Há um momento que parece totalmente ilógico em Terra de Ninguém/Badlands, de 1975. Kit e Holly estão na estrada, fugindo da polícia, e de repente ele pára o carro e a convida para dançar. Convida, não. Toma-a pela mão, puxa do carro, e dança. Kit, interpretado por Martin Sheen, é assim o tempo todo – imprevisível. Mata o pai de Holly/Sissy Spacek, incendeia a casa com todos os seus pertences e foge com ela. Fogem para a mata e, ao serem abordados por policiais, Kit os mata. Tornam-se alvos de uma caçada humana e, em mais de um momento, Holly poderia se desgrudar dele. Oportunidades não faltam, o que falta é vontade. Ela o segue meio por inércia, mas é mais que isso.
A dança no meio da estrada é coisa de cinema. Pessoas ditas normais não fazem isso, mas num filme é perfeitamente natural, porque o filme, por mais real que pareça, não é a realidade. Pode ser uma ferramenta para se entender o mundo, mas também abre uma janela para a fantasia, e a fantasia é o que as pessoas 'normais', presas no seu cotidiano, não se permitem. Terra de Ninguém é contemporâneo de Tubarão, de Steven Spielberg. Surgiram no mesmo ano. Não poderiam ser mais diferentes – em termos. Há 45 anos, Spielberg seguiu a trajetória que todo mundo sabe. Grandes sucessos que lhe valeram a reputação de Midas de Hollywood. Filmes muitas vezes construídos sobre montanhas de efeitos e que lhe valeram outro apelido. Seria o Peter Pan do cinema industrial, o adulto que se recusa a amadurecer e permanece eternamente criança.
Tudo isso é fábula, é marketing. No começo dos anos 2000, depois de recxeber duas vezes o Oscar de direção, por A Lista de Schindler, de 1993, e O Resgate do Soldado Ryan, de 98, Spielberg fez a que talvez seja a mais densa e profunda reflexão sobre o 11 de Setembro, por meio de três filmes que compõem uma trilogia informal – O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique. Poucos perceberam que esse filmes, com toda a sua diversidade, formavam um bloco de notável coerência. Poucos, e menos ainda os críticos.
Malick também iniciava uma trajetória autoral que lhe valeria, nos anos e décadas seguintes, uma reputação um tanto bizarra. E, em primeiro lugar, uma observação. Segundo diferentes fontes, Terra de Ninguém é de 1973, 1974. Estreou no Brasil em outubro de 1975, semanas antes de Tubarão, quando o Spielberg já era o filme do momento em Hollywood. Malick viria a tornar-se o J.D. Salinger do cinema, menos por afinidades estilísticas e temáticas, embora elas até existam, mas porque, como o autor de O Apanhador no Campo de Centeio, tornou-se recluso. Entrou para o clube das celebridades sem fazer o jogo, ou fazendo pelo avesso. Isolou-se, vive à margem – nas franjas, como um outsider -, mas dispõe de todas as ferramentas, de todo o luxo que o cinemão pode lhe fornecer.
Quando se iniciou, ninguém ainda sabia que isso iria ocorrer. O que se sabia é que ele havia sido jornalista e seguiu o Che na Bolívia para uma reportagem nunca publicada. Também estivera próximo de Régis Debray, estudara filodsofia (e até traduzira um trabalho de Martin Heidegger para o inglês). O suprassumo do chique é estudar Malick à luz de Heidegger, como se faz na academia. Ser e Tempo, de 1927, mesmo inacabado, é um livro fundamental na história do pensamento no século 20. Conceitos expressos por Heidegger influenciaram Malick e, apesar de toda a polêmica sobre a simpatia do filósofo pelo nazismo, esculpiram para ele uma reputação de esquerda e logo o filme veio a confirmar que era um crítico da 'América'. De seus mitos, com toda certeza. Terra de Ninguém passa-se na América interiorana, as badlands. Comunidades que parecem calmas, pacíficas, mas nas quais instala-se um profundo mal-estar. Tem genge que se comoda nessa vida. Tem gente que não.
Kit é um desses, mas a originalidade de Malick, na época, é que ele não fica buscando a origem desse mal-estar. Não psicanalisa Kit, nem Holly. As pessoas são para o que nascem. Ele mata, foge, toma-a pela mão, ela o segue. E o por quê de ele a haver arrastado está numa frase breve – para ter alguém que gritasse seu nome, no fim. Porque a verdade nua e crua é que Kit sabe que trilha um caminho sem volta. Há algo de James Dean nessa rebeldia sem causa – aparente, eelo mrenmos. Chamava-se justamente assim, Rebel Without a Cause, o longa de Nicholas Ray, de 1955, lançado no Brasil como Juventude Transviada, que está na origem da lenda de James Dean. Mas foi em outro filme – Assim Caminha a Humanidade/Giant, de George Stevens, do ano seguinte - que Malick foi buscar a imagem, emblemática. Kit coloca o rifle sobre os ombros, apoia com as mãos as extremidades, uma figura icônica, exatamente como a de James Dean.
Mais tarde, em outro filme, Cinzas do Paraíso/Days of Heaven, de 1978, Malick reproduziu outra imagem emblemática do cinma de Hollywood – a casa na fazenda de Sam Shepard, onde iam trabalhar Richard Gere e Brooke Adams, acompanhados pela menina, é a reprodução exata de Reata, a mansão dos Benedict, perdida na imensidão do Texas, em Giant. Não há cinéfilo que não reconheça essas referências, e elas podem até querer dizer alguma coisa, mas não é preciso conhecer o Ray, nem o Stevens, para seguir a história de Kit e Holly. Talvez ajudem a entender as intenções, ou o método. Desde o final dos anos 1950, produzira-se uma revolução cinematográfica na Europa. A nouvelle-vague, feito um tsunami com origem na França, produziu ondas em vários países europeus, atravessou o Atlântico e bateu nos EUA, no Brasil. Seguiu pelo Pacífico até o Japão.
Todo mundo teve a sua nova onda. Nos EUA, ela deu ímpeto à produção independente, nutriu Arthur Penn, repercutiu em Hollywood. Filmes como Um Caminho para Dois, de Stanley Donen, de 1967, e O Homem Que Odiava as Mulheres/The Boston Strangler, de Richard Fleischer, no ano seguinte, incorporaram inovações de tempo e espaço e fragmentações narrativas dos grandes autores da nouvelle-vague. Arthur Penn reinventou, com um toque sofisticado europeu – David W.Griffith em O Milagre de Anne Sullivan, de 1962 - os autores fundadores de Hollywood, e o mesmo fez Malick. Bonnie & Clyde/Uma Rajada de Balas, de 1967, é sobre o casal de gângsteres durante a depressão econômica dos anos 1930 e a sua transformação em ídolos do público que passava fome por conta do desemprego. Ocorre algo semelhante com Kit e Holly, que também passam a ser cantados em prosa e verso, e a narração por ela talvez seja a forma de Malick retomar o poema de Bonnie/Faye Dunaway no final do Penn. Assim como bebeu na fonte de Ray, de Stevens, de Salinger, ele também mostrou que estava atento às novas tendências européias. A gratuidade de matar de Kit remete a Michel Poiccard em Acossado/À Bout de Souffle, o Jean-Luc Godard que seria refilmado por Jim McBride, virando A Força do Amor, de 1982, com Richard Gere. McBride refez Godard pelo filtro do filme noir, assimilando o 'gun crazy' de Joseph H. Lewis. É muita coincidência, para não dizer mais, que Kit e Holly se lancem na estrada como Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, Pierrot le Fou e Marianne, em O Demônio das Onze Horas, de 1965.
Malick tornou-se diretor bissexto. Foram 20 anos entre Cinzas do Paraíso e Além da Linha Vermelha, mais sete até O Novo Mundo, outros seis para A Árvore da Vida. Cinco filmes em 36 anos, mais quatro (Amor Pleno, O Cavleiro de Copas, De Canção em Canção e Uma Vida Oculta) em apenas oito anos. Um Malick prolífico? À luz da produção anterior, sem dúvida. Malick virou uma grife – astros e estrelas, relatos em off, interiorização extrema, integração na natureza, fragmentos de bravura cinematográfica (movimentos de câmera, música, edição). Em A Árvore da Vida, o narrador murmura 'Mãe', 'Pai', a câmera rodopia, a música sobe. Lindo! Mas quando isso é repetifdo pela décima vez, em todos os filmes, a estética banaliza-se.
Nem por isso os filmes deixam de ser importantes. Uma Vida Oculta, de 2019, aborda, de forma diferenciada, o mesmo tema de Mel Gibson em Até o Último Homem, com Andrew Garfield, de 2017. A objeção de consciência à guerra, agora pelo ângulo alemão. Em pleno nazismo, a história real do austríaco Franz Jagerstatter/August Diehl, que se recusa a pegar em armas. Torna-se um pária na própria comunidade que adere alegremente ao nacional-socialismo. Arrasta a família, termina morto, mas não transige com a sua consaciência. Mais de 40 anos depois de Kit, assassino por natureza, outro personagem de Malick irá na contramão, mas faz o que tem de fazer, o que nasceu para fazer, com a mesma firmeza (ou será obstinação?).
Poucos cineastas foram tão fundo na sua análise dos mitos da América. É claro que essa história poderia ser contada de outra forma, talvez mais brutal. Mas o fato de Malick parecer mais terno não deve enganar ninguém. Sob uma capa civilizatória, ele não é menos selvagem.Conta sua história num estilo moderno, por meio de cenas que parecem desconectadas, mas que se relacionam no tempo e no espaço e nesse desejo que está na essência do filme, de misturar realidade e fantasia. Por isso Terra de Ninguém tem essas cenas de cinema. Kit e Holly dançando na estrada. Vivem numa depravação inocente, em busca do Eldorado que não conseguirão atingir. Uma frase dele lança a chave - “É preciso levar em conta a opinião da minoria, mas é bom fazer tudo de acordo com a maioria.”
Não deixa de haver certa dose de fascismo na ideia. A maioria é a silenciosa da América. Puritana e reprimida. Kit e Holly destoam desse padrão, agem de forma descontrolada, mas Malick não tem dúvida de onde está a doença social. É na organização social, na submissão ao gosto comum. As águas parecem calmas, mas há um redemoinho sob a superfície. Certos filmes, e esse é um deles, tornam-se indicadores sociais. Os EUA estavam atolados no Vietnã, logo iria estourar o escândalo de Watergate, que coloou em risco as instituições norte-americanas. Não é que Malick soubesse disso, ou tenha antecipado de forma consciente, mas, sim, o mal-estar atravessa Terra de Ninguém. Martin Sheen tornou-se um ator importante. A Execução do Soldado Slovik, Apocalypse Now. Sissy Spacek logo faria Carrie, a Estranha, Três Mulheres, Missing – O Desaparecido, Um Grande Mistério. Ganharia o Oscar de 1980, por O Destino Mudou Sua Vida. E tudo, para eles, para o autor, começou nessas 'terras ruins', no 'terreno baldio'. Badlands é um clássico.
Onde assistir:
- À venda em DVD