Washington Post: A vencedora do Oscar de Melhor Atriz pode estar escondida à vista de todos

Veja entrevista do jornal americano com Fernanda Torres, protagonista de ‘Ainda Estou Aqui’ e indicada ao Oscar

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Por Ty Burr (The Washington Post)
Atualização:

O drama brasileiro indicado ao Oscar Ainda Estou Aqui é um filme familiar, mas não da maneira que você pode imaginar. É sobre uma família na tela, também sobre outra família por trás da tela, e se você recuar o suficiente, é sobre a família, de 216 milhões, que é o próprio Brasil.

O “Eu” implícito do título se refere a todos eles, de uma forma ou de outra: um país e um povo que sobreviveu 21 anos sob uma ditadura esmagadora que começou nos anos 1960, e as milhares de vítimas daquele regime que foram levadas na noite e nunca retornaram. O patriarca de um clã caloroso e amoroso do Rio de Janeiro que desapareceu no sistema prisional da junta. E, finalmente, sua esposa, uma dona de casa que manteve sua família unida enquanto se tornava uma ativista e conduzia uma cruzada, determinada a nunca deixar o governo escapar, nunca deixar que eles esquecessem que ela ainda estava lá, exigindo respostas.

Fernanda Torres no Festival de Santa Barbara, nos EUA; atriz está promovendo 'Ainda Estou Aqui' no exterior Foto: Kevin Winter/KEVIN WINTER

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Seu nome era Eunice Paiva, e em Ainda Estou Aqui ela é interpretada por Fernanda Torres, uma renomada atriz brasileira com quatro décadas de créditos em filmes e no palco, mas que provavelmente é mais conhecida pelos brasileiros como a estrela de novelas de TV e séries de comédia de sucesso. Torres, 59, também é filha da lendária atriz brasileira Fernanda Montenegro, que interpreta a idosa Eunice Paiva nas cenas finais de Ainda Estou Aqui.

Mãe e filha são as únicas brasileiras já indicadas para os Oscars de atuação, Torres por Ainda Estou Aqui e Montenegro por Central do Brasil, de 1998. Montenegro foi indicada para um Globo de Ouro, enquanto Torres ganhou o Globo de Melhor Atriz em um Drama em janeiro passado. O diretor dos dois filmes é Walter Salles, que descreve a atuação de Torres no novo filme como “o primeiro violino de toda a orquestra. Porque uma vez que o primeiro violino está bem afinado, eleva o resto da orquestra e obriga todos a serem tão bons quanto podem ser”.

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Quanto a Torres, ajustar-se ao turbilhão da corrida ao Oscar é atualmente um trabalho em tempo integral, que hoje envolve turnês de imprensa não apenas nos Estados Unidos, mas também internacionalmente. Entrevistada por Zoom, quando estava em Genebra, a atriz admite rindo que “nem meu jet lag sabe qual jet lag obedecer”.

Faça-a falar sobre Ainda Estou Aqui e o trabalho de se tornar Eunice Paiva, e a atriz forte e ponderada a quem Salles se refere como sua “co-autora” aparece. O processo de escavação para essa mulher, diz Torres, espelhou o do filho de Eunice, Marcelo Rubens Paiva, que ao escrever o livro de 2015 no qual o filme é baseado, percebeu que sua mãe era a verdadeira heroína da história de sua família. E não apenas o filho: “O Brasil a conhecia como a viúva do [político ativista] Rubens Paiva. Era como um título que ela tinha. Então, quando Marcelo escreveu Feliz Ano Velho, nós só a conhecíamos como mãe dele. Mas Ainda Estou Aqui é um livro sobre um cara que descobre que o grande herói não era seu pai, não era ele mesmo, mas ela.”

Fernanda Torres em 'Ainda Estou Aqui' Foto: Alile Onawale/Divulgação

A parte mais difícil de interpretar Eunice pode ter sido capturar a contenção de uma mulher que, nas palavras de Salles, “nunca se permitiu ser retratada como uma mulher quebrada com uma família quebrada. Ela nunca se permitiu ser fotografada chorando. Ela nunca se permitiu ser vista chorando por seus próprios filhos.” Em Ainda Estou Aqui, essa determinação é escondida por uma elegância que é sua própria forma de resistência. Diz Torres: “Você podia ver a dona de casa que ela foi criada para ser, uma mulher muito delicada, muito feminina. Ela sempre teve esse sorriso. Ela é dura, mas é muito civilizada. Foi uma abordagem delicada entender esse sorriso, porque eu sou muito mais masculina do que ela.”

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Antes de sua morte em 2018, Eunice Paiva foi fundamental para que o governo brasileiro reconhecesse oficialmente os destinos dos “desaparecidos” mortos pela ditadura, e, diz Torres, “ela foi responsável por muitas reservas indígenas nos anos 80, de modo que, hoje em dia, graças a essas reservas, a floresta ainda está lá. Ela é uma mulher imensa que nunca sentiu a necessidade de ser reconhecida.”

A atriz entende como é crescer com uma mulher imensamente realizada em uma casa movimentada com visitantes, cultura e conversas. Além de tudo, Eunice Paiva “me lembrou muito minha mãe nos anos 1970. Elas são muito parecidas. A casa era como a minha casa. Meu irmão foi ver o filme e disse, ‘Nanda, é a nossa juventude.’”

Torres e Montenegro não compartilham a tela em Ainda Estou Aqui, mas as duas trabalharam juntas em um filme anterior e no palco. “Quando você trabalha com sua mãe, você tem sua mãe e sua colega, e você descobre quem ela realmente é”, diz Torres. “Esse foi meu sentimento, que eu a conheço como mãe, mas também como quem ela realmente é.”

A filha se maravilha com Montenegro, agora com 95 anos: “Ela é viciada em trabalho. Ela acabou de terminar outro filme e ela está lançando outro quando voltar. Ela tem um monólogo que adaptou de Simone de Beauvoir, e no ano passado ela o apresentou para 14.000 pessoas em um parque.”

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Sobre a loucura que vem com ser indicada ao Oscar, Torres traz a sabedoria da experiência e um entendimento de que é, no fim das contas, apenas mais um papel. “Você tem que ter muitas habilidades para sobreviver a uma campanha de prêmios”, ela diz. “Estou feliz que isso está acontecendo comigo aos 59 anos porque posso lidar, mas é uma enorme máquina que exige muitas habilidades de um ator que não têm nada a ver com o filme. É outra profissão na qual você tem que ser capaz de sobreviver. Não apenas sobreviver, mas se sair bem.”

“É engraçado porque você tem o glamour, os vestidos, o tapete vermelho, e você também tem que se sair bem naquele tapete. E em três continentes, isso é outra coisa”, diz Torres. “Quando minha mãe fez isso, era apenas a América. Mas agora eu tenho viajado com Walter, ziguezagueando o Atlântico e os dois hemisférios. Você tem que ter maturidade para fazer isso.”

No fim das contas, e independentemente de se Torres leva para casa o Oscar, Ainda Estou Aqui se tornou um grande sucesso no Brasil - apesar de um esforço de veículos de mídia de direita para boicotar o filme - e agitou memórias de um passado difícil e quais lições essas memórias podem oferecer para o futuro, para o Brasil e outros lugares. A atriz diz: “Minha adolescência foi praticamente como o começo [do filme], onde aqueles jovens no carro são parados pela polícia. Na minha infância, lembro muito vividamente do medo que meus pais tinham da censura. Meu pai teve uma peça proibida um dia antes da estreia.”

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“Eu acho que o filme é um guia de sobrevivência para tempos distópicos”, ela continua. “Eu acho que Eunice nos ensina que você tem que manter um senso de moralidade, ser civilizado em um mundo não civilizado. A família Paiva foi vítima de outro tempo distópico chamado Guerra Fria, quando o mundo achava que todos se destruiriam com bombas. Hoje em dia, temos o medo do aquecimento global, então estamos com medo do fim do mundo como estávamos naquela época. E quando você tem tempos de medo, acho que as pessoas optam pelo populismo porque têm a sensação de que o populista será como um pai forte que colocará tudo em ordem. ”

Torres faz uma pausa. “Acho que temos um longo caminho pela frente e devemos estar calmos. Devemos aprender com Eunice a sorrir e ser civilizados, lutar a luta certa e não ser agressivos. Isso é um desafio.” De repente, ganhar um Oscar parece a coisa menos importante na lista de tarefas.

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