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Lançamentos exploram como o exílio afeta a obra de poetas

Livros dos poetas Joseph Brodsky, Tomas Tranströmer, Sophia de Mello Breyner Andresen e Juliano Garcia Pessanha tratam da temática sob perspectivas variadas

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Por Martim Vasques da Cunha
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Na coletânea de entrevistas A Musa no Exílio (Editora Âyiné), o poeta russo, naturalizado americano, Joseph Brodsky (1940-1996) escuta a seguinte pergunta: “Você acha que ser exilado contribuiu para seu interesse de observar a língua com algum distanciamento?” Sua resposta é: “Acho que ajudou. Quando vim para cá, disse a mim mesmo para não fazer dessa mudança um grande acontecimento – para agir como se nada tivesse acontecido. E eu agi assim. E ainda ajo, creio, para seguir em frente. No entanto, durante os dois ou três primeiros anos, senti que estava atuando em lugar de viver. Bem, atuando como se nada tivesse acontecido. Atualmente, acho que a máscara e a face colaram-se uma à outra. Eu simplesmente não sinto e não consigo distingui-las”.

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O ator Mikhail Baryshnikov interpreta o poeta Joseph Brodsky, ganhador do Nobel de Literatura Foto: Sara Krulwich/The New York Times

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Quem sobrevive no exílio, seja exterior ou interior, precisa criar uma estratégia idiossincrática – a de elaborar uma máscara (persona, no latim) que proteja a sua verdadeira identidade. Brodsky sabia disso como poucos. Sobrevivente da União Soviética totalitária e de uma América acolhedora, porém feroz na caçada pelo sucesso a qualquer custo, ele reconhecia que a musa poética era “uma face incomum”. “Independente de alguém ser escritor ou leitor”, escreve, “a tarefa consiste, em primeiro lugar, em dominar a sua própria vida, sem a imposição e prescrição de terceiros”, pois, como arremata em Sobre o Exílio (Âyiné), ninguém descerá à cova conosco exceto nós mesmos.

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Para manter o relacionamento com essa “face incomum”, Brodsky teve de criar a persona de um poeta temperamental, boêmio, talvez um pouco mulherengo, sempre pronto para dizer uma boutade polêmica. Na verdade, era alguém completamente atormentado por não conseguir rever tanto seu país natal como Andrei, seu único filho. A obsessão que tinha pela obra de W.H. Auden mostra que, afinal de contas, ele jamais conseguiu o equilíbrio entre a razão e as emoções que fundamenta os alicerces de um grande poema, apesar dos louros do Nobel de literatura dado em 1987. Não à toa, seu triste fim jamais foi visto por seus colegas como um fim – e sim como uma interrupção.

Poeta contemporâneo de Brodsky (e também vencedor do Nobel, em 2011), o sueco Tomas Tranströmer (1931-2015) entendia igualmente o exílio como a forma mais brutal de interrupção. Neste caso, ele tornou-se um exilado em seu próprio corpo ao ser vítima de um derrame em 1990, paralisando o seu lado direito. Mesmo assim, Tranströmer nunca deixou que a sua poesia fosse interrompida, como bem observou Marcia Sá Cavalcante Schuback, tradutora e organizadora da coletânea Mares do Leste (Âyiné). Continuou a escrever – e a tocar piano, sua outra grande paixão – com a mão esquerda, moldando uma persona plácida e serena diante das outras interrupções que o mundo o obrigou a suportar, com versos aparentemente distantes, mas que, no fundo, sempre retornavam àquela experiência marcante, registrada logo no primeiro verso do seu poema de estreia, em 1954 – a de que acordar para a luz do dia era um “saltar de sonhos com paraquedas”.

Essa resistência contra as interrupções típicas de quem vive no exílio é também a marca registrada da obra do escritor brasileiro Juliano Garcia Pessanha. Ao mesmo tempo, poucos souberam usar com tamanha habilidade a estratégia das máscaras como ele. Em seus livros anteriores – o chamado “quarteto da angústia”, composto por Sabedoria do Nunca, Ignorância do Sempre, Certeza do Agora e Instabilidade Perpétua, todos reunidos no volume único Testemunho Transiente –, Pessanha se apropriou da filosofia de Martin Heidegger, dos aforismos de Emil Cioran e da poesia dos portugueses Fernando Pessoa, Herberto Helder e Sophia de Mello Breyner Andersen para criar um gênero único na literatura nacional. Trata-se da “heterotanatografia”, uma biografia que mistura ficção, ensaio e versos para meditar sobre uma existência que parte da morte para entender a vida – e não do seu inverso, como fazem as autoficções que pululam por aí no mercado editorial. Neste jogo de esconde-esconde, Pessanha constrói a sua persona de “pastor do ser”, o escritor angustiado que tem uma mensagem para transmitir ao homem comum, mas é absolutamente incapaz de resolver a vida nos termos mais práticos.

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Este paradoxo – que, para o próprio Juliano, tem toques de tragicomédia – é finalmente rompido em Recusa do Não-Lugar (Ubu), um livro extremamente corajoso, no qual o autor não tem o mínimo pudor de destruir as máscaras que construiu para suportar o seu exílio interior – e perceber que, ao contrário do que praticaram Brodsky e Tranströmer para suportar a interrupção do desterro, toda a sua literatura anterior não passava de um fracasso completo. Todavia, é neste rompimento que se encontra a sua maior vitória. Ao superar a influência de Heidegger, absorvendo a filosofia acolhedora de outro alemão, Peter Sloterdijk, Pessanha recupera a “face incomum” da poesia ao perceber que adquirir uma certa leveza ao lidar com o mundo não significa ser completamente vazio. A abstração conceitual (e extremamente sofisticada) dos livros anteriores é substituída por uma procura pelo concreto, sem prejuízo do rigor filosófico, no qual será encontrado não somente com as leituras de Nietzsche, mas também com as de Adam Smith, aliado improvável de um escritor que, para pagar as contas, não tem vergonha de ser taxista no período noturno – além de admitir que, antes, o “pastor do ser” era nada mais nada menos que um “Mestre Eckhart de shopping center”.

Será neste equilíbrio adquirido às duras penas que talvez fique nítida que a verdadeira influência de Pessanha nunca foi Heidegger ou Sloterdijk, e sim ninguém menos que a poeta lusitana Sophia de Mello Breyner Andersen, novamente redescoberta por essas plagas com a coletânea Coral e Outros Poemas (Companhia das Letras). Sem dúvida, Sophia é também uma artista do exílio – mas ela consegue viver dentro dele sem usar nenhuma espécie de máscara, o que é algo admirável. Logo no início da sua obra, seus versos reconhecem que “apesar das ruínas e da morte,/ onde sempre acabou cada ilusão,/ a força dos meus sonhos é tão forte,/ que de tudo renasce a exaltação/ e nunca as minhas mãos ficam vazias”. Sophia não vê o exílio como um fardo, e sim como uma bênção – e, por isso, não precisa de disfarces, de apropriações, de aliados. Sua única amiga é a poesia. Ela lhe dá a chance de ser Orfeu e Eurídice, Ulisses e Penélope ao mesmo tempo, sem nenhuma perda da sua própria identidade. Mas a percepção de que “o reino dividido” é algo sempre permanente a faz ir além das interrupções que poderiam consumi-la – e é então que a poesia de Sophia e a literatura de Pessanha se unem de maneira única, ao descobrirem que, quando se vive no exílio, o artista jamais deve se ver como uma vítima.

Pois esta foi a última lição de Joseph Brodsky antes de morrer de um ataque cardíaco fulminante em 1996. Como ele bem descreveu, uma vez que todos nós vivemos na condição de exilados, independente da geografia, jamais podemos ser orgulhosos, na crença tola de que a literatura é o suficiente para substituir a vida. Mas o fato é que a poesia e a filosofia não libertam ninguém – é o que nos diz Juliano Garcia Pessanha, que ficou próximo de seguir os passos do poeta de A Part of Speech, ao ser o alvo quase fatal de um coração interrompido, como ele relata em Recusa do Não-Lugar no capítulo mais comovente do livro. Entretanto, Juliano aprendeu, ao incorporar para si a tradição dos versos de Brodsky, Tranströmer e Sophia, que um homem livre reafirma a sua liberdade aceitando naturalmente as interrupções da nossa existência. Ele não culpa ninguém quando enfim se reencontra com a “face incomum” da musa que amarra as pontas da vida e da arte. Esta é a lição mais difícil que alguém pode aprender – e, neste caso específico, foi cumprida à perfeição. *Martim Vasques da Cunha é autor dos livros 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012) e 'A Poeira da Glória - Uma Inesperada História da Literatura Brasileira' (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP

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