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Os mapas servem para outras coisas além de encontrar o caminho. E eles estão na moda

Era de se imaginar que os mapas iriam sumir com o GPS e os aplicativos que nos ajudam a nos localizar. Pelo contrário: o interesse na cartografia se intensificou e ela está presente em obras de arte, móveis, objetos de decoração e roupas

Por Eve M. Kahn (The New York Times)

“Olhar para um mapa é como olhar para o fogo de uma lareira: dá uma sensação de que tem algo acontecendo o tempo todo, e isso nos fascina”, disse Anders Mattsson, marceneiro da Svenskt Tenn.

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Para celebrar seu centenário, a empresa de design sueca está entrando na onda de interesse por mapas. A Svenskt Tenn lançou uma linha de armários revestidos em cópias de um mapa de Estocolmo da década de 1870, repleto de pedestres, carruagens, cemitérios, fazendas, moinhos de vento e veleiros. Quem eram essas pessoas, para onde iam e com que frequência essas paisagens urbanas eram percorridas? O cenário cheio de detalhes, disse Mattsson, “faz sua imaginação voar”.

O armário de edição limitada se baseia em obras de meados do século 20 da fundadora da Svenskt Tenn, Estrid Ericson, e de seu colaborador de longa data, o arquiteto austríaco Josef Frank. Os dois designers usaram mapas antigos e modernos de Estocolmo, Manhattan, Paris, Londres e outros locais para dar vida a móveis, tecidos, louças e revestimentos de parede. As estampas cartográficas ajudaram a equipe a “cruzar fronteiras e tentar coisas novas”, disse Per Ahlden, curador da Svenskt Tenn.

A Svenskt Tenn lançou uma linha de armários revestidos em cópias de um mapa de Estocolmo da década de 1870. Foto: Svenskt Tenn via The New York Times

A empresa segue um caminho trilhado ao longo de séculos por cartógrafos e artesãos do mundo todo que criaram os chamados cartifacts: objetos com motivos cartográficos, como cinzeiros, abajures, colchas, tapetes, jogos de tabuleiro e encadernações de livros.

Os mapas também foram historicamente incorporados a antigos pisos de mosaico no Oriente Médio, biombos no Japão, tapeçarias para aristocratas britânicos e italianos, amostras costuradas pelas primeiras estudantes americanas, afrescos no Vaticano, tábuas de queijo, piso de linóleo e murais em edifícios cívicos nos Estados Unidos.

Para muitos, como os clientes holandeses do artista Johannes Vermeer, os mapas significam “cosmopolitismo, influência, riqueza e poder”, disse Kevin J. Brown, dono da Geographicus Rare Antique Maps no Brooklyn, Nova York.

Na era digital, esperava-se que os mapas físicos desaparecessem, uma vez que as pessoas hoje podem facilmente rastrear cada movimento como pontos em telas. Em vez disso, o interesse se intensificou.

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“Hoje temos uma consciência cartográfica que não tínhamos antes”, disse o negociante de mapas Daniel Crouch, cujo inventário inclui almofadas de seda impressas com mapas e uma pequena estatueta de porcelana de um mascate de mapas.

A Galeria de Mapas Geográficos no Museu do Vaticano. Foto: Mattia Balsamini / The New York Times

E, como aponta o estudioso Mike Duggan em um novo livro, All Mapped Out: How Maps Shape Us [algo como “Tudo mapeado: como os mapas nos moldam”, em tradução livre], os viajantes ainda se detêm diante de mapas analógicos nas paredes das estações de transporte público. Os mapas, escreve Duggan, “deixam nossos planos visíveis para os outros quando traçamos uma rota pela cidade, ou audíveis quando debatemos o assunto com nossos companheiros de viagem ou pedimos ajuda a alguém”.

Steven Feldman, consultor no Reino Unido, dirige o site mappery.org, dedicado à “cartografia radical”. Ele posta usos improváveis de imagens cartográficas: gravadas em garrafas de vinho, por exemplo, ou ecoadas nas formas de um arquipélago artificial em Dubai. Os mapas de tempos antigos às vezes retratam impérios extintos, como a União Soviética.

Prato com o mapa de Nova York, de 2018 Foto: Outlet Firma Casa/Divulgação

Os mapas, disse Feldman, “são um catálogo de mudanças”. A decoração cartográfica talvez ajude a satisfazer uma necessidade humana fundamental: sentir-se orientado.

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“Os mapas são inerentemente confiáveis. Eles têm algo que faz as pessoas se sentirem seguras”, disse PJ Mode, estudioso e colecionador de mapas que está doando seu acervo para a Universidade de Cornell. Seu foco principal é a “cartografia persuasiva”: mapas destinados a influenciar a opinião pública – por exemplo, defendendo a abolição no início do século 19 ou o sufrágio feminino e o fomento à guerra na década de 1910. Mode gosta de citar a escritora e aviadora Beryl Markham, que imaginou o que os mapas queriam dizer a seus usuários: “Siga-me de perto, não duvide de mim. Sem mim, você fica sozinho e perdido”.

Os móveis decorados com mapas também podem servir como ponto de partida para uma conversa, com suas camadas e texturas sutis e sedutoras. Eles representam lugares de verdade, mas “são intrigantes”, disse Susan M. Schulten, professora da Universidade de Denver e autora do livro Mapping the Nation: History and Cartography in Nineteenth-Century America [”Mapeando a Nação: História e Cartografia na América do Século 19″].

Mapas fazem parte de decoração também no Brasil. Na imagem, de 2015, o quarto é projetado pelo arquiteto Marcelo Rosset e o adesivo, da Primeiro Quarto. Foto: Zeca Wittner/Estadão

As instituições agora estão imergindo os visitantes na cartografia. Na Ballantine House do Museu Newark, em Nova Jersey, um mapa da cidade datado de 1889 se espalha pelo chão da galeria. O Center for Brooklyn History cobriu paredes com séculos de mapas do bairro. No Yiddish Book Center em Amherst, Massachusetts, um mapa-múndi de 18 metros de comprimento aponta marcos culturais atuais e desaparecidos, entre eles uma livraria iídiche na África do Sul e um teatro iídiche no Uzbequistão.

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As imagens ressoam o próprio corpo humano, com suas redes de neurônios e sistemas de circulação sanguínea.

“É tudo uma questão de conexões”, disse Adrienne Ottenberg, artista de Nova York que incorpora mapas em seu trabalho. O Museum at Eldridge Street, em Manhattan, instalou dezenas de seus banners de tecido impresso, retratando ativistas e transformadoras locais em cenários com mapas do bairro.

Obra da artista Adrienne Ottenberg, que incorpora mapas do Lower East Side de Nova York, exposta Museum at Eldridge Street. Foto: Erin Flynn via Museum at Eldridge Street via The New York Times

Na Universidade de Stanford, uma escadaria está repleta de imponentes reproduções de mapas antigos, até mesmo visões gerais do cosmos e um trecho de Manhattan. A escada leva à maioria dos 200 mil mapas da coleção do empresário e filantropo David Rumsey. Subir os degraus para uma visita ao David Rumsey Map Center “traz você para uma atmosfera de expansão e imersão”, disse Rumsey.

Na década de 1980, quando ele começou a colecionar, “as pessoas achavam que os mapas antigos eram uma coisa desatualizada, só isso”. Na sua biblioteca particular, ele justapõe duas vistas das ruas de Roma do século 18: “É uma coisa que simplesmente aviva meu cérebro. Adoro ir de um para o outro, ficar indo e voltando”.

Viagem no tempo

Entre os pontos de entrada mais comuns para a cartofilia estão as representações de onde os colecionadores pisaram na vida real. Os nova-iorquinos dispostos a gastar, digamos, cerca de 280 mil dólares em um mapa da cidade de 1770, podem estudar como a Paróquia de Brookland perdeu todos os vestígios de suas raízes pastorais, mas manteve nomes de lugares da era colonial, como Red Hook e Flatbush.

“Tem tanta coisa que é reconhecível, mas também tanta coisa que é diferente, isso simplesmente cativa nossa imaginação”, disse Matthew Edney, professor de geografia especializado em história da cartografia na University of Southern Maine, afiliado à Osher Map Library, da universidade, e ao Centro Smith de Educação Cartográfica. Ele acrescentou que às vezes “o passado é um país estrangeiro”.

Mapa de Amsterdam no solado de um calçado. Foto: GumShoe/Divulgação

JC McElveen, advogado aposentado em Maryland que possui cerca de 1.400 mapas do século 16, disse que um de seus tesouros tem apenas alguns anos. Sua esposa, Mary, fez para ele um mapa personalizado a partir de mapas modernos, mostrando onde eles viveram e viajaram durante décadas.

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“Você olha para os mapas”, disse ele, “e as memórias vão voltando”.

Tania Rossetto, professora de geografia cultural na Universidade de Pádua, na Itália, mantém um mapa contemporâneo da Itália na parede do quarto dos filhos. Serve, disse ela, como “um ponto de encontro onde nossos dedos traçam memórias e sonhos de viagens familiares passadas e futuras”.

Dennis M. Gurtz, planejador financeiro em Maryland que possui cerca de mil mapas da década de 1590, alerta que as coleções muitas vezes começam enganosamente pequenas. Mas aí, depois de umas três compras, a “varíola do mapa antigo” ataca, e a maratona de aquisições começa. “Tenha muito cuidado”, disse ele.

A cartofilia grave se torna diagnosticável quando o espaço na parede acaba e os compradores começam a armazenar mapas. Esse momento é “um ponto de inflexão vital”, disse Michael Buehler, fundador do Boston Rare Maps.

O novo armário da Svenskt Tenn, revestido com o mapa de Estocolmo da década de 1870, presta homenagem ao desejo de viajar dos líderes da empresa. Ericson e seu marido, Sigfrid, viajaram pelo mundo em busca de inspiração em design e trouxeram muitas lembranças para casa – entre elas mapas antigos. Frank e sua esposa finlandesa, Anna, se estabeleceram na Suécia depois de escaparem da perseguição nazista em Viena e também passaram anos em Nova York.

Ahlden, o curador da Svenskt Tenn, disse que Ericson gostava de parafrasear uma citação de Santo Agostinho: “O mundo é um livro, e quem fica em casa lê apenas uma página”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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