Algumas das minhas melhores memórias de infância têm como cenário São Carlos, cidade no interior paulista. Lá meus avós maternos moravam numa casa com quintal de terra e árvores frutíferas, perto de uma praça com duas sorveterias, onde de vez em quando se instalava um parque de diversões. Quer cenário melhor para uma criança? Mas a principal lembrança é a da liberdade que eu e meus três irmãos tínhamos para brincar com a meninada vizinha. Situação bem diferente da que vivíamos em São Paulo, onde íamos de casa para a escola e daí pra casa, sempre sob supervisão de algum adulto.
Leitores mais velhos também devem ter experimentado na infância essa sensação de mais segurança e menos perigo. Mas daí a terem se sentido à vontade para permitir aos filhos a mesma liberdade é outra questão. Com o aumento do medo da violência, do trânsito e de outros riscos, ver crianças brincando sozinhas foi ficando mais raro. Na exata medida em que, na via oposta, multiplicaram-se atividades planejadas pelos pais para ocupar o tempo - e a energia - dos filhos. Sempre com a melhor das intenções. Mas qual será o impacto dessa perda de brincadeiras mais livres e menos planejadas para a saúde mental das crianças?
Ainda em 2004 um estudo americano comparou experiências de mães durante a infância às dos próprios filhos, com idade entre 3 e 12 anos. A pesquisadora Rhonda Clements descobriu uma diminuição no tempo gasto ao ar livre e em brincadeiras não estruturadas e um crescimento nas atividades planejadas por adultos. De lá pra cá, com a explosão do uso de telas e o aumento da sensação de insegurança, essa relação certamente se incrementou.
Enquanto antigamente eram vistos como “diferentes” pais e mães que mantinham os filhos trancados em casa e interferiam em suas brincadeiras, hoje quem não sabe minuto a minuto onde eles estão pode ser logo visto(a) como negligente. Não por acaso até crianças pequenas carregam celulares e tablets de lá pra cá. Muitos pais dizem se sentir mais seguros se o filho estiver facilmente acionável por algum dispositivo. Inclusive na escola, ainda que desrespeite orientações de professores e ignore alertas de especialistas.
Há poucos dias uma das recomendações para a excursão escolar dos meus filhos de 10 anos era não levar celular ou aparelho eletrônico. Logo apareceu opinião no grupo de mães contestando a regra.
Claro que é dever de pais, mães e responsáveis permanecerem atentos à segurança dos filhos e vigilantes em relação aos perigos, mas uma questão tem ganhado força: será que manter crianças e adolescentes confinados em casas, condomínios e escolas, passando cada vez mais tempo em atividades planejadas e monitoradas por adultos, não pode estar contribuindo para as crescentes taxas de ansiedade e depressão infanto-juvenil?
Alguns estudos e movimentos já cravam que sim e defendem, como antídoto, o aumento de uma autonomia segura na infância.
“Nossa tese é de que a principal causa do aumento dos transtornos mentais é um declínio ao longo das décadas de oportunidades para crianças e adolescentes brincarem, passearem e se envolverem em atividades independentes de supervisão e controle direto por parte dos adultos”, diz trecho do artigo Declínio na atividade independente como causa do declínio no bem-estar mental das crianças: Resumo das Evidências, publicado no Journal of Pediatrics. “Essas atividades independentes podem promover bem-estar através de efeitos imediatos, como fonte direta de satisfação, e de longo prazo, construindo características mentais que fornecem uma base para lidar eficazmente com o estresse da vida.” Em outras palavras, supervisão e intervenção constantes podem prejudicar o caminho para a coragem e a resiliência.
“O que falta hoje não é apenas a emoção de subir em árvores ou brincar de pega-pega. Quando um adulto está sempre presente – pessoal ou eletronicamente –, as crianças não conseguem realmente ver do que são capazes”, diz o artigo This Simple Fix Could Help Anxious Kids (Esta solução simples pode ajudar crianças ansiosas), publicado em 4 de setembro no jornal americano The New York Times. Escrito pela jornalista Lenore Skenazy e pelo psicólogo Camilo Ortiz, ele pergunta se, embora possam existir várias razões para o sofrimento infantil, o problema não pode estar simplesmente no fato de as crianças estarem crescendo tão superprotegidas que têm medo do mundo. Nesse caso, dizem, a solução também seria simples: começar a deixá-las fazer mais coisas por conta própria.
“As crianças, claro, devem ter um relacionamento amoroso e seguro com os pais. Mas se você pensar em uma época em que estava sozinho quando criança e se perdeu ou talvez caiu da bicicleta, provavelmente ainda se lembra do que aconteceu a seguir. Você mancou todo o caminho para casa ou pediu ajuda a um estranho. Você conseguiu. E isso foi um marco. As crianças precisam disso. Essas experiências assassinam a ansiedade.”
Em 2008, Lenore foi chamada de “a pior mãe da América” após deixar o filho de 9 anos andar de metrô sozinho e escrever uma coluna sobre isso. De lá pra cá, passou a estudar o cenário da infância americana, escreveu o livro Free-Range Kids e atualmente lidera a Let Grow (Deixe Crescer, em tradução livre), uma organização sem fins lucrativos criada para promover a independência e a resiliência na infância. “As crianças de hoje são mais inteligentes e fortes do que nossa cultura acredita e é preciso tornar ‘mais fácil, normal e legal’ dar a elas a independência de que precisam para se tornarem adultos capazes, confiantes e felizes”, diz o site do movimento.
E como fazer isso?
Fiz essa pergunta a Lenore.
“Fui considerada polêmica há 15 anos e agora sou considerada sábia. O que mostra uma maior adesão à ideia do tempo livre e da brincadeira livre para crianças”, me respondeu ela por e-mail. “O Let Grow já ajudou a aprovar leis em oito Estados americanos que dizem que a negligência ocorre quando você põe seu filho em perigo sério e óbvio - e não sempre que você tira os olhos de cima dele. Nossa lei foi aprovada por unanimidade em vários desses Estados, o que significa que democratas e republicanos concordam que as crianças precisam de mais tempo não estruturado e sem supervisão, e que os pais devem poder lhes dar esse tempo.”
Segundo Lenore, depois que seu artigo foi publicado no New York Times, o principal funcionário de saúde dos Estados Unidos lhe escreveu para dizer: ‘Vamos conversar’. “Ele parece estar considerando a importância do tempo sem supervisão e do lazer livre para ajudar a resolver a crise de saúde mental dos jovens”, disse.
Lenore afirmou não conhecer detalhes da realidade brasileira, mas se surpreendeu quando contei o caso do celular na excursão escolar dos meus filhos. “Uau, isso é tão interessante. Que fenômeno global. Por que os pais de repente ‘precisam’ de um dispositivo que nem existia 15 anos atrás?” E citou um exemplo de ação que parece servir independentemente da cidade. “Aqui nos EUA estamos sugerindo que as escolas permaneçam abertas depois das aulas para brincadeiras gratuitas, sem dispositivos. As crianças organizam os próprios jogos e brincadeiras, resolvem as próprias brigas. Um adulto só fica lá para ‘emergências’, como um salva-vidas na praia.”
A tese é de que, ao organizar brincadeiras e aprender sozinhas a eliminar divergências, as crianças aprendem habilidades sociais do mundo real. Coisa que não seria possível com um adulto determinando a toda hora o que e como devem fazer. “Chamamos isso de Let Grow Play Clubs e seria fantástico vê-los nascer no Brasil também”, escreveu Lenore. “Eles servem para bairros seguros ou perigosos porque são apenas as crianças ficando até um pouco mais tarde na escola. E, como depois de lá vão para casa, para um dispositivo ou uma atividade supervisionada, esta é a única forma que lhes permite um tempo de atividade livre, real, não organizada.”
Algo que os mais velhos certamente associarão à boa e velha brincadeira de rua.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.