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As vidas de dois tiranos pelo mestre do barroco

O diretor Gabriel Villela prepara montagens de Ricardo III, de Shakespeare, e Calígula, de Albert Camus, para provar que vilões não pertencem ao passado, mas representam o presente do mundo globalizado

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Alguém precisava revisitar a tragédia nestes tempos em que pais atiram filhos pela janela, governantes de países europeus ensaiam leis restritivas contra imigrantes e o mundo parece se habituar à violência doméstica e estatal. ''Não dá nem para metaforizar uma situação como essa, pois o bafo fascista tornou tudo tão literal que seria tempo perdido recorrer a alegorias'', diz o premiado diretor teatral Gabriel Villela, justificando a escolha de peças que, entre este e o próximo ano, deverão manter ocupado o profissional mineiro, às voltas com antigos governantes tiranos e um infeliz soldadinho de chumbo, derretido por decisão de um voluntarioso e pequeno ditador. Por ordem de aparição em cena, o primeiro tirano a subir ao palco, em julho, será o rei corcunda Ricardo III, de Shakespeare, seguido pelo mais cruel de todos os Césares, Calígula. A peça de Albert Camus será montada em novembro, seguida por uma trégua entre as tragédias, a nova montagem de Os Saltimbancos em Portugal, que Villela lá encenou em 1993. E, no próximo ano, a mais triste história infantil de todos os tempos, O Soldadinho de Chumbo, ganha montagem com produção de Luana Piovani. Como se não bastasse, ainda em 2009, Villela assina a direção da peça que fez o Brasil ingressar na modernidade, em 1943, Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. As razões da escolha de Ricardo III e Calígula parecem óbvias. Ambas lidam com dois dos personagens mais cruéis que já passaram pelos palcos. Fecham ciclos históricos infernais, anunciando novos - e não nececessariamente bons - tempos. Calígula, o insano que fez de seu cavalo um magistrado, fecha a cortina do Império Romano. Ricardo III, nascido para ser vilão e assassino, prepara o Renascimento inglês, o período elizabetano, também chamado de ''late Tudor'' (1558 a 1603), após um reinado feito de sangue e delírio megalomaníaco. E o que faz nessa história um soldadinho perneta, apaixonado por uma bailarina de papel? Ele é, antes de tudo, vítima da crueldade de um geniozinho enfezado, depois de um enorme rato de esgoto com vocação para guarda alfandegário e, finalmente, de um garoto mimado que, cansado de soldados pernetas, atira o herói na lareira. Em outras palavras: o soldadinho de chumbo derretido é a vítima preferencial de tiranos, alguém com coração, algo imperdoável em reinados de terror. Convencido de que o medicamento para a doença contemporânea da frieza neofascista do mundo globalizado chama-se arte, Villela vai montar Ricardo III no árido sertão nordestino do Seridó, em Acari, município pobre do Rio Grande do Norte com 12 mil habitantes e 50 leitos hospitalares , todos conveniados do SUS. Acari, de resto, dispensa um rei assassino como o de Shakespeare. Lá, a mortalidade infantil gira em torno de 45 crianças para cada 1 mil habitantes e a expectativa de vida não chega aos 70 anos. Por conta desses dados, desnecessário dizer que não será uma superprodução, mas uma montagem de grupo pobre. Um dos mais longos textos de Shakespeare, Ricardo III também é uma peça de difícil montagem, exigindo a participação de dezenas de figurantes, personagens secundários cortados na maioria das versões. Villela vai transformá-los em bonecos articulados, o que é uma forma de dizer que as pessoas que eles representam têm pouca importância para a realidade global. São párias do turbocapitalismo excludente. Apenas para refrescar a memória, Ricardo III está determinado a provar que é o pior dos vilões e que sua deformidade não é apenas física, mas moral, alguém que inveja o irmão Eduardo IV no ''inverno'' de sua ''desesperança'' e ordena o assassinato de outro irmão, Clarence, sendo acossado, no final, pelo remorso e os fantasmas daqueles que matou em nome do poder e do dinheiro. Ricardo III, segundo Villela, ''é uma preparação para Hamlet''. A predestinação contra o livre arbítrio, diz ele, é uma seqüela da tragédia grega, que merece, segundo Villela, ser considerada quando se fala em fatalismo histórico. Personificação do mal absoluto, o rei de Shakespeare não tem como fugir a seu destino. ''A consumação é trágica e arriscaria dizer que há nele um diálogo surdo com Calderón de La Barca'', diz Villela, que dirigiu há dez anos uma versão de A Vida é Sonho, do dramaturgo espanhol. Ele considera que Shakespeare antecipa ''essa antítese típica do barroco''. De barroco Villela é mestre. Não por causa do espírito da Contra-Reforma, mas por ter assumido a estética do teatro sacrum desde que dirigiu, em 1989, O Concílio do Amor, de Oscar Panizza. Nele, a exaltada paródia dos autos sacramentais acabou formatando o ''estilo Villela'', reforçado pelo ilusionismo das igrejas barrocas de Carmo do Rio Claro, cidade mineira onde nasceu o diretor há 50 anos. Livre desse espírito barroco desde que encenou há dois anos Leonce e Lena, de Büchner, ele dirigiu recentemente uma despojada montagem da premiada Salmo 91, peça do dramaturgo Dib Carneiro Neto adaptada do livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. ''Büchner exauriu em mim o pânico do vazio'', conta Villela, explicando a razão de ter trocado o excesso visual pela palavra sintética. ''A imagem perdeu espaço para o poder do verbo'', conclui, conduzindo a discussão para o texto camusiano que fala do imperador romano Calígula, estereótipo do tirano maluco que ele pretende tratar não como o paranóico megalomaníaco e devasso exibicionista que Bob Guccione retratou na tela, mas como um tirano que refletiu a perversidade de ditadores como Hitler e Mussolini na época em que Camus começou a escrever sua história (1938) que, segundo Villela, infelizmente ainda não terminou.

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