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A prosa feroz de Campos de Carvalho

Os quatro romances do escritor mineiro, mestre em narrar o absurdo da vida, saem separadamente pela José Olympio

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Por Marcelino Freire
Atualização:

Não faz muito tempo que conheci a literatura de Campos de Carvalho. Dez anos. Ou dez dias. Não lembro. Diante dela, toda memória ruída falha. Cai no esquecimento. Repensemos. Era o final do ano de 1997. Numa livraria, minha vista deu de cara com uma obra reunida, em volume único e de capa azul-escura, saída em 95 pela José Olympio Editora. Quem era aquele escritor? De títulos espetacularmente ridículos? Vaca de Nariz Sutil, O Púcaro Búlgaro? Ou: senão pateticamente poéticos: A Chuva Imóvel, A Lua Vem da Ásia? De onde vinha aquele cara melancólico, setentão (a edição trazia fotos dele - de formatura, viagens, etc.), que renegava seus dois primeiros livros, que até hoje permanecem inéditos - proibidos por ele de serem publicados: Banda Forra (ensaios humorísticos) e Tribo (romance)? Pronto: era o começo do mistério. E do feitiço. Corri para conferir a orelha da edição: ela, assinada por Mario Prata, revelava: "Comecei a ler seus livros porque você os mandava para a minha mãe (Dídia, sua prima) e ela escondia cá do adolescente, dizendo que eram fortes." Depois, vinha um prefácio de Jorge Amado. Amado? O que tinha a dizer o criador de Gabriela sobre um autor tão antiBrasil-libido-tropical, ora essa? O generoso baiano famoso dizia, a saber: "Poucas notícias me alegraram tanto nos últimos tempos quanto esta que recebo por fax da Maria Amélia Mello, gerente editorial da José Olympio Editora: a José Olympio vai reeditar os quatro romances publicados por Campos de Carvalho. Tenho vontade de sair gritando ?aleluia? pelo Rio Vermelho afora: uma das obras maiores da literatura brasileira, por tantos anos esquecida, fora das montras das livrarias, reencontra o caminho do público e do reconhecimento da crítica." A mesma José Olympio e a mesma desbravadora Maria Amélia que, "aleluia" idem, acabam de relançar os romances, separadamente. Com orelhas assinadas por Carlos Heitor Cony, Carlos Felipe Moisés (que também participava da edição de capa azul), Aderbal Freire-Filho (que recente e brilhantemente adaptou O Púcaro... para o teatro) e Juva Batella (esse que tem, inclusive, um ótimo livro intitulado Quem Tem Medo de Campos de Carvalho?, publicado pela 7Letras e que recomendo com entusiasmo). Mas voltemos às minhas primeiras impressões-parágrafos. Que até hoje não me largam. Da Lua: "Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? -, logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris" - começo, este, já tido como um dos mais fenomenais da nossa literatura! Daí parti para a Vaca: "Onde o senhor dorme? No Hotel Terminus. Mas aqui não há nenhum Hotel Terminus. É o que o senhor pensa." Hotel que, depois, vim descobrir que existia um, com o mesmo nome, até poucos anos, no centro velho de São Paulo e eta danado! Enfim. Deu-me um arrepio. Um cisco na alma. Quando a gente descobre um artista. Ali mesmo, àquela época, em pé à livraria, fui derreando os ossos. Tomado de vez pelo assombro. Por que nunca, na escola, nas patotas literárias, o nome dele surgiu? Nasceu Walter Campos de Carvalho em 1916. Mineiro de Uberaba. Residente em São Paulo. Tranquei-me em casa. E, num fôlego, fui sugado por seu universo único, movediço, à deriva. Uma frase negando a outra. Deixando tudo em suspensão. Combalido coração. O que faço depois de tudo isto? Pensei: irei atrás desse autor recluso, irei trocar uns parafusos com ele, pendurar-me à sua porta - feito um enforcado. Para ontem. Catei a lista telefônica. Foi fácil encontrar seu número. Ensaiei durante alguns dias ligar para o homem sisudo, mal-humorado, de mal com a vida - era o que se dizia. Disquei. Quem atendeu foi Lygia, sua mulher. Ele dorme, disse ela. Ligue depois. Não liguei mais. Não sei. Não lembro. Como mexer em vulcão adormecido. Fiquei ali, remoendo na releitura a imagem alucinatória de suas linhas. Seu ritmo apocalíptico. Fui à Chuva: "Foi então que me vi numa gare extremamente vazia. Tão vazia que nem a minha sombra se refletia nela. Alguém, uma voz, me sussurrou ao ouvido: CAFARNAUM." Ao Púcaro: "Se a Bulgária existe, então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir. Este o único ponto no qual parecem assentir os que negam e os que defendem intransigentemente a existência daquele amorável país, desde os tempos antediluvianos até os dias pré-diluvianos de hoje." Que país é este? Como conseguia deixar à poeira um escritor da grandeza de Campos? Eu, envergonhado. E ignorante. Precisava urgentemente me retratar, sei lá. Voltei a telefonar, depois de alguns meses, já no ano de 98. Uma mulher, de voz suada, atendeu. Olhe, ligue daqui a pouco e fale com a esposa dele. Faltou-me a coragem. Algo grave teria acontecido? Não retornei, não fui além. Deixei quieto. Um dia, a gente se cruza. Em Higienópolis, a caminho da sorveteria. Na Bulgária, na Cochinchina, em alguma vida eterna, saravá, amém. Pois bem: Campos de Carvalho morreu exatamente naquele ano de 98, numa Sexta-Feira Santa. Soube via Estadão. Em um belíssimo testemunho escrito pelo mesmo Mario Prata: "Quatro pessoas no velório. Quatro! Nenhum amigo, ninguém da imprensa." Entre os presentes, o jovem filho de Mario, Antonio Prata: "Está com um sorrizinho irônico nos lábios. Nunca vi ele com a cara tão boa." No caixão. Meu debochado escritor, raivoso, me deixou. Eu poderia ter sido um dos pouquíssimos que ajudaram a levar o corpo morto, pô! Até hoje, carrego esse peso comigo. Juro. E a vida passou. Numa ligeireza só. Sempre ao meu lado o compasso de seus personagens. Inacreditáveis. Repito: de quando em quando, eu retornava, solitário, à leitura de sua liturgia macabra. Seria? "Funereamente seu" (do final de A Lua). Ou: "Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo" (do final de A Chuva). Mais adiante, fiquei amigo do escritor Nelson de Oliveira, que esteve com Campos de Carvalho nos últimos anos de sua vida. Contou-me do encontro que teve com ele, deu-me o livro-homenagem Campos, que Nelson lançou, no ano 2000, em tiragem limitada (Editora Sem Leitores). E, mais à frente, presenteou-me com uma raridade: a primeira edição do romance Água Viva, de Clarice Lispector, autografada por ela, assim, em letra tremida: "A Campos de Carvalho - que teve a delicadeza de apanhar no chão um parafuso." Matei a charada. Campos, com a sua literatura, escancara em nós o nosso miolo mole, a nossa moleza, a nossa lerdeza, a nossa cegueira, a nossa covardia. Tem ele, sim, certo parentesco com a autora de A Paixão Segundo G.H. São coirmãos. Loucos de pedra. Ambos donos de uma linguagem transcendental, etc. e tal. Uma prosa feroz e ferida. Ah! Mas isso fica, creio, para uma outro texto, uma outra hora. Um outro tempo. Tanto abismo que vem à minha cabeça agora, pela octogésima vez, em que estou em contato (imediato) com a obra de Campos de Carvalho. Que se você, caro leitor, não conhece, corra para conhecer. Não importa se isso demore dez anos. Ou dez dias. Será sempre para sempre. Duvida? É ler para (não) crer. Marcelino Freire, escritor, é autor, entre outros, de Rasif (Record)

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