O brasileiro não vai mais ao cinema como antes. Os filmes levaram 34% menos pessoas às salas de exibição em 2023 do que em 2019, último ano antes da pandemia de covid-19 - que fez a frequência a esses espaços culturais despencar.
Mas levantaram as restrições, reabriram as portas e o público não voltou ao mesmo patamar, apesar de uma alta de 19,4% entre 2022 e 2023 com 113,8 milhões de ingressos vendidos - o que ainda é muito abaixo dos 173 milhões da época pré-covid. Os dados são da Agência Nacional do Cinema (Ancine), veja gráfico abaixo.
O que provoca este retorno brando do segmento, que nem mesmo um fenômeno como o ‘Barbenheimer’ foi capaz de reverter? A resposta não é simples e pode passar por duas grandes mudanças globais e mais dois dilemas brasileiros:
- No Brasil, o consumo de filmes nacionais desabou de 13,3% do total de ingressos para apenas 3,2%;
- há também debate sobre acessibilidade financeira e geográfica (o preço dos ingressos e a concentração das salas).
- Em todo o mundo, há mudanças de comportamento do público, especialmente do mais jovem;
- em paralelo vem a transformação da indústria audiovisual e das estratégias de lançamento.
Entenda o cenário e estas causas no texto abaixo.
A retomada dos cinemas está demorando?
O cineasta e professor do curso de cinema da Universidade de São Paulo (USP) Roberto Moreira explica que cinema é uma máquina que demora. No que é corroborado pelo presidente da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec), Lucio Otoni.
Ambos apontam que, após a profunda paralisação causada pela pandemia, a retomada das produções leva mais tempo que outros segmentos pela natureza da operação. “Tem toda a produção, a pós-produção, demora um ano para fazer um filme. É diferente de uma loja que abriu e no dia seguinte começou a vender”, diz Lucio.
Roberto diz que o caso foi mais grave no Brasil. “A gente teve uma tempestade perfeita, porque veio pandemia, streaming, o Bolsonaro e ter perdido o Paulo Gustavo”, lembra o professor.
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O ex-presidente Jair Bolsonaro era um crítico da Ancine. Ele estimulou pressão sobre a agência, questionou o papel do órgão, ameaçou “cortar a cabeça” de dirigentes e promoveu cortes e suspensão de editais de financiamento cinematográfico. Em 2020, o governo fez um corte de quase 43% no principal mecanismo de fomento de produções audiovisuais no País, o Fundo Setorial do Audiovisual, em 2020.
Em outra esfera, um dos grandes realizadores audiovisuais do Brasil, Paulo Gustavo foi vítima direta da covid-19. Com a franquia “Minha mãe é uma peça”, o criador arrastava multidões aos cinemas.
É na fatia do cinema nacional que pode estar a principal lacuna na bilheteria. Enquanto em 2019 as produções brasileiras representaram 13,3% do montante de ingressos vendidos, no ano passado o total não chegou a 3,2%.
Filme nacional como vetor de atração
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Para Leonardo Edde, fundador da produtora Urca Filmes, a exibição de filmes nacionais é fundamental para o setor. “Eles ampliam o público nas salas, e isso não é só no Brasil. Os países onde a cinematografia local é forte tendem a ter mais gente na sala de cinema e se recuperaram mais rápido dos efeitos da covid”, afirma.
A título de comparação, no último ano as bilheterias dos EUA arrecadaram pouco mais de US$ 9 bilhões, maior número desde a pandemia e quase 30% a mais que em 2022. Valor, porém, ainda 20% abaixo que os US$ 11,4 bilhões alcançados em 2019. Os dados são da Comscore.
Na França, a correlação é semelhante. Conforme a Comscore France, ainda 13,1% abaixo de 2019, o total da bilheteria chegou a 1,3 bilhões de euros em 2023. O valor representa um aumento de 18,9% na comparação com o ano anterior.
O presidente da Feneec espera uma recuperação da audiência brasileira. “O filme estrangeiro vai ter mais ou menos a mesma performance, mas a gente tem uma esperança grande nos filmes nacionais”.
Como sinais da mudança de paradigma, ele menciona os lançamentos brasileiros do fim de 2023 e início deste ano, que tiveram bons resultados de bilheteria. Minha Irmã e Eu é a melhor estreia nacional desde a pandemia, com 750 mil espectadores. Outros bons lançamentos recentes foram os de Mussum, o Filmis, Nosso Sonho, e Mamonas Assassinas - O Filme.
“Esses dois filmes [Minha Irmã e Eu e Mamonas] viraram o ano ocupando mais de 55% das salas de exibição”, diz Lucio. Entre as apostas dele para este ano estão títulos como Nosso Lar 2, Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa e Os Farofeiros 2.
Um maior consumo nacional poderia amenizar a perda de 34% do público brasileiro em 2023 em relação a 2019. Aqui tivemos uma queda pior do que da França e dos EUA, por exemplo - 18,9% e 20%, respectivamente. Mas os números mostram que nem os franceses e americanos chegam ao patamar anterior. Há, portanto, outras dificuldades.
O streaming é uma ameaça?
Lucio alega que as plataformas de streaming nem sequer concorrem em público com os cinemas. “A experiência da sala de cinema é única. Nós temos pesquisas [internas] que mostram que as pessoas que mais assistem streaming são as que mais vão ao cinema”, diz.
Ele defende o cinema como espaço coletivo, de interatividade e compartilhamento de emoções. Para ele, o streaming hoje seria o equivalente ao que já foram um dia o DVD e o VHS, meios complementares do audiovisual.
Não é o que aponta o professor de audiovisual da Universidade de Brasília (UNB) Pablo Gonçalo, que vê uma situação mais nova e complexa - bem como os demais entrevistados desta reportagem. A relação entre cinema e streaming pode revelar a transformação do próprio modelo de negócios.
Pablo sugere que os estúdios enxergam as salas de cinema atualmente mais como estratégia de marketing do que como espaço de exibição. “O modelo é usar cada vez mais a janela da sala de cinema como uma propaganda. Agora você tem lançamentos quase simultâneos com o streaming”, ressalta.
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Os jovens abandonaram o cinema?
Existe um estereótipo de que os jovens têm preferido formatos curtos de redes sociais como o TikTok e de que saem menos de casa. Isso poderia levar a uma percepção de que eles abandonaram o cinema por consequência. Mas o contexto pode não ser tão simplista assim.
Por exemplo, uma pesquisa de 2022 do Pew Research Center mostrou que o YouTube é a rede preferencial de 95% dos adolescentes americanos, enquanto 67% disseram usar o TikTok. E a plataforma de vídeos do Google oferece vídeos sensivelmente mais longos que a da chinesa.
Uma mudança no comportamento para incluir o streaming na rotina é uma realidade, como aponta pesquisa de 2012 da plataforma Roku, executada pelo Instituto FSB Pesquisa. Segundo os dados, 72% dos 2 mil entrevistados já desistiram de sair com amigos para ficar no streaming.
Na comparação com outras atividades, 74% disseram preferir o streaming a ler um livro e 61% acham melhor o programa online a ir a uma festa ou show. Uma parcela menor, de 25% prefere deixar de fazer sexo para ver séries ou filmes em casa.
Conforme a pesquisa, a geração Y (entre 23 e 38 anos) das classes A e B são as que mais gostam de consumir streaming. Já 62% dos jovens da geração Z (no recorte, os nascidos entre 2000 e 2004) definem o período de assistir streaming como “um momento para mim”.
O presidente Feneec diz que justamente os jovens são os que mais assistem filmes no cinema. “A Federação fez uma ampla pesquisa ano passado e mostrou que a geração de 19 a 34 anos é que mais consome cinema”, destaca.
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E o cinema é acessível a todo mundo?
De acordo com a Ancine, o preço médio do ingresso no Brasil é de R$ 19,62. Mas não é isso que define a acessibilidade do espaço. Nas grandes cidades, a maioria dos cinemas fica em shoppings, áreas habitualmente mais caras. E o passeio geralmente envolve mais do que somente o ingresso.
“Você pauta o preço pela meia entrada”, acrescenta Roberto. “Com certeza deveria ser mais barato. Mas, sim, vai caminhar para uma elitização do espetáculo cinematográfico”, aposta ele. Lembrando que, para convencer o público a ir às salas, elas precisam oferecer alto conforto e tecnologia. E o custo geral do passeio sobe se incluída a pipoca, alimentação e transporte.
Fora isso, existe ainda a concentração das salas de exibição. De acordo com o IBGE, com dados de 2021, 42,6% da população do País vivia em cidades sem nenhum cinema. E somente 9% dos municípios do País tinham ao menos um equipamento como esse, com maior concentração no Sudeste.
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No Norte era onde mais havia cidades em que os moradores levariam mais de uma hora para chegar a um cinema - 80,4% dos municípios têm essa limitação. Para resolver o problema, Pablo defende investimento no desenvolvimento de políticas públicas de acesso aos cinemas e preços populares.
“Precisa ter mais salas comerciais, mais salas públicas e financiamento público na formação de público através da experiência cinematográfica. Eu acho que a universidade pode ter esse papel. Hoje em dia tem poucos cinemas universitários, que são locais de oxigenar”, explica o professor.
Lucio afirma que, ainda de forma embrionária, a Feneec tem aberto discussões com o Ministério da Cultura e Ancine para viabilizar maior democratização do cinema no Brasil. “É fazer com que o acesso seja a um preço reduzido, subsidiado, talvez por empresas terceiras ou outros mecanismos de leis de fomento. Existe esse desejo [de democratizar]. Isso foi explicitado para a gente pelo Governo Federal”, completa.
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