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Lévi-Strauss: a emoção do reencontro com São Paulo e a USP em 1985

Cinquenta anos depois, antropólogo francês visitou a cidade onde morou na juventude e a universidade que ajudou a criar

Por Luiz Roberto Souza Queiroz
Atualização:
O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss durante visita àUniversidade de SãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

Leia o texto publicado no Estadão em 18 de outubro de 1985 sobre o emocionante passeio de Claude Lévi-Strauss por São Paulo e sua visita à cidade universitária da USP.

>> Estadão - 18/10/1985

LUIZ ROBERTO DE SOUZA QUEIROZ

Cinqüenta anos depois de deixar São Paulo pela última vez, o professor Claude Lévi-Strauss reconheceu ontem de imediato o Anhangabaú, identificou o Teatro Municipal, lembrou-se com emoção da estátua de Verdi que havia na praça Ramos e, olhando o prédio do antigo Hotel Esplanada, onde hoje ficam os escritórios da Votorantim, contou a confusão que provocou quando, voltando de Mato Grosso, quis hospedar-se juntamente com os dois macaquinhos que trouxera da viagem. 

"Foi impossível ficar com os dois 'singes' no hotel", afirmou. E ainda falando um português muito claro, disse que precisou doar os macacos. Mas, rindo muito, explicou que bastou chegar na escala de Recife, "e consegui outros singes". Lévi-Strauss não pôde visitar a casa da rua Cincinato Braga, 232, onde viveu na época da criação da Universidade de São Paulo, porque hoje há um prédio no lugar. 

Mas também sem hesitar falou da bananeira que plantou no quintal, onde já havia um pé de carrambola. Ele entusiasmou-se ao saber que o Martinelli estava recuperado, deu uma longa volta de automóvel pela cidade, durante a qual, disse depois, conheceu bem os "congestionamentos de São Paulo".

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Durante o almoço, como que fazendo um exercício de memória, Lévi-Strauss lembrou que seus élèves freqüentemente prestavam homenagem aos professores, levando-os à tardinha, diz ele, às pãtisséries, mas logo lembra a palavra e se corrige, falando confeitaria. Ele enumera nos dedos os alunos mais queridos, cita Egon Schaden, Gioconda Mussolini, Lavinia da Costa Vilela, Mário Wagner Vieira da Cunha e "Anita de qualquer coisa Marcondes Cabral e sua irmã, Corina". Logo em seguida, porém, feliz, recorda o nome inteiro, Anita de Castilho Marcondes Cabral.

Terminado o almoço um mensageiro lhe entrega na portaria do hotel um telegrama. Assinado por Anita Cabral o texto afirma "tentarei encontrá-lo, para dizer que jamais esqueci o caro mestre e amigo a quem tanto devo". Eufórico, Lévi-Strauss sacode o telegrama para os jornalistas, pede emocionado que sirvam de testemunha que lembrou o nome da aluna, antes mesmo de receber o telegrama. 

O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss durante visita aSãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

Preparando o coração 

A emoção foi o que mais marcou a passagem do professor Claude Lévi Strauss peia cidade de São Paulo, no dia de ontem. Ele desceu do avião já muito cansado pelos quatro dias de viagem, pelo fato de ter que levantar de madrugada para despachar a bagagem, mas ao lado de sua mulher, Monique, quase tão entusiasmada como ele, preparou o coração para rever a cidade onde passou os anos iniciais de sua carreira.

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Ainda no trajeto entre Guarulhos e São Paulo, Monique chamou a atenção do antropólogo para as primeiras favelas, impressionada com a baixíssima altura dos telhados. Lévi-Strauss relembrou que conhecera favelas na São Paulo de antes, mas não eram assim, e se impressionou mais ainda quando soube que dentro de um único cómodo vivem sete ou oito pessoas e que a situação se repete nos cortiços das mansões que ele conheceu no passado.

Logo em seguida, porém, voltou a falar, encantado, da viagem feita na antevéspera, para tentar reencontrar os índios bororo, com quem viveu. E confessou que achou multo bom não encontrá-los, porque seria "um momento de nostalgia e de tristeza rever os índios da forma como sei que vivem agora", perdendo sua cultura e pressionados pela civilização. E por não tê-los encontrado, garantiu, é que a viagem foi tão maravilhosa, pois lhe permitiu rever a natureza do Brasil, encontrá-la em toda sua força, a pujança do rio Vermelho, por exemplo, "que ainda é o mesmo, que não mudou, que é o rio Vermelho que percorri de pirogue faz tanto tempo..."

A viagem sobre a floresta e sobre as imensas plantações que encontrou no Brasil Central comprovou ao antropólogo que hoje "realmente o Brasil tem seu interior colonizado", mas as áreas de mata e de cerrado que viu lhe garantem "que ainda há muita coisa intocada, mesmo no São Lourenço, mesmo no rio Vermelho, em toda a área entre Rondonópolis e Cuiabá''. 

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O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss durante visita àUniversidade de SãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

Julio de Mesquita 

Mas os pólos de atenção são muitos, e logo Lévi-Strauss está falando de Julio de Mesquita Filho, relembrando a antiga redação de O Estado, Oswald de Andrade, dizendo da saudade de Paulo Duarte. E reclama quando é apontado como um dos criadores da USP, exime-se de qualquer responsabilidade na criação da Universidade.

Quer que fique bem claro que ela foi pensada por Julio de Mesquita Filho, pára um momento para fazer um parêntese sobre o último encontro com ele, em Paris, e diz que a missão francesa, bem corno a alemã e também os professores italianos, teve apenas o trabalho de cumprir urna tarefa já especificada por Julio de Mesquita Filho e pelos brasileiros que se reuniam na antiga redação da Barão de Duprat. E por um segundo apenas o profesor segura a fotografia do prédio onde hoje funciona uma loja, mas que ainda está de pé, com a mesma fachada.

Logo, porém, está reconhecendo "o prédio daquela empresa canadense", e confirma que é isso mesmo, quando lhe falam da Light. Ele se impressiona com o que não mudou, fala do Rio que ainda é o mesmo de sua juventude, "mas eu conheci um Rio mais baixo, ele mudou apenas para cima, ganhou mais altura".

Diante do Martinelli, que imaginava demolido e que encontra recuperado, Lévi-Strauss é atropelado pela memória. Fala de sua mãe, que morreu no ano passado, com cem anos, relembra o pai que veio visitá-lo no Brasil e que era pintor. E conta que ainda recentemente encontrou um quadro do pai, retratando a avenida São João e tendo ao fundo o prédio Martinelli que para Lévi-Strauss jovem era um marco da cidade, servindo como um farol cada vez que se perdia. "Doei o quadro para Casa da América Latina, pensando em que os brasileiros vão ficar contentes quando o virem, quando reconhecerem o prédio."

A memória continua solta às vezes falando em francês, às vezes em português, que Monique também entende, o antropólogo fala da sua partida para a expedição de 1936, feita trabalhosamente em lombo de burro e de piroga e comenta que o presidente Sarney quis saber quanto tempo levou para chegar ao Brasil pela primeira vez. Foram 19 dias, desde Dakar, ele relembra, e Sarney quis saber qual a diferença que sentia ao fazer a viagem em menos de 30 horas. Mas o pensamento é interrompido pelo reconhecimento do Trianon, da avenida Paulista que é uma festa. 

Impressionada, Monique pergunta sobre o prédio do Museu de Arte, quer saber quem o projetou, mas o antropólogo vibra com o pedaço de mata pujante no meio da avenida, reconhece a mansão do conde  Matarazzo, olha os prédios, as casas que restaram, explica que morava ali pertinho, e lembra até das jabuticabeiras. 

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O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strausscom o professor Egon Schaden durante visita àUniversidade de SãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

Um paralelo com Nova York

E finalmente Lévi-Strauss começa a dar sua opinião sobre "essa São Paulo impensável, sobre seu desenvolvimento enorme, que nada tem a ver com a cidade do século XIX que conheci". Ele confessa que não podia imaginar o crescimento que houve e faz um paralelo com Nova York, que conheceu na década de 40. Quando voltou, anos mais tarde, notou que a cidade tinha crescido um pouco, mas só.

Em São Paulo, porém, ele registra uma explosão de crescimento, algo que, confessa, não teria podido imaginar. E com um gesto afasta as definições que estão em seus livros, diz que nada há a comparar com a Índia qua citou uma vez, pois levou milhares de anos para chegar a imensa concentração de gente que São Paulo alcançou algumas décadas. Nega, explicando que nunca disse, mas apenas citou outro autor, a afirmação de que se chegará à barbárie através da civilização e do crescimento das cidades. "Foi ima definição maliciosa da América", complementa. 

E volta, sempre volta a falar de São Paulo, diz que sua relação som a cidade é de extremo carinho, de afeto. Conta então dos "minuetos sociológicos", as reuniões de intelectuais que eram, porém, coisa "de grã-finos", os estudantes não compareciam. E facilmente passa a falar da preocupação em democratizar a cultura, em fazer com que não apenas a elite tivesse acesso à Universidade. 

Lévi-Strauss pára um pouco, mergulha nos pensamentos, responde então que acha que isso foi conseguido. "Espero, espero muito que tenhamos cumprido o papel que nos reservou Júlio de Mesquita Filho." Mas ele não valoriza tanto seu papel, prefere falar dos salesianos que, repete, "acabaram convertidos pelos bororos". E conta que a importantíssima obra A Enciclopédia Bororo foi repetida pelos salesianos nas suas outras missões na América do Sul, entre os jivaros do Peru, por exemplo.

Isso lhe parece tão ou mais importante que a "toute petite université" que acabou se transformando num gigante com 48 mil estudantes e que ele nunca sabe se tem quatro ou se já tem cinco campus, espalhados pelo Estado de São Paulo e da qual tem saído uma produção antropológica da mais alta qualidade. Mais cuidadoso, ele garante o nivel da Antropologia da USP, não pode falar dos outros ramos do saber, cujo desenvolvimento não acompanha. 

O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss durante visita àUniversidade de SãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

Uma paixão imediata, na USP

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Quando o carro levando Lévi-Strauss entrou no campus da Cidade Universitária, ele não queria acreditar. Disse que não era possível, era tudo muito, mas muito maior, do que imaginara e ouvira falar. E se apaixonou de imediato pelas grandes árvores floridas, da alameda de entrada. Ainda impressionado com o horizonte amplo que se abria, com os prédios que via ao longe, descendo o espigão da Paulista, aproximando-se do rio Pinheiros, o antropólogo recebeu os presentes que lhe davam, agradeceu e foi cumprimentando os professores, os estudantes do curso de pós-graduação do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, que o esperavam no saguão.

Logo atrás, Monique comenta que ele está muito feliz, embora cansado, e que a presença dos estudantes, a recepção, o toca muito. Mais tocado ele fica quando chega à porta da sala 221 e o velho companheiro da expedição ao Sertão do Paraná; o professor - Egon Schaden o saúda num -  abraço comovido.

A sala está tão cheia de estudantes, de professores de várias localidades, que é impossível fazer qualquer cerimónia ali. E Lévi-Strauss é obrigado a ir para outra sala, a maior da faculdade, que também é pequena demais. Todas as cadeiras estão ocupadas, há gente sentada no chão e muitos estudantes estão fora do prédio, esticando a cabeça pelas janelas para ver o mestre falar. E ele, cansado mas sorridente, aperta as mãos, sorri para todos, senta-se para assinar os seus livros, que todos levam nas mãos.

O silêncio é total e para um público emocionado, Lévi-Strauss começa pedindo desculpas porque 50 anos depois, ...continua falando em francês. Todos riem e ele diz da alegria de encontrá-los, de estar no ambiente universitário, de estar respirando o ar ...tão fresco, tão delicioso de São Paulo. E todos riem.

O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss e a mulher Moniquedurante visita àUniversidade de SãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

A CONVITE DO JORNAL

O professor domina o público, conseguiu quebrar o impacto emotivo e, depois de unia análise empática, começa a falar sério. Descreve então a viagem fantástica que o jornal O Estado de S.Paulo lhe proporcionou. Fala das matas, das estradas onde sabe que hoje se vive as mesmas dificuldades de há 50 anos, conta das tentativas de pousar nas pistas curtas, e em pinceladas precisas descreve a natureza, analisa, afirma com ênfase, concluindo: "Eu reencontrei o Brasil de minha juventude, o Brasil que tanto amei". 

Outra surpresa que me foi reservada, diz, foi a universidade., "Jamais imaginei essa cidade gigantesca onde vocês vivem uma experiência única na terra, e a USP."

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Cedendo finalmente à emoção, no silêncio total o professor Lévi-Strauss diz que "uma das grandes alegrias de meus derradeiros, de meus últimos anos, é ver que das poucas centenas de estudantes do passado, vocês fizeram uma universidade tão im-portante, vocês chegaram a ser 48 mil. E quero por isso agradecer-vos a oportunidade sem par que todos me deram de ter podido acrescentar o meu saber como uma parcela da obra que é hoje essa universidade. Universidade de São Paulo, obrigado".

Enquanto cansado Lévi-Strauss se sentava, os cabelos brancos sobressaindo na figura que voltava a se apequenar, o auditório se levantou e aplaudiu cinco minutos, todos em pé. E muitos, como a própria mulher do antropólogo, como um diretor da Aliança Francesa, como velhos professores e vários estudantes, estavam chorando. 

O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss durante visita àUniversidade de SãoPaulo em 17/10/1985. Foto: André Duzek/Estadão

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