Hsu ficou sabendo que um amigo, um investidor dono de uma rede de 1.000 clínicas comunitárias na região de Nova York, tinha encomendado milhares de testes rápidos para a presença de anticorpos. Investidores e empreendedores pareciam distribuí-los também em São Francisco.

“Percebi que estávamos diante de uma situação descontrolada” disse Hsu. “Tínhamos que saber quais dessas alternativas realmente funcionariam.”

A dupla recrutou o Dr. Jeffrey Whitman e a Dra. Caryn Bern, que publicaram no ano passado uma análise dos testes de anticorpos para a doença de Chagas. Outros estudantes de pós-graduação e pesquisadores de pós-doutorado agiram como voluntários para ajudar nas avaliações.

A equipe começou com uma versão modificada do método desenvolvido por Whitman para validar os testes da doença de Chagas. Os pesquisadores criaram um espaço com certificação de biossegurança, obtiveram as aprovações necessárias e também centenas de amostras de sangue dos hospitais da região da Baía de São Francisco.

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Eles também compraram testes de fabricantes chinesas, atendendo aos requisitos alfandegários e às vezes recebendo entregas pelo Uber no meio da madrugada. No total, os pesquisadores analisaram 10 testes rápidos que produzem uma indicação da presença ou ausência de anticorpos, e dois testes que usam uma técnica de laboratório chamada Elisa, indicando o volume de anticorpos presente, considerados mais confiáveis.

Usando equipamento de proteção, a equipe trabalhou em turnos de três a cinco horas em uma espécie de linha de montagem da era do distanciamento social.

Um pesquisador preparava o teste com a amostra de sangue, enquanto outro acrescentava as soluções químicas necessárias; então, dois leitores independentes analisavam o teste, e um último participante registrava os resultados. Outro membro da equipe analisava os resultados, às vezes trabalhando a noite toda.

Nas madrugadas recentes, eles passavam o bastão para o Dr. Tyler Miller e seus colegas do Hospital Geral de Massachusetts, que realizavam uma análise um pouco diferente de três testes, incluindo um dos avaliados em São Francisco.

A equipe da região de São Francisco concluiu a análise de 12 testes em tempo recorde: menos de um mês. Em comparação, o projeto envolvendo a doença de Chagas envolveu três pessoas, que trabalharam por mais de um ano na comparação de apenas quatro testes.

Cada teste foi avaliado com o mesmo conjunto de amostras de sangue: de 80 pessoas confirmadamente infectadas pelo coronavírus, em diferentes momentos após o contágio; 108 amostras doadas antes da pandemia; e 52 amostras de pessoas com resultado positivo para outras infecções virais, mas negativo para o SARS-CoV-2.

Os testes produzidos pela Sure Biotech e pela Wondfo Biotech, além de um teste interno do tipo ELISA, produziram o menor número de falsos resultados positivos.

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Um teste desenvolvido pela Bioperfectus detectou anticorpos em 100% das amostras infectadas, mas somente três semanas após o contágio. Nenhum dos testes teve resultado superior a 80% antes desse período, mais longo do que o esperado, disse Hsu.

O que se observa é que, quanto mais tempo se passa a partir da infecção, menor a probabilidade de um falso resultado negativo, disse ele.

Os resultados dos testes variaram bastante em se tratando da busca por um anticorpo temporário que surge logo após a infecção, chamado IgM, e foram mais consistentes na identificação de um anticorpo subsequente, chamado IgG, que pode indicar uma imunidade de maior prazo.

“Vemos que os níveis de anticorpos aumentam em diferentes momentos para cada paciente", disse Hsu. Os testes foram mais precisos quando os pesquisadores buscaram os dois tipos de anticorpos ao mesmo tempo. Mas nenhum dos testes pôde indicar se a presença desses anticorpos significa que a pessoa está protegida de nova infecção.

No geral, os resultados são promissores, acrescentou Marson. “Há muitos testes com especificidade superior a 95%.”

Marson e seus colegas adquiriram testes de quase 100 fabricantes, e a ideia é seguir comparando-os. Os cientistas também esperam expandir a amostragem para incluir pessoas que apresentaram sintomas leves ou quadros assintomáticos, classificando os dados de acordo com faixa etária e presença de problemas crônicos de saúde.

“É apenas o início", disse Marson. “Nossa meta seria continuar até que haja no mercado um suprimento adequado.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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