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'Às vezes, um fenômeno editorial é também literário', diz pesquisadora da obra de Elena Ferrante

Fabiane Secches fala ao 'Estado' sobre seus estudos a respeito dos livros da misteriosa autora italiana

Por Júlia Corrêa
Atualização:

Quando, em 2019, Elena Ferrante lançou na Itália A Vida Mentirosa dos Adultos (que chega no Brasil em setembro pela Intrínseca e em junho pelo clube de assinantes da editora, o Intrínsecos), leitores de diferentes cidades do país fizeram vigílias para que pudessem garantir, o quanto antes, os seus exemplares. A agitação é justificada – trata-se da primeira obra dela desde a tetralogia napolitana, série de romances publicada entre 2011 e 2014, sobre a enigmática amizade das personagens Elena Greco e Rafaella Cerullo, conhecidas como Lila e Lenu. Fenômeno de vendas, os quatro volumes – A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida – renderam, inclusive, uma adaptação televisiva produzida pela HBO. 

Margherita Mazzucco é Elena na série 'My Brilliant Friend' Foto: HBO

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Outros títulos já constavam em sua trajetória literária, como Um Amor Incômodo (1992) e Dias de Abandono (2002), mas foi a tetralogia que consolidou a fama de Ferrante, cuja verdadeira identidade, no entanto, permanece desconhecida. A despeito disso, a autora tornou-se uma presença incontornável na cena literária mundial.

Essa conversão de ausência em presença marca não só a sua identidade, mas as próprias narrativas. É o que busca mostrar Fabiane Secches, pesquisadora que acaba de lançar um livro sobre a produção da italiana. Elena Ferrante – Uma Longa Experiência de Ausência é uma versão ampliada da dissertação que defendeu no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, sob orientação de Aurora Fornoni Bernardini.

Psicanalista, Fabiane utilizou conceitos da área, aliados a referências da mitologia clássica, para mostrar as virtudes literárias de Ferrante para além do sucesso editorial. A seguir, confira entrevista com a pesquisadora.

Você observa que a obra de Ferrante desmonta modelos românticos tradicionais. Ainda assim, seus livros viraram best-sellers. Diante dessa peculiaridade, como situar a obra dela? A obra de Ferrante está sempre em diálogo com a tradição literária, mas a partir de questões próprias do nosso tempo. Ela revisita obras e modelos anteriores, num movimento duplo, pois retorna a eles, mas os atualiza à sua própria maneira. Por isso, também, é tão difícil filiá-la aqui ou ali. Há ruptura, integração e recriação.

Seu livro é uma versão ampliada de sua pesquisa de mestrado, dedicada à tetralogia napolitana. Como é a recepção da obra de Ferrante no meio acadêmico? De maneira geral, podemos dizer que a academia tem certa resistência a best-sellers. Compreendo que o mercado editorial seja direcionado a leitores-consumidores e os livros, nesse caso, também são mercadoria. Já a pesquisa acadêmica e o debate crítico precisam ter autonomia, não podem ser comoditizados. Então, nesse sentido, essa resistência parece legítima. Mas é preciso ter cuidado para que a cautela não se torne um preconceito indiscriminado, porque às vezes, ainda que raramente, acontece de haver um fenômeno editorial que também seja um fenômeno literário. Goethe, Shakespeare, Jane Austen, Clarice Lispector e Toni Morrison são exemplos. Ferrante, a meu ver, também é. Fico muito contente por ter sido acolhida pela minha orientadora e pela USP para realizar a pesquisa. Tive muito apoio dos professores, dos colegas e também da universidade, inclusive apoio financeiro. Então é justo dizer que, apesar das ressalvas, eu tive mais oportunidades do que dificuldades.

A psicanálise é uma das chaves interpretativas de seu livro. Você revela, entre outros exemplos, a leitura que Ferrante fez de um texto de Freud sobre a sexualidade feminina. Você poderia resumir o quanto ela própria mostra ter bebido dessa fonte? Nos textos de Frantumaglia (antologia de entrevistas, cartas, ensaios e artigos de Ferrante), a autora recorre muitas vezes à psicanálise. Menciona o texto Totem e Tabu, por exemplo, para argumentar sobre o que chama de “desejo neurótico de intangibilidade”. Diz que leu Freud desde muito cedo e é entusiasta de seus escritos – o título de seu primeiro romance, Um Amor Incômodo (em italiano, L'Amore Molesto), veio do texto a que você se refere. Ferrante também diz ter lido apaixonadamente a psicanalista inglesa Melanie Klein, cita o psicanalista francês Jacques Lacan e a pensadora belga Luce Irigaray, que tem trabalhos que transitam entre a psicanálise, a filosofia e a linguística. Quanto mais releio as obras de Ferrante, mais encontro elos possíveis e interessantes com a psicanálise.

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Como você explica a identificação dos leitores com as narradoras de Ferrante, uma vez que, desde os primeiros romances, são mulheres muito francas quanto a suas vulnerabilidades, inclusive quanto à instabilidade de “bons sentimentos” sobre a amizade e a maternidade? Acho que os livros de Ferrante oferecem muitas oportunidades de identificação, mas também de estranhamento. Estranhamos as personagens como elas mesmas se estranham, estranhamos alguns acontecimentos, estranhamos a nós mesmos e a nossa própria experiência de leitura. A complexidade com que ela vai tecendo suas histórias nos confronta com nossos próprios limites, enquanto vai desmontando arranjos esquemáticos. Um pouco como Elena Greco diz ao final da tetralogia, as histórias de Ferrante caminham mais para a obscuridade do que para o esclarecimento – e talvez a forma como ela constrói esse contraste seja uma de suas maiores qualidades.

Já o título do primeiro livro da tetralogia, 'A Amiga Genial', pode gerar dúvidas sobre a qual das amigas o adjetivo faz referência. Além do mais, você ressalta uma “ausência” da própria narradora, que parece não ser protagonista “sequer de sua própria história”. De que forma essa complexidade da relação entre as duas impacta a construção narrativa? A complexidade dessa relação estrutura toda a obra, desde a epígrafe (retirada do Fausto de Goethe) até o epílogo. A dinâmica entre as protagonistas, estabelecida ainda na infância, orienta toda a narrativa. A força de atração e a força de repulsão que uma exerce sobre a outra atuam como uma espécie de dueto que compõe a tessitura do texto de Elena Greco. É como se fossem duas vozes em uma: a da própria Elena e a de uma Lila introjetada, da qual a narradora se apropriou e recriou à sua maneira. 

Gostaria que você falasse sobre como tanto a complexidade das relações afetivas quanto a brutalidade do meio social em que os personagens vivem são bem amarradas por Ferrante.  Enquanto constrói essa relação ambivalente entre as protagonistas da tetralogia napolitana, Ferrante também constrói uma relação igualmente complexa entre as personagens e o entorno social, cultural, econômico. Para isso, vai fundo no contexto geopolítico de Nápoles, que, em alguma medida, escolhe como um microcosmos que reflete algo da história do Ocidente – e, de forma mais específica, também da história da literatura. O mundo antigo e o mundo contemporâneo por vezes se sobrepõem, embora nunca coincidam, e essa fusão-distinção entre passado e presente pode ser muito vertiginosa de acompanhar. Lila se vê como uma personagem trágica, marcada por um destino do qual não consegue escapar (e talvez queira fazer de Elena sua própria heroína trágica, ainda que em outros termos). Já Elena Greco se vê como uma personagem contemporânea por vezes anacrônica, dividida entre dois mundos. Ela negocia alguma autonomia em relação ao destino pré-estabelecido, e se vale do poder da narrativa também para isso.

Retomando o tema da ausência, você identifica um conflito entre o desejo de anonimato de Ferrante e a produção de um memorialismo, sobretudo em 'Frantumaglia'. Como compreender essa espécie de paradoxo? É mesmo um paradoxo, ao menos em termos lógicos, seguindo a ideia que Aristóteles propôs como princípio da não-contradição. Mas, para a psicanálise, pulsão de morte e pulsão de vida, embora sejam tidas como forças antagônicas, trabalham em conjunto, operam num mesmo sistema. Ferrante busca uma posição intangível, etérea, como autora, uma espécie de inexistência corporal. Mas, enquanto isso, escreve e publica uma obra volumosa, muito concreta, que encanta leitores de todo o mundo justamente por essa concretude, por essa tangibilidade. A palavra escrita dá corpo a uma autora que está ausente, ainda que esteja ausente apenas no aspecto mais banal, mais comezinho. Se Ferrante busca um certo apagamento, sua obra, ao contrário, reivindica e ganha mais e mais espaço, não apenas na literatura, mas na cultura contemporânea de forma mais ampla. Basta pensarmos nas adaptações para o cinema, para o teatro, para a televisão, por exemplo.

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Como você constata no capítulo dedicado ao mais novo livro de Ferrante, 'A Vida Mentirosa dos Adultos', parte da crítica apontou uma exaustão de fórmulas na narrativa da autora. Qual é a sua opinião sobre isso? Concordo que há repetição de temas e procedimentos. Discordo do argumento de que essa repetição seja necessariamente um problema. O projeto literário de Ferrante é muito delimitado, muito coeso e, também por isso, muito autoral. Quando ela retorna a algo, não é mera repetição, nem esgarçamento de uma fórmula. É como se, em cada volta, os mesmos afetos buscassem possibilidades estéticas para que sejam rearranjados e reelaborados em outros enredos. Fazendo um paralelo um pouco torto, é o mecanismo que Freud descreve em A Interpretação dos Sonhos, pois há deslocamento, condensação, figurabilidade. Ainda que cada um de nossos sonhos diga sempre algo de quem sonha, o trabalho de cada sonho é diferente, e não deixamos nunca de sonhar, porque há sempre uma nova história que precisamos contar sobre nós mesmos e para nós mesmos.

ELENA FERRANTE: UMA LONGA EXPERIÊNCIA DE AUSÊNCIA Autora: Fabiane Secches Editora: Clarabóia 200 páginas R$ 49

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