Viagens de ônibus e silêncio nas redes: mafiosos discretos levam vida diferente da ostentação do PCC

Segredos são revelados pelas mensagens de Vincenzo Pasquino, delator que decidiu entregar a máfia e seus negócios com as facções brasileiras; ‘Estadão’ não localizou a defesa dos acusados

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Foto do author Marcelo Godoy

Viagens de ônibus para despistar a polícia. Hospedagem geralmente em hotéis modestos ou apartamentos alugados em prédios de classe média – exceto quando estavam na praia. Nenhuma postagem em rede social ou comunicação com desconhecidos ou por qualquer sistema que a polícia pudesse interceptar. A vida dos mafiosos do grupo italiano ‘Ndrangheta tinha muito pouco da ostentação de seus companheiros do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV).

Rocco Morabito desce na garagem de um prédio, no Morumbi, em São Paulo, de um carro conduzido por um brasileiro que trabalhava para ele e Vincenzo Pasquino. Foto: Reprodução/Estadão

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Vincenzo Pasquino, principal negociante de cocaína da ‘Ndrangheta na América do Sul, vivia com a mulher em um condomínio de classe média no Tatuapé, zona leste de São Paulo. Era um prédio bem mais modesto do que os de alto padrão escolhidos por traficantes do PCC naquela região.

Apesar da discrição, ele não escapou quando a polícia italiana pôs as mãos nas mensagens do sistema criptografado da máfia, o Sky ECC. O Estadão não conseguiu contato com a defesa de Pasquino.

Em 25 de maio de 2020, Pasquino enviou mensagens para parceiros na Itália para dar a eles a dimensão da importância dos novos contatos feitos no Brasil. Tratava-se, segundo os investigadores, de traficantes do PCC e do CV.

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O encontro entre Vincenzo Pasquino e o Enet Begorataj, da máfia albanesa, em São Paulo fotografado por policiais do Denarc Foto: Reprodução / Estadão

Na comunicação, o hoje delator manda ao seu comparsa na Calábria, sul da Itália, uma fotografia de caixas de frutas empilhadas, dentro das quais havia embalagens pretas embrulhadas em celofane. Algumas delas continham uma folha onde estava escrito TOP. A polícia italiana não tem dúvida: era um carregamento de cocaína para o Porto de Gioia Tauro, na Calábria.

Pasquino havia criado uma rede de apoios no Brasil que incluía brasileiros, italianos e albaneses. Ao todo, 18 deles foram identificadas pela 4ª Delegacia do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) de São Paulo – além dos italianos Pasquino e do chefão Rocco Morabito, havia três albaneses e 13 brasileiros. O Estadão também não localizou a defesa de Morabito.

Os mafiosos se permitiam gozar do luxo que o dinheiro da droga proporcionava quando estavam no litoral. A PF e a polícia italiana encontraram Morabito e Pasquino em um resort na praia de Tambaú, em João Pessoa, em 2021.

Já no Guarujá (SP), segundo uma testemunha ouvida pelo delegado Fernando Santiago, do Denarc, Morabito teria comprado duas casas no condomínio Acapulco, uma das quais avaliada em R$ 20 milhões.

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As provas da Operação Eureka: Mensagem enviada por Vincenzo Pasquino com imagens da droga que ia despachar para a Itália com Sebastiano Giampaolo Foto: Reprodução / Estadão

Morabito chegou ao Brasil após fugir do Uruguai, onde morou. Era lá que estavam baseadas as offshores que compraram dois de seus imóveis no Guarujá. Para se manter no Brasil, segundo o delegado, o mafioso se aliou a traficantes. Em troca de ajuda na logística, pagava os brasileiros com droga que era distribuída na Baixada Santista e em Santa Catarina.

Seu braço direito no Brasil era Pasquino, que se mudou para o Brasil em 2017. Em São Paulo, ele e Morabito viviam em um condomínio na Rua Aguapeí, no Tatuapé. Também se deslocavam para dois apartamentos no Guarujá e para um imóvel no Morumbi, na zona sul paulistana.

O chefe usava uma Mercedes-Benz prata. Mas também foram vistos em um HB20 e em uma picape, que depois foi usada para o transporte de drogas. Os dois foram fotografados pelo Denarc sem que os policiais soubessem suas identidades.

Policiais do Denarc fotografam uma picape Hilux sendo carregada com drogas no Guarujá: veículo foi visto antes com os albaneses e os italianos. Foto: Reprodução/Estadão

Um dos casos investigados pela polícia paulista foi o de um carregamento de quatro peças de drogas em um Fiat Mobi, que transportava o entorpecente para Balneário Camboriú (SC). Lá, italianos e albaneses usavam apartamentos de traficantes brasileiros.

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O automóvel, interceptado pela Polícia Rodoviária Federal, era guardado na garagem do prédio usado por Morabito. Ao seu lado, as câmeras flagraram os albaneses Enert Begorataj e Leart Gjimaraj e os italianos Morabito e Pasquino. A reportagem não encontrou a defesa dos albaneses.

Eles mantinham em São Paulo contato com José Rinaldo Bezerra de Aguiar, o JR. Era ele, segundo o Denarc, um dos responsáveis por fornecer carros para os traficantes da ‘Ndrangheta. Em 17 de novembro de 2021, JR foi preso - a defesa não foi localizada.

Em mensagens, ele dizia estar pronto para repassar “oito meninas” - segundo a polícia, código para peças de cocaína. Mas foi preso com quatro tabletes da droga. Em uma conversa anterior, questionado sobre qual o “emblema” (a origem da mercadoria), ele responde: “Peruana, tipo exportação! Vamos contar dinheiro!”.

Outro contato importante dos estrangeiros era Everton dos Santos da Silva, o Mormai ou Tio. Trata-se do disciplina (o que cobra o cumprimento de regras) do PCC no bairro do Perequê, no Guarujá. Tio foi surpreendido em diálogo interceptado tratando de julgamentos do tribunal do crime na Baixada Santista. “Havia até mesmo fotos de pessoas sequestradas e mantidas em cárcere para julgamento”, disse o delegado. O Estadão não localizou sua defesa.

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A prisão de José Rinaldo, o JR, acusado de traficar drogas em parceria com os traficantes italianos da 'Ndrangheta Foto: Reprodução / Estadão

A troca de mensagens, porém, não deixa claro quem são todos os contatos de Pasquino. Para surpresa dos italianos, o mafioso se referia a “uma senhora”, que seria “uma das mais potentes narcotraficantes do Brasil”. Em 25 de maio de 2020, ele escreveu no sistema de mensagens criptografadas dos mafiosos: “Compa, estou trabalhando com a senhora, é uma dos mais fortes do Brasil”.

Ela seria capaz de enviar grandes quantidades de cocaína. “Manda toneladas e toneladas.” Não fica claro, porém, se Pasquino citava uma chefe do tráfico no Brasil ou usava um codinome.

E o delator não costumava conversar com qualquer um que o procurasse. Em 6 de novembro de 2020, JR recebe a queixa de que o italiano não respondia às mensagens. JR explica que Pasquino não aceitava solicitações no aplicativo de pessoas que não conhecia, pois era procurado pela Interpol. Dias depois, JR diz ao interlocutor que Pasquino estava em São Paulo e iria procurá-lo.

Os traficantes brasileiros souberam da prisão de Morabito e de Pasquino em 2021, pela imprensa. Os italianos, principalmente Pasquino, conhecido na facção como “Enzo”, ainda deviam dinheiro aos líderes do PCC. A investigação mostra que um dos traficantes ficou com o HB20 usado por Pasquino como forma de diminuir seu “prejuízo”.

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De Santos, Paranaguá e Itajaí para Roterdã, Antuérpia e Gioia Tauro

Enquanto agiam no Brasil, Pasquino e seus amigos enviaram cocaína também para o Porto de Gioia Tauro, na Itália. Exemplo disso foi uma carga enviada pela ‘Ndrangheta para os portos de Roterdã, na Holanda, e Antuérpia, na Bélgica. Era 26 de maio de 2020. Pasquino falava com dois mafiosos no criptofone (aparelho que dificulta a interceptação de mensagens) e outra vez se vangloriava de manter negócios com bandidos do Brasil.

O chefão italiano Rocco Morabito, conhecido como U Tamunga, em sua ficha na polícia brasileira Foto: Reprodução / Estadão

“Me ajudaram inclusive a pagar algumas dívidas”, afirmou sobre os amigos brasileiros. Em 20 de dezembro de 2020, Pasquino mandou novas mensagens pelo sistema criptografado nas quais dizia que poderia enviar droga também do Equador para Gioia Tauro.

Um dos carregamentos de droga que a procuradoria italiana encontrou por meio das mensagens no Sky ECC tinha 263 quilos de cocaína embarcados em um contêiner refrigerado.

Na capital paulista, Pasquino tinha ajuda de Sebastiano Giampaolo, mafioso que preferia se hospedar em um hotel de uma grande rede com diárias baratas e marcava encontros com albaneses em cafés da região da Avenida Paulista. A defesa de Giampaolo não foi localizada pelo Estadão.

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Pasquino tinha apreço pelo porto de Paranaguá (PR), onde dizia ter “esquema seguro” para ocultar a droga em cargas de carne. Já nos portos de Santos (SP) e de Itajaí (SC), contou que podia esconder a droga nas caixas de mar dos navios. Esse compartimento fica embaixo do nível da água e resfria os motores das embarcações. O crime organizado usa mergulhadores para ocultar a droga nesses locais.

Um grupo de albaneses ligados à ‘Ndrangheta também era constantemente visto com Pasquino em São Paulo. Eles tinham ligações com outros albaneses responsáveis pelo envio de cocaína à Itália por meio do porto de Colón, no Panamá, e de Mariel, em Cuba.

Uma dessas cargas, com 600 quilos, foi apreendida justamente em Colón. A droga estava em 24 embalagens escondidas num contêiner que partia para Mariel antes de chegar a Tessalônica, na Grécia. De lá, cem quilos seriam retirados pela ‘Ndrangheta para envio à Itália.

Dinheiro dos mafiosos ligados a Pasquino usado nas operações para a compra de entorpecentes: lavagem de dinheiro envolvia diversos países Foto: Reprodução / Estadão

Outra carga maior, de 600 quilos da droga, contou com a parceria de traficantes albaneses, que rendeu aos entregadores brasileiros em Santos € 5,5 mil por quilo. Ao todo, os procuradores italianos localizaram dez carregamentos de droga do Brasil e um da Colômbia que teriam sido organizados por Morabito a partir do Brasil.

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Integrantes da máfia sérvia também ajudavam Morabito a enviar cocaína para a Europa, onde a droga podia valer até € 35 mil o quilo. Dois deles usavam os codinomes John Gotti e Don Cale.

As fotos feitas pela PF do encontro entre Sebastiano Giovanni e os albaneses em um café na região da Avenida Paulista durante as investigações no Brasil da Operação Eureka Foto: Reprodução / Estadão

Chefe da máfia se escondeu no Uruguai e passou 23 anos foragido

Até ser detido no Uruguai, em 3 de setembro de 2017, Morabito havia passado 23 anos foragido, desde que foi alvo da Operação Fortaleza, em 1994. Foi nessa época que Morabito começou a importar cocaína do Brasil com ajuda de seu sobrinho Francesco Sculli, cuja defesa também não foi encontrada pela reportagem.

A droga era embarcada do Ceará para a Itália. Morabito acabou condenado em Milão e em Palermo a 81 anos de prisão.

Ao ser preso no Uruguai em um hotel em Montevidéu, ele usava passaporte brasileiro em nome de Francisco Antonio Capeletto Sousa e portava uma pistola. Vivia escondido em uma casa luxuosa em Punta Del Este, onde foram apreendidos US$ 150 mil, 13 telefones celulares e 12 cartões de crédito. Quase dois anos depois, em 19 de maio de 2019, fugiu da cadeia. Passou a se esconder no Paraguai, depois no Peru e finalmente no Brasil.

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Segundo mensagens interceptadas, a Justiça italiana obteve provas de que, três meses depois de fugir, Morabito já organizava a primeira remessa de cocaína do Brasil para a Itália: 200 quilos. A ‘Ndrangheta tinha contatos em Ponta Porã (MS), Camboriú (SC), São Paulo, Rio, Fortaleza e João Pessoa.

Trecho das mensagens trocadas entre Visionário, um traficanate do PCC, e os mafiosos da Ndrangheta Foto: Reprodução / Estadão

No Brasil, Morabito foi ajudado por vários mafiosos, entre eles Giovanni Falzea. Ele teria auxiliado Morabito com a confecção de documentos falsos. Até um “cabelereiro de confiança” foi arrumado para as imagens que seriam usadas nos documentos pelo chefe da máfia. A defesa de Falzea não foi localizada.

Os tais “homens de confiança” que trafegavam entre Brasil e Itália eram uma alternativa de enviar à América do Sul recursos necessários para manter parte da rede do grupo. Uma das remessas – de € 30 mil – enviada por meio de um italiano a Morabito no Brasil foi apreendida pela Polícia Federal quando o emissário desembarcou no Rio.

Falzea faria parte dessa rede. Ele levou sete dias para se mover do Rio até Florianópolis, onde Morabito se escondia. Sempre de ônibus, para não despertar suspeitas. Foi ali que surgiu a ideia de transferir as operações da ‘Ndrangheta para o Nordeste, para fugir da vigilância policial.

Contavam com a ajuda de um brasileiro, designado pelos mafiosos como o Visionário no sistema de criptografia Sky ECC. Ele era chamado pelos italianos de “Prof” e mantinha contato com os mafiosos por meio de um representante em Milão.

Foi ele quem organizou o envio de 275 quilos de cocaína do Brasil para Antuérpia em março de 2020, pouco antes do fechamento do porto em razão da pandemia. A droga estava escondida em uma caixa de mar do navio e acabou apreendida pela polícia belga. Ao todo, a parte da Operação Eureka que envolveu Morabito levou o juiz de instrução Claudio Teglia a decretar onze prisões preventivas e quatro prisões domiciliares.

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