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Sérgio Santos faz inventário da música negra em "Áfrico"

Por Agencia Estado
Atualização:

Câmara Cascudo usava a palavra "áfrico" para designar os negros africanos - não os afro-brasileiros, mas os nascidos na África. O compositor Sérgio Santos batizou de Áfrico seu novo disco, o terceiro da carreira, que acaba de ser lançado pela gravadora Biscoito Fino. É uma obra à qual se aplicaria o qualificativo de conceitual. Conta, em 14 músicas e mais quatro vinhetas, a história da presença negra na formação da música brasileira. Faz o inventário dessa presença. Acompanha-a desde os primeiros tempos, com a chegada dos primeiros escravos, esmiuça o processo de integração, de sincretismos (cultural, religioso), chega à síntese. Mas Áfrico não é uma tese acadêmica, uma análise semiológica, um tratado de antropologia. É mais um mergulho do compositor em si mesmo, na sua história de mulato mineiro, urbano, belo-horizontino, compositor também de choros e toadas, de sambas e modinhas. Não foi nem mesmo um projeto de caso pensado: Sérgio Santos percebeu que tinha várias composições - algumas com letras escritas por ele mesmo, um belo poeta - que faziam entrever o caminho. Procurou o letrista Paulo César Pinheiro - com quem tem mais de 180 parcerias, várias de sucesso, como Artigo de Luxo, gravado por Joyce, Fátima Guedes e outros intérpretes importantes, ou Aboio, que ele mesmo cantou. Além das duas cantoras, Sérgio Santos teve composições conhecidas nas vozes de, por exemplo, Leila Pinheiro, Olivia Hime, Milton Nascimento. Foi ao lado de Milton que Sérgio Santos começou vida profissional, em 1982, participando do espetáculo Missa dos Quilombos. Venceu festivais importantes, como o Som das Águas ou o Festival Carrefour, nos anos 80, além de outros do circuito dos interiores. Participou da montagem da Sinfonia de São Sebastião do Rio de Janeiro, de Francis Hime, e do musical Fogueira do Divino, de Tavinho Moura e Fernando Brant, ambos em 2000. Lançou, anteriormente, os discos-solo Aboio, em 1995, e Mulato, em 1998. Foi finalista da edição de compositores do Prêmio Visa, da Rádio Eldorado, há dois anos. É um dos artistas mais importantes da nova cena da música brasileira - e se pouco toca em rádio e quase nunca em televisão, é porque música boa praticamente não tem vez nesses veículos, triste questão muito bem sabida. Linguagens - Os músicos que participam de Áfrico são alguns dos melhores do País e representam linguagens diversas da música popular, do filtro eventualmente jazzístico dos sopros e Teco Cardoso e Proveta ao piano pós-egbertiano do gênio André Mehmari, do contrabaixo - acústico, naturalmente - de Rodolfo Stroeter (produtor do CD) à percussão carioca de Robertinho Silva e à bateria de samba e bossa nova do baiano Tutty Moreno, passando pelo pandeiro de Marcos Suzano, pela percussão temperada e pós-moderna da oficina instrumental mineira Uakti, e contando com as vozes, em participações especiais, de Olivia Hime, Joyce e Lenine. A convergência de tão diferentes personalidades e inteligências musicais dá ao disco características muito especiais - até porque todos se guiam pela linha-mestra estabelecida por Sérgio Santos. E o instrumento que mantém a pulsação e a tensão rítmicas não é a percussão, mas o violão de Sérgio. "Nós, mineiros, somos filhos de Toninho Horta, sobrinhos de Tavinho Moura, primos de Milton Nascimento", diz o compositor. "Eu tenho a facilidade natural de dominar a harmonia que têm os que se formaram e convivem com essa música", prossegue. "Por outro lado, sempre gostei de burilar as melodias, procurar caminhos novos", conta, ainda. "Mas harmonia e melodia são dois dos elementos formadores da música; há um terceiro, que é o ritmo. Depois de ter gravado o CD Mulato, eu pensei que precisava pôr a questão rítmica no centro de minha composição, sem abrir mão do cuidado com os outros dois elementos", completa. Levado por essa preocupação, compôs Nossa Cor (que está no disco e tem os vocais divididos com Lenine). E pensou: "Pôxa, isso é crioulo." Compôs outras, levou-as para o letrista Paulo César Pinheiro e em cerca de dois meses o conjunto estava pronto. O subtítulo do disco é Quando o Brasil Resolveu Cantar. O autor poderia acrescentar: porque o Brasil não parou de cantar. É o que sua arte faz sentir. Sintonia - Entre muitas perguntas (que são também constatações), em seu novo disco, Sérgio Santos faz estas: quem fez o brasileiro bater o tambor do jongo, de onde sai quem batuca com o pé o terno-de-Congo, que faz o povo dançar tambor-de-mina, bumba-meu-boi, o bambaquerê, o samba, o ijexá, quem pôs o lamento no canto da lavadeira, fez o baticum, candomblé, capoeira, trouxe o maracatu, o maculelê, mineiro-pau, coco, caxambu, banguelê, a xiba, o lundu, o cateretê - quem fez a dor se transformar em som de carnaval? São palavras do parceiro Paulo César Pinheiro para a música Áfrico, que dá nome ao disco e encerra seu conceito. Com tais questões - e algumas outras peculiaridades -, Áfrico pode soar como uma versão para o século 21 da série basilar dos Afro-Sambas compostos por Baden Powell e Vinícius de Morais, nos anos 60. É diferente daquela série, no entanto, pois Baden e Vinícius haviam equacionado a questão da presença negra na música popular e Sérgio Santos e Paulinho Pinheiro partem desse estabelecimento. Áfrico é também mais abrangente. É mais direto com o sincretismo e corajoso com a miscigenação (o filho do senhor com a escrava e da senhora com o escravo são amigos: "´Nho tem gana no gongolô da lalê/ E na mucufa quer capiangar atrás do bangüê/ ´Nhora tem fogo no adô de Alabê/ E rola com nego-Angola no solo do massapê"). Naturalmente, esse tipo de linguagem exige um glossário, que vai como anotação de pé de página no belo libreto encartado na embalagem do CD. Mais importante, Áfrico não é canto de banzo - a saudade ancestral do negro traficado como escravo: "Me orgulharei/ Sempre, oh Mãe-África!/ Negro, negro/ Não sou mais de lá./ Brasil jé é meu gongá." É mais o canto da utopia multirracial brasileira, que não ignora suas falhas, mas a deseja. E a propõe, ao fazer soar em harmonia perfeita, por exemplo, o batuque secular dos atabaques à percussão sobre material sintético do Uakti. Sérgio Santos, responsável pelo conceito - musical, poético, instrumental - de Áfrico, realizou um dos discos mais belos e importantes de nossa fonografia.

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