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Diversidade e Inclusão

Enfermeira que tem autismo é demitida após denunciar boicote no Hospital do Servidor Público de SP

Andrea Batista tem síndrome de Asperger e estava na unidade há menos de três meses, mas não recebeu apoio especializado para aprender rotinas e procedimentos. Hospital desqualificou a profissional, destacando suas deficiências técnicas, e afirmou que a interação social "não é fator relevante" no caso. "É como dizer ao cego que seu ponto negativo é não enxergar", desabafa a enfermeira, que relata discriminação de colegas e superiores. Para a neuropsicóloga que tratou Andrea, o HSPE tem a obrigação de oferecer suporte adicional a funcionários com deficiência.

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Foto do author Luiz Alexandre Souza Ventura
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Atualizado em 14/08/2018 (14h54) - A enfermeira Andrea Batista da Silva, de 44 anos, recém-admitida na ala infantil do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE) de São Paulo, foi demitida nesta sexta-feira, 10, após denunciar discriminação e boicote de colegas de trabalho, inclusive superiores. Ela tem o Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas não recebeu orientação especializada para aprender os procedimentos da unidade e, por isso, foi avaliada de maneira correta e equivalente. O Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP) abriu procedimento para investigar o caso.

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Andrea obteve diagnóstico de síndrome de Asperger somente aos 41 anos, após conviver por toda a vida com dificuldades de interação social. Prestou concurso para o HSPE em 2017 e ficou na quarta colocação da lista de pessoas com deficiência. "Desde o primeiro dia de treinamento, em junho, expliquei que tenho Asperger, mas ninguém pareceu entender o que isso significa e, muito menos, conseguiram lidar com essa condição", comenta a enfermeira.

"Os argumentos para a demissão foram os mesmos das avaliações" disse Andrea ao blog Vencer Limites depois de ser dispensada. "A gerente de enfermagem ainda foi irônica e disse 'Você é esclarecida, né? Sabe procurar seus direitos', porque eu denunciei a situação", contou a enfermeira.

Questionado, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe), que administra o HSPE, confirma que não ofereceu qualquer suporte adicional à funcionária e ainda desqualificou a colaboradora, destacando suas deficiências técnicas e ressaltando que a interação social "não é fator relevante" nas avaliações da enfermeira.

"Essa é justamente a minha maior dificuldade, que demorei 41 anos para entender. É como dizer ao cego que seu ponto negativo é não enxergar, e ainda não oferecer acessibilidade", desabafa a Andrea.

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IMAGEM 02: Andrea foi aprovada para trabalhar no HSPE em concurso de 2017 e ficou na quarta colocação da lista de pessoas com deficiência. Crédito da foto: Arquivo pessoal / Andrea Batista da Silva  Foto: Estadão


Funcionária há 22 anos do Hospital Guilherme Álvaro, em Santos (SP), Andrea recebeu pontuação máxima na avaliação mais recente, referente ao período entre abril e junho, com destaque para seu alto nível de qualidade, interesse excepecional e confiança total em seus trabalhos.

"Pretendia manter os dois empregos, trabalhando 12 horas em cada um, intercalando os dias", explica a enfermeira, que mora em São Vicente, também no litoral paulista.

Andrea atua na área desde 1992, quando fez curso de auxiliar de enfermagem e começou a trabalhar no Hospital Irmã Dulce, em Praia Grande. Em Santos, integrou as equipes da Santa Casa, do Hospital Ana Costa, da Casa de Saúde e da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Infantil do Gonzaga.

Em 2008, formou-se em enfermagem na Universidade Paulista (UNIP) de Santos. Atualmente, tenta concluir uma pós-graduação em UTI pediátrica e neonatal, que precisou interromper porque não conseguia bancar a mensalidade.


IMAGEM 03: Laudo de neuropsicóloga confirma a síndrome de Asperger, "sem comprometimento intelectual e de linguagem, mas com déficits na comunicação e interação social em múltiplos contextos". Crédito da foto: Arquivo pessoal / Andrea Batista da Silva  Foto: Estadão


Toda a bagagem profissional de Andrea, no entanto, parece ser irrelevante no HPSE. "Eu preciso de um tempo para conhecer a rotina do hospital, saber como funcionam os sistemas no computador, e pergunto bastante, mas as colegas designadas para minha orientação me boicotaram desde o primeiro dia e colocaram nas avaliações que eu não socializo com o grupo", diz Andrea.

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"Fiquei na UTI pediátrica, que é minha principal especialidade, durante o primeiro mês (junho). Então, fui transferida, sem explicação, para a endoscopia infantil, com essa avaliação sobre a falta de interação", conta.

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"Após cinco dias na endoscopia (julho), a avaliadora repetiu o relatório sobre a interação, e ainda escreveu que eu não aprendia a operar todos os sistemas. Como eu poderia saber tudo em cinco dias? Quem aprende a rotina de um novo emprego nesse período?", pergunta Andrea, que foi novamente transferida, dessa vez para o pronto-socorro infantil, onde também afirma ser alvo de preconceitos. "Uma das colegas me disse que eu deveria esconder que tenho Asperger para me preservar", comenta.

A enfermeira diz ter procurado a coordenação do HSPE para relatar todos os problemas que enfrentou no hospital, mas a situação não mudou. "Disseram que tudo seria revisto e que descartariam as avaliações anteriores sobre a interação, mas as mesmas informações foram incluídas na terceira avaliação", ressalta Andrea.


"Socializar é a minha maior dificuldade, que demorei 41 anos para entender"

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DIAGNÓSTICO - A neuropsicóloga Sandra Dias Batochio da Silva confirmou, três anos atrás, que a enfermeira Andrea tem a síndrome de Asperger, "sem comprometimento intelectual e de linguagem, mas com déficits na comunicação e interação social em múltiplos contextos", diz o laudo emitido pela especialista.

"Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) têm direitos previstos em leis, porém se vê um processo desestruturado, para cumprir a lei de cotas. Para mudar esse quadro é preciso criar uma cultura de inclusão eficiente e conscientizar todos os agentes: empresa, sociedade e governo", afirma a neuropsicóloga.

"Andrea cresceu, amadureceu e desenvolveu estratégias compensatórias para alguns desafios sociais, mas enfrenta dificuldades em situações novas ou sem apoio, sofrendo com esforço e ansiedade para calcular o que é socialmente correto para a maioria das pessoas. O prejuízo pode ser relativamente sutil em contatos superficiais, mas perceptível na interação dia a dia, no campo laboral e social", explica a especialista.

Na opinião da neuropsicóloga, Andrea precisa de acompanhamento na fase probatória para ser avaliada com equivalência. "A inclusão preconiza uma série de ações que, na prática, não ocorrem. Neste caso, conscientização e informação sobre os sintomas característicos fariam uma grande diferença", defende Sandra Dias Batochio da Silva.


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"A inclusão preconiza uma série de ações que, na prática, não ocorrem".


RESPOSTA - Questionado pelo blog Vencer Limites sobre a situação da enfermeira Andrea Batista da Silva, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe) enviou nota por e-mail na qual esclarece que, atualmente, trabalham no Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE) 20 servidores com algum tipo de deficiência, todos devidamente efetivados, além de mais 28 na área administrativa.

"O Iamspe não pactua com quaisquer tipos de discriminação ou preconceito contra seus profissionais.

No caso da servidora Andrea Batista da Silva, durante o primeiro ciclo de avaliação (45 dias) foram identificados problemas técnicos na execução do trabalho pela profissional, entre elas dificuldade em priorizar atendimento de urgência, necessidade de aprimorar seus conhecimentos para atender a pacientes em consultas de enfermagem, dificuldade na conferência diária de medicamentos psicotrópicos, grande dificuldade no cumprimento da escala diária, dificuldade na compreensão e desenvolvimento de seu papel como líder de equipe, deficiência no uso do sistema informatizado do hospital para solicitação de insumos e remédios e nas ações rotineiras de um enfermeiro, entre outros.

Em sua entrevista admissional, ela relatou que se identificava com a área de terapia intensiva neonatal e pediátrica e, por isso, foi alocada na UTI pediátrica. Diante das limitações técnicas apresentadas, o hospital propôs que ela mudasse de setor. A servidora referiu que, no Hospital Guilherme Álvaro, onde exerce cargo de auxiliar de enfermagem (nível técnico) e não de enfermeira (nível superior), atua no setor de endoscopia. A gerência de enfermagem propôs, então, que ela continuasse seu período probatório no setor de endoscopia do HSPE, a fim de se sentir mais à vontade com o ambiente e com as rotinas assistenciais.

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Porém, a servidora apresentou dificuldades semelhantes às já apontadas. Com o objetivo de adaptar as características da profissional às atividades assistenciais, e procurando evitar o desligamento da funcionária antes do término do contrato de experiência, a gerência de enfermagem propôs que ela trabalhasse no ambulatório da pediatria, onde o ritmo de trabalho é mais tranquilo do que em outros setores, o arcabouço de conhecimento técnico requerido do profissional enfermeiro é menor e onde o horário de trabalho é mais salubre, de seis horas por dia, em vez das 12h desempenhados pela servidora.

No entanto, ela não concordou com a proposta e solicitou sua alocação no pronto-socorro infantil, no que foi prontamente atendida, pois o hospital ainda apostava na adaptação da funcionária, o que, infelizmente, não ocorreu.

Durante todo o período probatório a profissional foi avaliada por três chefias diferentes, e todas foram unânimes em apontar problemas de ordem técnica para o desempenho na atividade de enfermagem, que poderiam causar prejuízo na assistência aos pacientes do hospital.

Por esses motivos, o Iamspe entende que a interação social não é fator relevante para possível continuidade ou não do contrato de trabalho, e sim as questões de ordem estritamente técnica elencadas nos processos de avaliação.

O Iamspe e a direção do HSPE estão à inteira disposição da profissional para quaisquer esclarecimentos", conclui a nota.

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"A área de recursos humanos deveria oferecer suporte adicional"


SUPORTE ADICIONAL - "Usaram questões de ordem estritamente técnica para dispensá-la', diz a neuropsicóloga Sandra Dias Batochio da Silva. "Deveria haver sensibilização de todos os atores, visto que, no caso do autismo, pessoas que tiveram diagnósticos tardios desenvolveram estratégias para se adaptarem", explica.

"A área de recursos humanos deveria oferecer suporte adicional, com profissionais capacitados e, por meio de atividades e programas que auxiliariam na desconstrução de barreiras à inclusão, o suporte vocacional também seria um facilitador neste processo de inclusão, pois os autistas poderiam aprimorar suas competências e aprenderiam a lidar com suas próprias expectativas", esclarece.

EMPREGO APOIADO - O blogVencerLimites questionou o Iamspe sobre a estrutura de emprego apoiado que a enfermeira, por ser uma pessoa com deficiência, deveria receber para que sua avaliação fosse elaborada com equivalência.

Em nota, a unidade confirma que não ofereceu qualquer suporte adicional à funcionária. "A enfermeira foi acompanhada pela própria equipe de enfermagem e pela chefia, inclusive consta em relatório que a profissional diz formalmente que foi muito bem recebida pela coordenadora, sempre orientando tudo que foi perguntado por ela. O período probatório ainda estava em curso", conclui o Instituto.

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