Opinião | Em ‘Anora’, o sapatinho de cristal é um Swarovski; filme venceu três prêmios no fim de semana

O diretor Sean Baker ganhou a Palma de Ouro em Cannes por romance entre acompanhante e um bilionário russo; longa merece aquele velho clichê ‘nasce uma estrela’, resta saber quem será ela

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Por Alissa Wilkinson (The New York Times)
Atualização:

Às vezes, um filme realmente merece aquele velho clichê “nasce uma estrela”, e estou aqui para dizer que Anora, de Sean Baker, é o verdadeiro nascimento de uma estrela. Assisti ao longa duas vezes e, nas duas vezes, saí do cinema em êxtase com as atuações, o ritmo e a forma emocional do filme. A única pergunta que fica no ar – uma pergunta ótima de se fazer – é exatamente quem será a estrela a nascer de Anora. Em cartaz no cinema, ele ganhou, entre sexta, 7, e hoje, 9 o prêmio de melhor filme no Critics Choice e do Producers Guild Awards e Baker ganhou ainda o Directors Guild Award. Assim, Anora pavimenta seu caminho para o Oscar.

Uma resposta óbvia (e obviamente correta) é Mikey Madison, que interpreta a personagem-título. Madison está longe de ser uma novata: ela interpretou Sadie, integrante da família Manson, em Era uma Vez em... Hollywood, de Quentin Tarantino, e a filha mais velha de Pamela Adlon, Max, na fantástica série da FX Better Things.

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Madison sempre esteve bem, uma ingênua com traços extraordinariamente expressivos, capaz de interpretar moças a um só tempo pueris e provocadoras. Mas esse papel exige que ela vá ao extremo, com elementos de pastelão, romance, comédia e tragédia, além de dançar com pouquíssima roupa e dar uns socos poderosos. O papel de Anora demandou uma vida interior emocionalmente rica e uma fisicalidade cinética de tirar o fôlego, tudo isso para uma personagem sobre a qual as pessoas formam opiniões no momento em que a conhecem. E a cada momento Madison fica mais fascinante.

O filme também é uma plataforma para o estrelato para Baker, cujos longas anteriores, como Projeto Flórida e Red Rocket, conquistaram elogios e um público dedicado. Com Anora, porém, ele subiu de nível. (O filme ganhou a cobiçada Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, em maio).

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Baker é conhecido por contar histórias sobre pessoas à margem da sociedade, muitas vezes profissionais do sexo. Mas este filme, que Baker dirigiu, escreveu e editou, é mais sólido e confiante do que seus trabalhos anteriores. De certa forma, Anora tem muito em comum com seu longa de 2015, Tangerine, uma comédia sobre profissionais do sexo transgêneros em Los Angeles, filmada com iPhones. Mas também parece uma evolução significativa em seu estilo e me deixa animada para ver o que ele vai fazer daqui para frente.

Mark Eydelshteyn e Mikey Madison em Anora. Foto: Neon/Divulgação

Ani – Anora prefere o diminutivo do nome – é stripper em um clube no centro de Manhattan e também aceita clientes como acompanhante. Ela mora em Brighton Beach, um dos bairros mais ao sul do Brooklyn, povoado em grande parte por russos e outras comunidades do Leste Europeu. Ani fala um russo aceitável porque, como ela diz a um novo cliente do clube, sua avó nunca aprendeu inglês.

Esse novo cliente é Ivan (um fantástico e frenético Mark Eydelshteyn), que também tem um apelido, Vanya, e parece ter uns 15 anos de idade, embora diga ter 21. Ele também está com os bolsos cheios quando conhece Ani na boate – em mais de um sentido. Esse cara é rico, mas Ani só se dá ao trabalho de perguntar sobre a origem de sua riqueza quando visita seu palácio no sul do Brooklyn, com vista para a baía. (O filme nunca especifica o local, mas parece ser Mill Basin).

Quando Ani pergunta a Vanya como ele tem essa casa incrível, ele desconversa e faz piadas em seu inglês hesitante, mas acaba revelando que seu pai é um homem muito rico e poderoso em Moscou. “Dá uma olhada no Google”, Vanya diz e aí fica só vendo como os olhos dela se arregalam.

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Vanya paga generosamente a Ani por seu sexo exuberante e transmite o ar de alguém que está acostumado a dar dinheiro às pessoas, tanto que mal considera essas relações como transacionais. Ela gosta dele.

Ani não é do tipo que se deixa intimidar pelo dinheiro: é uma mulher de negócios descolada, sabe muito bem o que o dinheiro pode significar e pede sem pudor o que lhe é devido pelos serviços prestados. Vanya só quer se divertir com os amigos, alguns dos quais também são descendentes de russos ricos, outros são apenas garotos do bairro. Vanya fica encantado com Ani e paga para ela se mudar para sua mansão e ser sua namorada por uma semana. Ela negocia e depois concorda. A expressão nos seus olhos sugere que ela não tem certeza de que se trata só de mais um negócio.

Anora se divide em três atos, e cada um dos quais funciona dentro de seu próprio gênero, algo emprestado e atualizado da Hollywood clássica. O primeiro ato é um romance que parece uma versão mais jovem e mais explícita de Uma Linda Mulher, ou talvez só um conto de fadas: a garota pobre e o pequeno príncipe. O segundo ato é uma comédia frenética com muitos predecessores, mais recentemente Joias Brutas: um passeio vertiginoso por Nova York, com um timing engraçado e alguns tombos. E o último ato – bem, vou deixar que você descubra por conta própria.

Que esses três atos se encaixem perfeitamente um no outro é uma maravilha do cinema e da atuação. Madison e Eydelshteyn têm uma química linda e efervescente que caminha na corda bamba à medida que a história avança. Quando os capangas do pai de Vanya aparecem (interpretados por Karren Karagulian, Vache Tovmasyan e o excelente Yura Borisov), os fios de sua luxuosa união começam a arrebentar. É uma história de amor, mas complicada, e agora vão aparecendo as rachaduras.

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Logo estamos passeando pelo sul do Brooklyn, em ruas reconhecidas principalmente por quem passou um preguiçoso dia de verão no calçadão de Coney Island. Mas no filme é inverno, então a paisagem local está diferente, fria e vazia. É a Nova York que nem sempre aparece nos filmes, desesperadamente bela e também repleta de caos.

Em determinado momento, as personagens caminham pelo calçadão ao cair da noite. Ao longe é possível ver uma espessa faixa de pôr do sol alaranjado pairando no horizonte, com a icônica Parachute Jump delineada contra o céu ardente. É mais bonito do que você pode imaginar.

Na verdade, não temos muita história de origem sobre ninguém neste filme, pelo menos não de forma direta. Em vez disso, Baker se baseia em pequenos toques, quase indetectáveis, para dar dimensão a figuras facilmente caricatas. A música tem um papel importante: imensas e pulsantes faixas de discoteca que nos dão a vida interior das personagens. Muitas vezes, a música passa de diegética para não diegética e vice-versa, o que significa que pertence ao mundo delas e ao nosso. Somos convencidos a entrar na história, a fazer parte dela.

Mikey Madison é uma das revelações de 'Anora', de Sean Baker. Foto: Neon/Divulgação via Mostra Internacional de Cinema de Sao Paulo

Também há escolhas de figurino: Ani, por exemplo, fica cada vez mais vestida à medida que sua personagem se torna mais vulnerável. Seu desenvolvimento está todo por trás dos olhos. Às vezes, o rosto dela aparece no centro da tela, preenchendo todo o quadro, da mesma forma que se vê a estrela dos antigos romances de Hollywood.

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Anora é uma fábula moderna e obscena, povoada por strippers e capangas. Como a maioria dos filmes de Baker, fala sobre os limites do sonho americano, sobre as muitas paredes invisíveis que se interpõem no caminho das fantasias de igualdade e oportunidade, sobre como se erguer pelas próprias pernas. É uma história sobre riqueza, poder e o que o amor pode ou não pode superar. Mas também sobre algo muito mais comovente: o que significa estar acostumada a ser vista de um jeito e depois, do nada, experimentar a sensação de ser vista de verdade. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Indicações de Anora ao Oscar

Anora foi indicado nas categorias: filme, direção, atriz, ator coadjuvante, roteiro original e edição

Indicações de Anora ao Critics Choice

O longa concorre a melhor filme, direção, atriz, ator coadjuvante, elenco, roteiro e montagem

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Opinião por Alissa Wilkinson

Crítica do 'New York Times' e jornalista de cinema desde 2005.

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