É um documentário de observação, na qual a diretora serve como interlocutora mais que entrevistadora. Conduz o espectador ao mundo complexo da personagem, respeitando-a e desvelando sua intimidade com delicadeza, à medida em que ela vai se sentindo à vontade para fazê-lo. O documentário foi longamente aplaudido pelo público do Olhar de Cinema. Certamente por suas qualidades, mas também porque o foco de gênero e questões raciais anda forte na sociedade e, portanto, nos festivais.
Outro filme da competição foi o filipino Ansiosa Tradução, de Shireen Seno. Uma espécie de exercício memorialístico ficcional em que o foco narrativo é centrado no imaginário de Yael, uma garota de oito anos. Enquanto joga com seus brinquedos, a solitária Yanel observa com olhos críticos o mundo dos adultos, em particular o de uma mãe tão imersa em seus próprios problemas que pouca atenção pode dar à filha. O filme, no entanto, evita o tom acusatório e busca a compreensão. É bem bonito.
Na seção Olhares Clássicos, o destaque foi o magnífico Os Encontros de Anna (Les Rendez-Vous d'Anna, 1978), da diretora belga Chantal Akerman (1950-2015). Aurore Clément é Anna Silver, personagem claramente autobiográfico. Ela é uma diretora de cinema cuja vida se passa na estrada e de hotel em hotel, peregrinando no lançamento de seus filmes. Sua vida amorosa é problemática, divide-se diante de uma indecisão sexual e sente um clamoroso vazio existencial.
É um filme cheio de silêncios, que se instala na angústia e na solidão dessa personagem única. Na Alemanha, Anna vai para a cama com um homem, mas decide mandá-lo embora antes que o ato se consume. De passagem por Bruxelas, rumo a Paris, encontra-se com sua mãe (Léa Massari) e lhe fala de sua vida e de como se apaixonou em uma viagem por uma moça italiana. Em Paris, revê um velho amigo e amante, Daniel (Jean-Pierre Cassel), mas o encontro também não corre bem. Sozinha, em casa, Anna ouve os recados em sua secretária eletrônica.
Com seus planos longos, seus silêncios, a fisionomia ausente de Aurore Clément o que se cria é uma atmosfera angustiante e sem saída. Anna não é apenas uma mulher infeliz. Incorpora o mal-estar de uma civilização que, mal ou bem, resolveu seus problemas materiais, mas não consegue encontrar motivação para viver. Mas submeter Os Encontros de Anna a uma redução sociológica seria empobrecer esta obra de muitas nuances e arestas. Chantal Akerman foi uma diretora extraordinária.
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