Clássico do Dia: Conceitos de Heidegger influenciaram 'Terra de Ninguém', de Terrence Malick

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que estreou na mesma semana de 'Tubarão', de Spielberg

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Há um momento que parece totalmente ilógico em Terra de Ninguém/Badlands, de 1975. Kit e Holly estão na estrada, fugindo da polícia, e de repente ele pára o carro e a convida para dançar. Convida, não. Toma-a pela mão, puxa do carro, e dança. Kit, interpretado por Martin Sheen, é assim o tempo todo – imprevisível. Mata o pai de Holly/Sissy Spacek, incendeia a casa com todos os seus pertences e foge com ela. Fogem para a mata e, ao serem abordados por policiais, Kit os mata. Tornam-se alvos de uma caçada humana e, em mais de um momento, Holly poderia se desgrudar dele. Oportunidades não faltam, o que falta é vontade. Ela o segue meio por inércia, mas é mais que isso.

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A dança no meio da estrada é coisa de cinema. Pessoas ditas normais não fazem isso, mas num filme é perfeitamente natural, porque o filme, por mais real que pareça, não é a realidade. Pode ser uma ferramenta para se entender o mundo, mas também abre uma janela para a fantasia, e a fantasia é o que as pessoas 'normais', presas no seu cotidiano, não se permitem. Terra de Ninguém é contemporâneo de Tubarão, de Steven Spielberg. Surgiram no mesmo ano. Não poderiam ser mais diferentes – em termos. Há 45 anos, Spielberg seguiu a trajetória que todo mundo sabe. Grandes sucessos que lhe valeram a reputação de Midas de Hollywood. Filmes muitas vezes construídos sobre montanhas de efeitos e que lhe valeram outro apelido. Seria o Peter Pan do cinema industrial, o adulto que se recusa a amadurecer e permanece eternamente criança.

Tudo isso é fábula, é marketing. No começo dos anos 2000, depois de recxeber duas vezes o Oscar de direção, por A Lista de Schindler, de 1993, e O Resgate do Soldado Ryan, de 98, Spielberg fez a que talvez seja a mais densa e profunda reflexão sobre o 11 de Setembro, por meio de três filmes que compõem uma trilogia informal – O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique. Poucos perceberam que esse filmes, com toda a sua diversidade, formavam um bloco de notável coerência. Poucos, e menos ainda os críticos.

Malick também iniciava uma trajetória autoral que lhe valeria, nos anos e décadas seguintes, uma reputação um tanto bizarra. E, em primeiro lugar, uma observação. Segundo diferentes fontes, Terra de Ninguém é de 1973, 1974. Estreou no Brasil em outubro de 1975, semanas antes de Tubarão, quando o Spielberg já era o filme do momento em Hollywood. Malick viria a tornar-se o J.D. Salinger do cinema, menos por afinidades estilísticas e temáticas, embora elas até existam, mas porque, como o autor de O Apanhador no Campo de Centeio, tornou-se recluso. Entrou para o clube das celebridades sem fazer o jogo, ou fazendo pelo avesso. Isolou-se, vive à margem – nas franjas, como um outsider -, mas dispõe de todas as ferramentas, de todo o luxo que o cinemão pode lhe fornecer.

Filme estreou na mesma semana de 'Tubarão', de Spielberg Foto: WARNER BROS.

Quando se iniciou, ninguém ainda sabia que isso iria ocorrer. O que se sabia é que ele havia sido jornalista e seguiu o Che na Bolívia para uma reportagem nunca publicada. Também estivera próximo de Régis Debray, estudara filodsofia (e até traduzira um trabalho de Martin Heidegger para o inglês). O suprassumo do chique é estudar Malick à luz de Heidegger, como se faz na academia. Ser e Tempo, de 1927, mesmo inacabado, é um livro fundamental na história do pensamento no século 20. Conceitos expressos por Heidegger influenciaram Malick e, apesar de toda a polêmica sobre a simpatia do filósofo pelo nazismo, esculpiram para ele uma reputação de esquerda e logo o filme veio a confirmar que era um crítico da 'América'. De seus mitos, com toda certeza. Terra de Ninguém passa-se na América interiorana, as badlands. Comunidades que parecem calmas, pacíficas, mas nas quais instala-se um profundo mal-estar. Tem genge que se comoda nessa vida. Tem gente que não.

Kit é um desses, mas a originalidade de Malick, na época, é que ele não fica buscando a origem desse mal-estar. Não psicanalisa Kit, nem Holly. As pessoas são para o que nascem. Ele mata, foge, toma-a pela mão, ela o segue. E o por quê de ele a haver arrastado está numa frase breve – para ter alguém que gritasse seu nome, no fim. Porque a verdade nua e crua é que Kit sabe que trilha um caminho sem volta. Há algo de James Dean nessa rebeldia sem causa – aparente, eelo mrenmos. Chamava-se justamente assim, Rebel Without a Cause, o longa de Nicholas Ray, de 1955, lançado no Brasil como Juventude Transviada, que está na origem da lenda de James Dean. Mas foi em outro filme – Assim Caminha a Humanidade/Giant, de George Stevens, do ano seguinte - que Malick foi buscar a imagem, emblemática. Kit coloca o rifle sobre os ombros, apoia com as mãos as extremidades, uma figura icônica, exatamente como a de James Dean.

Mais tarde, em outro filme, Cinzas do Paraíso/Days of Heaven, de 1978, Malick reproduziu outra imagem emblemática do cinma de Hollywood – a casa na fazenda de Sam Shepard, onde iam trabalhar Richard Gere e Brooke Adams, acompanhados pela menina, é a reprodução exata de Reata, a mansão dos Benedict, perdida na imensidão do Texas, em Giant. Não há cinéfilo que não reconheça essas referências, e elas podem até querer dizer alguma coisa, mas não é preciso conhecer o Ray, nem o Stevens, para seguir a história de Kit e Holly. Talvez ajudem a entender as intenções, ou o método. Desde o final dos anos 1950, produzira-se uma revolução cinematográfica na Europa. A nouvelle-vague, feito um tsunami com origem na França, produziu ondas em vários países europeus, atravessou o Atlântico e bateu nos EUA, no Brasil. Seguiu pelo Pacífico até o Japão.

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Todo mundo teve a sua nova onda. Nos EUA, ela deu ímpeto à produção independente, nutriu Arthur Penn, repercutiu em Hollywood. Filmes como Um Caminho para Dois, de Stanley Donen, de 1967, e O Homem Que Odiava as Mulheres/The Boston Strangler, de Richard Fleischer, no ano seguinte, incorporaram inovações de tempo e espaço e fragmentações narrativas dos grandes autores da nouvelle-vague. Arthur Penn reinventou, com um toque sofisticado europeu – David W.Griffith em O Milagre de Anne Sullivan, de 1962 - os autores fundadores de Hollywood, e o mesmo fez Malick. Bonnie & Clyde/Uma Rajada de Balas, de 1967, é sobre o casal de gângsteres durante a depressão econômica dos anos 1930 e a sua transformação em ídolos do público que passava fome por conta do desemprego. Ocorre algo semelhante com Kit e Holly, que também passam a ser cantados em prosa e verso, e a narração por ela talvez seja a forma de Malick retomar o poema de Bonnie/Faye Dunaway no final do Penn. Assim como bebeu na fonte de Ray, de Stevens, de Salinger, ele também mostrou que estava atento às novas tendências européias. A gratuidade de matar de Kit remete a Michel Poiccard em Acossado/À Bout de Souffle, o Jean-Luc Godard que seria refilmado por Jim McBride, virando A Força do Amor, de 1982, com Richard Gere. McBride refez Godard pelo filtro do filme noir, assimilando o 'gun crazy' de Joseph H. Lewis. É muita coincidência, para não dizer mais, que Kit e Holly se lancem na estrada como Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, Pierrot le Fou e Marianne, em O Demônio das Onze Horas, de 1965.

Malick tornou-se diretor bissexto. Foram 20 anos entre Cinzas do Paraíso e Além da Linha Vermelha, mais sete até O Novo Mundo, outros seis para A Árvore da Vida. Cinco filmes em 36 anos, mais quatro (Amor Pleno, O Cavleiro de Copas, De Canção em Canção e Uma Vida Oculta) em apenas oito anos. Um Malick prolífico? À luz da produção anterior, sem dúvida. Malick virou uma grife – astros e estrelas, relatos em off, interiorização extrema, integração na natureza, fragmentos de bravura cinematográfica (movimentos de câmera, música, edição). Em A Árvore da Vida, o narrador murmura 'Mãe', 'Pai', a câmera rodopia, a música sobe. Lindo! Mas quando isso é repetifdo pela décima vez, em todos os filmes, a estética banaliza-se.

Nem por isso os filmes deixam de ser importantes. Uma Vida Oculta, de 2019, aborda, de forma diferenciada, o mesmo tema de Mel Gibson em Até o Último Homem, com Andrew Garfield, de 2017. A objeção de consciência à guerra, agora pelo ângulo alemão. Em pleno nazismo, a história real do austríaco Franz Jagerstatter/August Diehl, que se recusa a pegar em armas. Torna-se um pária na própria comunidade que adere alegremente ao nacional-socialismo. Arrasta a família, termina morto, mas não transige com a sua consaciência. Mais de 40 anos depois de Kit, assassino por natureza, outro personagem de Malick irá na contramão, mas faz o que tem de fazer, o que nasceu para fazer, com a mesma firmeza (ou será obstinação?).

Poucos cineastas foram tão fundo na sua análise dos mitos da América. É claro que essa história poderia ser contada de outra forma, talvez mais brutal. Mas o fato de Malick parecer mais terno não deve enganar ninguém. Sob uma capa civilizatória, ele não é menos selvagem.Conta sua história num estilo moderno, por meio de cenas que parecem desconectadas, mas que se relacionam no tempo e no espaço e nesse desejo que está na essência do filme, de misturar realidade e fantasia. Por isso Terra de Ninguém tem essas cenas de cinema. Kit e Holly dançando na estrada. Vivem numa depravação inocente, em busca do Eldorado que não conseguirão atingir. Uma frase dele lança a chave - “É preciso levar em conta a opinião da minoria, mas é bom fazer tudo de acordo com a maioria.”

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Não deixa de haver certa dose de fascismo na ideia. A maioria é a silenciosa da América. Puritana e reprimida. Kit e Holly destoam desse padrão, agem de forma descontrolada, mas Malick não tem dúvida de onde está a doença social. É na organização social, na submissão ao gosto comum. As águas parecem calmas, mas há um redemoinho sob a superfície. Certos filmes, e esse é um deles, tornam-se indicadores sociais. Os EUA estavam atolados no Vietnã, logo iria estourar o escândalo de Watergate, que coloou em risco as instituições norte-americanas. Não é que Malick soubesse disso, ou tenha antecipado de forma consciente, mas, sim, o mal-estar atravessa Terra de Ninguém. Martin Sheen tornou-se um ator importante. A Execução do Soldado Slovik, Apocalypse Now. Sissy Spacek logo faria Carrie, a Estranha, Três Mulheres, Missing – O Desaparecido, Um Grande Mistério. Ganharia o Oscar de 1980, por O Destino Mudou Sua Vida. E tudo, para eles, para o autor, começou nessas 'terras ruins', no 'terreno baldio'. Badlands é um clássico.

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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