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A louca corrida das palavras

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Por Ivan Lessa

Eu vivo há mais de meio século de palavras. Elas me enchem a barriga. Elas talvez encham a paciência dos outros. Mas esse o caminho que me foi oferecido, que examinei, olhei em torno, buscando os perigos ocultos (monstros horrendos atrás de árvores, armadilhas fatais no meio da estrada, minas enterradas) e, apesar de tudo, resolvi trilhar. A propaganda pagava bem à época. Nas palavras me perdi. Perdi-me como a donzela com o vilão sinistro de terno branco e suas (elas de novo!) palavras suaves e enganadoras. Vendi, com o auxílio das palavras, geladeira, sabonete e apartamento na Zona Sul. Sempre capengando um pouco, mas no meio da rua anunciando os produtos que eu era pago, camelô de aluguel, para ludibriar o mundo e, quem sabe, talvez a mim mesmo. Definitivamente, eu era um escritor. Tão escritor quanto os poetas ingleses e ficcionistas americanos que admirava. Apenas vendíamos produtos diferentes. Não negarei. Como todo publicitário, além de, naquela época distante, não pagar imposto de renda, ter 50% de descontos nas passagens aéreas e carteirinha de jornalista, como todo publicitário, gaguejava eu, tinha meu sonetinho na gaveta. Engatilhado. Pronto para um caderno literário da vida, que os havia em pencas, tal como hoje. Sim, meus amigos, podemos não ter uma literatura digna do nome, mas temos grandes, excelentes, quilométricos cadernos literários. Os reclames continuam, como tudo e todos, mentindo. Feito na seresta de Orestes Barbosa: "anúncios luminosos que são a vida a mentir". Eu vou enganando. Ou tentando enganar. Nada mais tenho a vender a não ser o peixe apodrecido de meu texto envolto no jornal - jornal ou laptop? - de ontem. Um mergulho no assunto Amo, pois, por deformação profissional ou fetiche canalha, os dicionários. Lá estão todas elas, as palavras, ou o máximo delas que conseguiram reunir. Não importa a língua. Esperanto, volapuque ou albanês. Só de ver um dicionário, tenho frissons que beiram a sensualidade. Sim, as palavras fizeram de mim um viciado. Eu bebo palavras, entornando-as com minha boca torta e minhas mãos trêmulas, como o viciado com seu absinto ou Coca-Cola com cachaça. Bebo mal, mas bebo. Não quero é que juntem uma após a outra e busquem fazer o sentido. O fato de eu estar fazendo precisamente isto neste canto prova apenas que depois de perder a dignidade e o amor-próprio, os enamorados de palavras - os bêbados de palavras! - vão e dão o habitual vexame. Faz-se necessária uma intervenção. Talvez internação. Reunir-se com outros da mesma laia e procurar seguir os doze passos da redenção. Exatamente como se faz nos grupos de alcóolatras anônimos. Conclusão prolixa A língua inglesa encontra-se em processo de revisão. Alvíssaras! Isso devido á velocidade com que palavras de suma importância estão mudando de sentido. Exatamente como no Brasil. Só que aqui o Oxford Dictionary Online vem focalizando exemplos de definições e acepções que vem mudando de sentido. Um trabalho iniciado há dez anos e que já percorreu quatro letras e meia, de M de month, ou mês, a Q de quantum, ou quantum mesmo. São 60 editores trabalhando, ou tomando um pifão (oh, inveja!) de palavras, todos os dias desde 1997. Já se gastou quase US$ 70 milhões na farra (oh, imensa mágoa!) lexicográfica. Está tudo lá. Acepção original seguida de acepção atual. Voai, homens do Oxford, voai! Que as palavras não param nunca e, quando se derem conta, oxfordistas, elas já terão um outro significado, muito diferente do original e daquele com que, agora, acabaram de lidar. Neste mês, a primeira leva de palavras revistas entra online. Trata-se de primeira revisão completa do Oxford. Os leitores, ou pesquisadores, poderão comparar o que uma palavra significava em 1928, data da primeira edição do esplêndido dicionário, com o que significa hoje. Feito, por exemplo, mycoplasm, que quer dizer... Bem, vocês vejam aí. Googleiem que vale a pena. Quem aconselha é um velho porrista velho. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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