Ian Astbury, do The Cult, fala sobre vinda ao Brasil e repulsa a celulares em shows: ‘Sem sentido’

Em entrevista franca ao ‘Estadão’, o cantor britânico da banda de hits como ‘She Sells Sanctuary’ e ‘Wild Flower’ projetou as novas apresentações no País e explicou por que recusou interpretar Jim Morrison na cinebiografia do The Doors

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Foto: Divulgação/The Cult/Mick Peek
Entrevista comIan AstburyVocalista do The Cult

Ian Astbury é uma criatura selvagem. O britânico de 62 anos sempre foi avesso ao rótulo de rockstar e tentou derrubar o muro invisível entre o artista e o público. Sua paixão e intensidade floresceram na rebeldia da música do The Cult, uma das bandas mais importantes dos anos 80.

À frente do conjunto formado há mais de quatro décadas, Astbury retorna ao Brasil para shows em São Paulo, Rio e Curitiba, acompanhado do guitarrista e cofundador Billy Duffy, responsável pelos riffs poderosos de hits como She Sells Sanctuary, Love Removal Machine, Wild Flower, entre outros. Será a 8ª passagem do grupo pelo País.

Na última vinda, em 2017, eles integraram o line-up do festival São Paulo Trip e abriram o show do The Who no Allianz Parque. Na ocasião, ficou clara a aversão de Ian ao mar de celulares na plateia brasileira. “Mandem mensagem mais tarde”, pediu ele.

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Em longa entrevista ao Estadão, o cantor abordou o assunto e também analisou os 40 anos do celebrado álbum Love (1985). Filho de pai inglês e mãe escocesa, ele ainda discorreu sobre política e a causa indígena, aspectos recorrentes em sua obra.

Por fim, ele relembrou a experiência mítica de ocupar a função de Jim Morrison no projeto-tributo com membros remanescentes do The Doors e explicou por que recusou interpretar o lendário artista na cinebiografia de 1991 dirigida por Oliver Stone.

Ian Astbury, à frente do The Cult, eternizou clássicos do rock como 'She Sells Sanctuary' Foto: Reprodução/The Cult via Facebook

Ian, pelo que eu vi, vocês não estão mais tocando muitas músicas do último álbum, ‘Under the Midnight Sun’ (2022). A atual turnê celebra os 40 anos da banda, mas sem a obrigação de tocar apenas os hits, correto?

Nunca tivemos a obrigação de tocar os hits. E quem define o que é um hit? Porque agora, em 2025, você pode escrever uma música há 30 anos que pode aparecer em Stranger Things e ser a maior música do mundo. Então, eu acho que essa ideia de hits acabou. As coisas mudaram drasticamente. E o The Cult nunca saiu por aí para tocar os hits. Tentamos construir um set que funcione para o momento em que estamos. Você se reduz a tentar criar uma experiência visceral para nós como intérpretes que se traduz para nosso público. Há uma química nessas músicas que funciona. Tivemos diferentes variações do set no início, e depois de um tempo, nós dissemos: ‘esta é a melhor combinação’. O set é bastante intenso.

Da última vez que vocês vieram ao Brasil, tiveram uma noite memorável abrindo para o The Who. Você se encontrou com eles?

Eu não os vi. Então, para mim, eu estou focado no que estou fazendo. Poderíamos ter tocado na frente de qualquer um. Quer dizer, foi legal. Alguns dos outros caras talvez tenham visto Townshend, mas eu estava realmente focado em tocar o nosso set. Gosto de usar muito o futebol como analogia. Assim que o apito soa, você está ligado. E, olha, se você erra durante um jogo, ou se machuca, ou faz um passe ruim, você é colocado no banco. Então, quando estou no palco, estou sempre de olho na bola. Sou totalmente selvagem. Não estou lá pensando em mais ninguém ou em mais nada.

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Ian Astbury e Billy Duffy, do The Cult, durante apresentação no Allianz Parque, abrindo para o The Who, em 2017 Foto: JF. Diorio/Estadão

Naquele show, lembro de você reclamando dos celulares na plateia. Por que isso tem sido tão irritante para você?

Isso destrói a experiência, não apenas para quem está assistindo. Você está colocando seu coração e alma na performance e as pessoas não estão prestando atenção. Elas nem sequer vão olhar para isso. Ou talvez publiquem no YouTube, façam stream, e o som e a imagem ficam uma merda. É sem sentido. Por que se dar ao trabalho de ir ao concerto? Isso quebra o encanto. Os concertos podem ser lugares realmente mágicos, quando as pessoas estão juntas, reunidas intimamente. Mas, ver tudo através de um celular é inautêntico. E no final das contas, você perde. E a vida passa muito rápido. Você consegue imaginar se nós tocássemos através de um celular? Tipo, se eu estivesse no palco me apresentando, e estivesse apenas olhando para o meu telefone. O público ficaria muito irritado. Os artistas não gostam de celulares. Alguns não se importam, como os DJs. Mas não há muito o que ver em um DJ, na verdade.

Gostaria de falar sobre ‘Love’, pois o álbum está celebrando 40 anos em 2025. Como era seu entendimento do amor naquela época, e como é agora?

Eu não consigo lembrar. Você está falando de 40 anos atrás. Eu não sei. Eu era uma pessoa completamente diferente 40 anos atrás, mas era o mesmo de algumas maneiras. Eu treino artes marciais, então se você leva alguns socos na cabeça algumas vezes, você aprende a se mover. O mesmo com a vida. As escolhas que você faz para chegar ao amor. É interessante, porque uma música como She Sells Sanctuary é como quando o sol sai. Dependemos de fotossíntese, oxigênio, água, para sobreviver, e esses tipos de elementos existem em uma música como She Sells Sanctuary. Toda vez que a tocamos, ela nunca parece velha. Algumas músicas nós tiramos do set porque elas parecem cansadas e não se encaixam no clima. Brother Wolf, Sister Moon se tornou uma muito importante para nós. Sinto que ela realmente fala com o momento. Também tocamos Rain, é como uma música de festa, pura energia, sexual, íntima. Então, eu acho que essas músicas têm uma intenção muito similar quando as performamos, por causa da forma como elas foram derivadas e ainda são relevantes.

Você sempre foi muito engajado com a causa indígena. É um assunto muito presente no seu trabalho. Teme o que Donald Trump possa fazer em relação aos povos indígenas no futuro próximo?

Você está brincando? Os povos indígenas têm uma história de mais de 500 anos. Por que com Donald Trump? Quer dizer, não sei nada sobre as intenções dele. Eu acho que o planeta é a preocupação principal. Em algum momento todos nós fomos povos indígenas. Nossas comunidades indígenas vivem em ambientes naturais não explorados e eles estão nos dizendo que os ambientes estão saturados de humanos. Mas olha, toda vez que você vai ao posto de gasolina, toda vez que compra algo embrulhado em plástico, você está contribuindo para essa invasão sobre o ambiente natural. Então, como você para isso? O consumismo? Temos que parar tudo agora. É muito mais fácil olhar para uma ideia existencial como uma pessoa como Donald Trump e dizer que ele está fazendo isso conosco. É muito conveniente. Mas, no final das contas, você tem que assumir responsabilidade por suas próprias ações. Como indivíduos, sejamos criativos e não nos prendamos à semântica da política, sempre culpando os políticos. Porque aí você está neste ciclo de reclamar, de não fazer nada.

Ian Astbury em apresentação da banda inglesa The Cult no Credicard Hall, em São Paulo, em 2006 Foto: Ernesto Rodrigues/Estadão

Como viajar o mundo desde o início da sua carreira te afetou?

Isso te abre, amplia suas experiências. Talvez você tenha algumas ideias sobre os seres humanos e então você viaja para algum lugar e tem uma experiência completamente diferente. Vou te contar um segredo: nem todo mundo fala inglês...

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E como foi visitar o Brasil durante todos esses anos?

Eu amo a cultura brasileira. Amo o fluxo do brasileiro, a maneira como se comunicam, de forma mais íntima, expressiva. Acho que ‘paixão’ é uma boa palavra para o brasileiro. Eu sei que existe pobreza, muita luta. Eu vi as favelas. Meu pai esteve nas favelas nos anos 50. Ele era um marinheiro mercante, estava na Marinha. Ele veio ao Brasil nos seus 20 anos. E foi explorar, sabe? Conheceu uma garota e em seguida estava em uma favela, bebendo, festejando. Antes disso ele era um refugiado de guerra. Foi bombardeado de sua casa, depois evacuado e nós emigramos. Sou filho de imigrantes. Então, eu [como artista] gosto de descartar essa ideia de que você está em algum tipo de relação privilegiada. Sinto que é por isso que temos uma relação especial com nosso público. Porque eu não os penso como público, mas sim como indivíduos.

Como um fã de The Doors, preciso te perguntar: você colocou muita pressão em si mesmo para honrar o legado de Jim Morrison quando se juntou ao projeto de Robbie Krieger e Ray Manzarek?

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Primeiro de tudo, levou 12 anos para acontecer. Eu amo os Doors. Eu li Ninguém Sai Vivo Daqui [de Danny Sugarman]. Ouvi a música deles. Mas eles não existiam. Fui ao túmulo de Morrison em Paris. Os Doors tinham um lugar mítico na minha imaginação. Então, conheci Danny, depois Ray e Robbie ficaram mais íntimos.

É verdade que te ofereceram o papel que foi para o Val Kilmer no filme do Oliver Stone?

Sim, assim como Michael Hutchence [vocalista do INXS]. Acho que de repente eles tiveram a visão de ter um cantor que se parecesse com Morrison. Mas Jim Morrison era Jim Morrison. Quero dizer, agora você tem Timothée Chalamet interpretando Bob Dylan. Eu vi Bob Dylan algumas vezes em diferentes encarnações. Olho para a versão de Bob Dylan pelo Chalamet e é tão estranho. Talvez seja melhor esperar alguns séculos se passarem. Porque todo mundo tem sua ideia de como uma pessoa é. Quando o filme foi feito com o Val Kilmer, Oliver Stone expulsou o Ray do set pois ele estava dizendo que Jim não era daquele jeito e não usava ácido o tempo todo. Mas então, anos depois Robbie e Ray falaram com outros cantores. Danny estava muito envolvido e disse que a única pessoa que poderia fazer isso era eu. E foi uma mudança de vida.

Por que?

Porque é uma banda icônica e Jim Morrison é divinizado. É um espaço muito pesado que exige muita coragem interior. Não havia espaço para imitação. Depois de cerca de 30 shows, uma vez que encontrei meu lugar, me senti muito confortável. Houve inveja mesquinha, ciúme e falta de inteligência emocional da mídia. Foram bastante cruéis no início, mas depois de um tempo eles meio que recuaram porque isso apenas continuou e fizemos 150 shows. Fiz tantos shows quanto Morrison. Também fui a lugares que eles nunca foram, como a Grécia. Jim era obcecado com mitologia grega e literatura. Nós conseguimos tocar em Atenas, o que foi profundo porque muitos dos elementos arquetípicos que Morrison canalizou emanam da cultura grega. Havia dezenas de milhares de pessoas, em um anfiteatro natural. Foi uma noite mágica. O público os via como esses deuses antigos e as pessoas tinham lágrimas escorrendo pelos rostos. Eu vi Kendrick Lamar, Travis Scott, Rihanna, Kanye West, Jay-Z, mas não chega nem perto.

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The Cult volta ao Brasil após 7 anos; show em São Paulo será em 23 de fevereiro no Vibra Foto: Divulgação/The Cult