Autobiografia de Woody Allen é engraçada, mas tem tom insensível

'Apropos of Nothing' é incrível, porém inacreditavelmente insensível quando o tema são mulheres

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Por Dwight Garner
Atualização:

Durante a crise dos mísseis cubanos, o escritor Christopher Isherwood ficou surpreso ao se ver indo para a academia. "Se vamos ser mortos", escreveu ele em seu diário, "parece engraçado estar malhando" . Durante a crise da covid-19, fico surpreso ao me ver resenhando Apropos of Nothing (A propósito do nada, em tradução livre), a autobiografia de Woody Allen. Não é o livro que eu gostaria de ver publicado.

Woody Allen, Rachel McAdams e Lea Seydouxem Cannes Foto: Yves Herman/Reuters

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Oferecer-me para fazê-lo, em nosso clima moral, é semelhante a se voluntariar para participar da equipe que recolhe os dardos lançados durante os Jogos Olímpicos de 2021. Contei a minha esposa e filha meu plano e elas me encararam como se eu tivesse anunciado minha intenção de encontrar o bufê de saladas mais próximo e lamber a tela de vidro que protege a comida.

Isso não será um veredicto sobre a moralidade de Allen. Já houve muitos textos sobre esse veredicto. Mas, como pensamos de modo semelhante, vou lhe dizer no que acreditava antes de o meu editor me enviar um PDF com o título Apropos of Nothing.

Acredito que o relacionamento sexual de Allen com Soon-Yi Previn, filha adotiva de sua companheira de longa data Mia Farrow, que começou quando Soon-Yi tinha 21 anos, foi obviamente o ato perverso de um homem cujas funções cerebrais estão perigosamente desequilibradas. Ele já foi praticamente expulso da cultura americana por "pular a cerca". Há evidências constrangedoras de sua busca sexual por outras adolescentes. Se esses atos fizerem com que você queira eliminar os filmes dele permanentemente da sua lista da Netflix, faça-o. 

A acusação de que, em 1992, ele molestou sua filha adotiva, Dylan Farrow, de 7 anos, tem outra magnitude. Acredito que, quanto menos você leu sobre esse caso, mais fácil é julgá-lo. 

Acredito que a Hachette, a editora que adquiriu os direitos e depois cancelou a publicação de Apropos of Nothing, se comportou de maneira covarde. Gostaria que Nat Hentoff, o absolutista da liberdade de expressão cujas colunas do jornal independente The Village Voice me fizessem querer entrar no jornalismo, ainda estivesse vivo para escrever um ensaio de 25 mil palavras sobre a publicação em larga escala em 2020, algo que seria publicado sob o título sarcástico de "Perfis em coragem."

Então, pare agora ou continue a ler, pois há um livro para se falar sobre.

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Aqui está a primeira frase de Allen: "Como Holden, não me interessa lançar mão de embromações no estilo de David Copperfield, embora, no meu caso, saber um pouco mais sobre meus pais, talvez possa parecer mais interessante do que ler sobre mim".

Qualquer pessoa que tenha lido os livros anteriores de Allen - Sem plumas, Que loucura!, Cuca fundida - sabe que há uma voz autêntica e descontraída em cada página. Isso também é verdade em Apropos of Nothing, pelo menos por um tempo. Posteriormente, este livro começa a emitir um som de clique como o que escutamos quando uma bateria de carro precisa ser trocada.

Allen nos conduz desde a infância no Brooklyn (o pai era um agenciador de apostas, além de realizar uma variedade de trabalhos braçais e a mãe trabalhava em uma loja de flores) até suas primeiras tentativas de enviar piadas para colunistas de jornais. Ele era rápido, engraçado e difícil de se superar. Então foi contratado como jovem escritor de comédia para programas de televisão, incluindo alguns de Sid Caesar, antes dele se tornar um comediante de stand up e começar a dirigir filmes. Ele teve dois primeiros casamentos, com Harlene Rosen e Louise Lasser. 

Tive duas surpresas enquanto lia este material inicial. A maioria dos autores de autobiografias exagera sobre o sentimento de se sentir um peixe fora d'água quando jovem. Contrariamente ao esperado, Allen escreve que, embora você possa presumir que ele era um garoto tímido no Ensino Médio, ele era, na verdade, muito popular e adepto de muitos esportes, principalmente beisebol.

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A segunda surpresa é o quanto ele derruba a ideia de que é algum tipo de intelectual. Ele apresenta listas dos autores que não leu e dos filmes que não viu.

"Não tenho ideias, pensamentos elevados, não entendo a maioria dos poemas que não começam com: 'Rosas são vermelhas, violetas são azuis'", escreve ele. “O que tenho, no entanto, é um par de óculos de armação preta, e acredito que sejam eles , combinados com um talento para se apropriar de trechos de fontes eruditas muito profundas para eu entender, mas que podem ser utilizadas no meu trabalho, que dão essa impressão equivocada de que sei mais do que realmente sei que mantêm essa ideia.

Como muitos de nossos pais e avós, Allen é um homem do século 20 em um mundo do século 21. Seus amigos deveriam tê-lo avisado de que Apropos of Nothing é incrível e inacreditavelmente insensível quando o tema são mulheres.

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Essa insensibilidade pode ser notada antes que o livro comece de fato. Na página com a dedicatória, ele escreve: “Para Soon-Yi, a melhor. Eu a tive comendo na minha mão e então notei que meu braço estava faltando". Tive que esfregar os olhos com os dedos recém higienizados e ler a segunda frase novamente.

Quase todas as vezes que uma mulher é mencionada, há um pronunciamento gratuito sobre sua aparência. No início, ele persegue “deliciosas pequenas kumquats boêmias” na cidade de Nova York. Enquanto estava em Londres filmando Cassino Royale (1967), uma paródia aos filmes de James Bond, ele escreve, “pode-se passear na Kings Road e capturar os pássaros mais adoráveis de suas minissaias”. Pássaros? Fiquei esperando ele navegar para a Austrália para pegar uma cesta de “Sheilas”. 

A respiração pesada fica mais intensa à medida que o livro avança. Pequenos pedaços de manteiga são usados. Christina Ricci "era bastante desejável". Léa Seydoux "era uma nota 10". Rachel McAdams "parecia um milhão de dólares de qualquer ângulo". O tom lembra o atual presidente (dos Estados Unidos).

“Quando você a conhece, você precisa lutar contra os feromônios”, ele escreve sobre Scarlett Johansson, de 19 anos, quando trabalhou com ela. "Não só ela era talentosa e bonita, mas, também, sexualmente era radioativa". Ele consegue colocar Penélope Cruz em um filme com Scarlett, que "fez com que o peso erótico de cada mulher fosse elevado ao cubo".

Foi a aparência de Mia Farrow, sua "carinha de sonsa", que o cegou ao fato de que ela era, em sua opinião, mentalmente instável, escreve ele. O material sobre Mia, Soon-Yi e Dylan ocupa cerca de um terço desse livro de memórias e o drena inteiramente de oxigênio.

Allen escreve sobre disfunção na própria família de Farrow. Um de seus irmãos foi um suicida e outro foi preso por abuso sexual de crianças. Ele sugere que ela percebeu a disfunção em seus próprios filhos, adotados ou não. 

"Mia gostava de adotar, adorava a emoção, como se comprasse um brinquedo novo", ele escreve. "Ela gostou da reputação de santa, da publicidade que fazia com que fosse admirada, mas ela não gostava de criar os filhos e realmente não cuidava deles." Ele faz referência a alguns maus comportamentos e negligência parental por parte de Mia.

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Mia descobriu que Allen estava dormindo com Soon-Yi depois de encontrar polaroides eróticas de sua filha adotiva no apartamento de Allen. "É claro que eu entendo o choque dela, sua consternação, raiva e tudo mais", ele escreve. "Foi a reação correta." Allen afirma que, em sua fúria, Mia decidiu acusá-lo de molestação.

Ele fala de duas investigações que não levaram a acusações criminais. Ele diz que passou no teste do polígrafo, enquanto Mia se recusou a fazer um. Sobre a ideia de que deveríamos simplesmente acreditar em todas as mulheres, ele escreve: "Diga isso aos Scottsboro Boys".

Ele aborda a ideia de que Mia pode ter dormido com um juiz e um promotor para tentar influenciar suas opiniões durante uma batalha de custódia. (“Acho isso difícil de acreditar, mas sou ingênuo em tais assuntos”, ele escreve em tom de falsa modéstia.)

Juntos, Allen e Mia tiveram um filho biológico, Satchel, que agora se identifica como Ronan. "Apesar de ela dizer que Satchel era filho de Frank Sinatra, acho que ele é meu", escreve Allen, "embora eu nunca vá saber de verdade".

Allen sugere que Ronan foi educado por Mia para desprezá-lo. Ele alega que Mia fez Ronan passar por uma cirurgia estética para aumentar alguns centímetros sua altura, o que exigiu a quebra e a refração de suas pernas. Ele chama isso de "barbárie".

Ronan Farrow, é claro, cresceu e se tornou jornalista, um determinado ativista de direitos humanos contra o mal que os homens poderosos fazem. Allen escreve que ainda gostaria de ter um relacionamento com Ronan, mas cita exemplos do que considera hipocrisia de seu filho. Sobre um exemplo, ele escreve: "Ronan Farrow sempre estimulou publicamente as mulheres a se manifestarem, mas quando Soon-Yi contou sua história, ele não gostou do que ouviu".

Há muito mais neste livro, mas não haveria espaço para falar de tudo aqui: o relacionamento de Allen com Diane Keaton, detalhes sobre a realização de muitos de seus filmes, passeios com sua banda de jazz, como foi conhecer Mel Brooks e Pauline Kael e Norman Mailer e comer muitas refeições no Elaine's. Ele se lembra de agradecer a muitas, muitas pessoas que foram generosas com ele ao longo dos anos.

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O último terço deste livro faz com que ele caia por terra terrivelmente. É uma rolagem de créditos, uma entrega de sacolas de presentes. Alan Alda é "um ator maravilhosamente talentoso". Owen Wilson é "maravilhoso e um prazer de dirigir". Goldie Hawn é "um grande, grande talento". Multiplique essas banalidades por cem. 

Ele está casado com Soon-Yi agora há mais de 20 anos. Eles têm duas filhas adotivas que agora têm idade universitária. O lado positivo de ser um pária, ele escreve, é que ele não precisa mais fazer publicidade para seus livros ou participar de painéis sobre eles.

Ele pode viver com todas as críticas que fazem sobre ele, afirma, porque não lê nenhum desses artigos. Ele vive em uma bolha. E está preparando um novo filme.

Perto do final do livro, às vezes atraente, às vezes engraçado, triste e um tanto obsceno, ele escreve: "Tenho 84 anos; minha vida está quase no fim. Na minha idade, estou vivendo com o presente. Não acreditando no futuro, eu realmente não vejo nenhuma diferença prática se as pessoas se lembrarem de mim como diretor de cinema ou pedófilo ou de nenhuma maneira. Tudo o que peço é que minhas cinzas sejam espalhadas perto de uma farmácia."

— Informações sobre o livro:

Título: Apropos of Nothing

Autor: Woody Allen

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392 páginas

Editora:Arcade Publishing

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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