Análise: Quem duvidava de Kristen Stewart terá de morder a língua; veja como foi a Berlinale

Num Festival de Berlim com tantas surpresas, a maior talvez tenha a presidente do júri, que enfrentava desconfianças antes da cerimônia

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Havia, desde o começo, muita curiosidade e até desconfiança pelo que o júri presidido por Kristen Stewart poderia premiar na Berlinale de 2023. Kristen é uma popstar. Nomes importantes do cinema mundial passaram pelo tapete vermelho que leva ao Palast, o palácio do Festival de Berlim.

Kristen Stewart no Festival de Berlim em 2023 Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

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Bastava Kristen descer do carro para a multidão ir ao delírio. Há muito ela deixou de ser a protagonista da série Crepúsculo, mas não renega seu passado. Já faz algum tempo que se exercita no cinema autoral – Olivier Assayas, Mia Hansen-Love, Pablo Larraín.

Kristen fez um discurso apaixonado no palco. “Às vezes alguns filmes vêm nos dizer coisas necessárias sobre o estado do mundo que vivemos. Não são filmes fáceis. Nos obrigam a compartilhar sentimentos, a ter empatia pelo outro.” Por conta disso, Kristen anunciou que o Urso de Ouro da Berlinale de 2023 ia para Sur L’Adamant.

Chamado ao palco, o diretor Nicolas Philibert não conseguia ocultar a surpresa. “Mas vocês estão loucos?”, dirigia-se ao júri. Justamente a loucura. L’Adamant é o nome do barco, ancorado no Sena, em Paris, que abriga um centro de acolhimento a pessoas com distúrbios mentais. O filme é sobre eles, e as pessoas – psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros - que os assistem. No final, o diretor deixa o espectador com uma pergunta. Nesse mundo de ódio, até quando existirão pessoas assim, com seu olhar compassivo para a exclusão social e o sofrimento humano?

Nicolas Philibert é o diretor, entre outros filmes, de Ser e Ter, sobre uma escola comunal no interior da França – na região rural -, onde estudam, na mesma sala, crianças do primeiro grau e adolescentes de estágios mais avançados. Como se trabalha com a diversidade? O tema de alguma forma volta em Sur L’Adamant.

Só para se ter uma ideia – um dos pacientes fala do isolamento, da rejeição familiar. “Sou o maior fracasso na vida de meu pai.’’ Diz isso sem choro, sem agressão. Nessa confissão vai alguma coisa – um pedido de socorro? O mais interessante é que um dos documentaristas mais prestigiados da atualidade – Mark Cousins – integrava o júri especial que premiou o melhor doc dessa Berlinale. O júri ignorou Philibert. Preferiu premiar um bom filme da mexicana Tatiana Huezo, El Eco, sobre tradições numa comunidade fronteiriça.

É possível que a experiência de Kristen com autores franceses – Assayas, Mia -, mais a presença da atriz franco-iraniana Golshifteh Farahani no júri, tenham influenciado as escolhas. Houve mais um francês premiado, e Philippe Garrel ficou tão ou até mais surpreso do que Nicolas Philibert. O júri justificou seu prêmio para Le Grand Chariot citando a juventude do cineasta de 74 anos. Eterno nouvelle vague, Garrel lembrou que Jean-Luc Godard, em 1964, ganhou o Urso de Ouro por Alphaville. Dedicou seu prêmio ao autor visceral que morreu no ano passado.

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O prêmio especial do júri foi para o português João Canijo, de Mal Viver, que, sob múltiplos aspectos, talvez tenha sido o filme mais ousado, esteticamente, da competição. Mulheres num hotel, entre administradoras e hóspedes, vivem conflitos viscerais sugeridos por peças de Strindberg – Senhorita Julie, O Pelicano. Outro prêmio do júri – o grande prêmio – foi para o alemão Christian Petzold, de Roter Himmel/Afire. Um escritor e um amigo isolam-se numa casa na floresta. Criam-se conflitos de gêneros – hétero, homo. A floresta está em chamas. Petzold faz sua homenagem a Roberto Rossellini, Viagem na Itália. Um casal é carbonizado. O que isso significa? Prepare-se. É um filme muito forte.

Talvez por não ter premiado a atriz trans de Uma Mulher Fantástica - Daniela Veja -, a Berlinale criou no ano passado um prêmio para transexuais. Venceu Thea Ehre, que faz a Femme fatale de Till the End of the Night, o noir de Christoph Hochhäusler sobre policial que se infiltra no mundo do crime. Thea lhe permite aproximar-se do chefão das drogas. Tudo o que ela faz é para deixar a cadeia. O policial apaixona-se. Seu destino está selado.

Stewart, a presidente, ajudou a entregar o prêmio de interpretação. Falou do que significa representar, em especial quando se é criança. Kristen sabia do que falava. O prêmio foi para Sofia Otero, do longa espanhol 20.000 Espécies de Abelhas, de Estibaliz Urresola Solaguren. O menino que quer ser menina.

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Toda a família – os pais, os irmãos – choravam copiosamente enquanto uma atarantada Sofía buscava palavras de agradecimento. O prêmio à melhor contribuição artística foi para a fotógrafa Hélène Louvart, de Disco Boy. Ela fotografa a floresta de um jeito que lembra o Apichatpong Weerasethakul de Mal dos Trópicos. Mistério e sexualidade.

Foram dias intensos aqui em Berlim. O festival começou com o presidente da Ucrânia agradecendo, no telão, o apoio na guerra contra a Rússia. Houve manifestações diárias contra a repressão no Irã, em defesa das mulheres. Berlim, mais uma vez, confirmou-se como o mais político dos festivais internacionais. Numa premiação com tantas surpresas – tantos premiados surpresos -, a maior talvez tenha a presidente do júri. Quem duvidava de Kristen Stewart terá de morder a língua.

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