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'A Noiva', de Tréfaut, tira o véu na 46ª Mostra

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

RODRIGO FONSECA Um ano depois dos elogios colhidos por seu arrebatador documentário "Paraíso" (2021), o diretor Sérgio Tréfaut volta a arrebatar olhares na seara dos grandes festivais do Brasil desafiando as convenções dos registros narrativos pelos quais se exercita, destacando-se agora com "A Noiva", exibido pela primeira vez na seção Horizontes, de Veneza. A 46ª Mostra de São Paulo foi sua vitrine de escolha para iniciar a carreira da produção no país. Na trama, uma jovem europeia, Bárbara, rebatizada Umm (vivida por Joana Bernardo), foge de casa para se casar com um guerrilheiro do Daesh (o Estado Islâmico). Torna-se uma das chamadas "Noivas da Jihad". Três anos mais tarde, a sua vida mudou dramaticamente. Vive num campo de prisioneiros no Iraque, onde, mãe de dois filhos, está grávida outra vez. Mas, agora é uma mãe viúva, de 20 anos, e será brevemente julgada pelos tribunais iraquianos. O drama abre uma discussão sobre a lavagem cerebral, imigração ao reverso e afirmação de identidade.

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Qual é a natureza documental e qual é a natureza fabular de uma experiência narrativa que fala de religião, que fala do terror (como ato político) e que aborda a condição feminina? Sérgio Tréfaut: "A Noiva" foi escrito cruzando histórias reais de jovens europeias, viúvas de jihadistas. Eu fiz muita pesquisa sobre o assunto e privilegiei três casos. Até pedi à atriz principal, Joana Bernardo, para estudar esses casos de modo a criar a personagem. Os diálogos de duas sequências (o encontro com o general iraquiano e a cena no tribunal) são transcritos, adaptados de imagens reais, exibidas em reportagens francesas. Por outro lado, as locações são verdadeiras: o centro histórico de Mossul destruído, os campos, as prisões, o próprio tribunal. Finalmente, toda a figuração feminina, embora não inclua nenhuma mulher do Estado Islâmico, foi escolhida em campos de refugiados sírios. As refugiadas conhecem intimamente aquela realidade, desde a forma de se vestir até a forma de se sentar no chão. As crianças do filme são filhas dessas figurantes. Quanto ao ficcional, ou à natureza fabular, há sobretudo a minha maneira de contar a história, de filmar, de enquadrar, de montar, de construir a narrativa. A escolha dos atores define formas de fantasia. Parecendo que não, existe muito trabalho de arte e de guarda-roupa. Há escolhas livres também. A forma "limpa" como se processa a execução de condenados, por exemplo. As visitas de pais europeus, ou pelo menos as suas tentativas, são conhecidas, contadas pelos media. Mas não adaptei nenhum relato. Há ainda situações de meio termo: a prisão não é uma prisão em funcionamento, é uma prisão abandonada. O campo onde filmamos não é um campo de prisioneiros, mas um campo e refugiados, com tendas e grades iguais às do campo de prisioneiros que visitei.Que instância de solidão você vislumbra na sua protagonista, oprimida por forças política, pela maternidade e pela própria fé? Sérgio Tréfaut: Aquilo que procurei mostrar com o mínimo de diálogos - pois eu odeio filmes explicativos - foi como esta menina de vinte anos está dividida entre dois universos: o universo ocidental do qual ela fugiu, mas que faz ainda parte dela (jeans rasgados; maquiagem; referências musicais marcantes, como Amy Winehouse), e o universo do Islã radical que ela escolheu quando fugiu de casa. Isto tem algo de solitário. É preciso muita determinação para ter feito essa escolha de rotura, mas não se consegue apagar o passado e aquilo que nos constitui tão facilmente. A maternidade de que você fala é muito marcante no filme. Viver em tendas ou em celas prisionais onde o choro das crianças é, por vezes, ensurdecedor, parece um destino de tortura para uma jovem adolescente.

O diretor luso-brasileiro Foto: Estadão

Qual é a identidade portuguesa que norteia uma abordagem tão universal da condição humana como "A Noiva"? Sérgio Tréfaut: Se a pergunta diz respeito à personagem principal, luso-francesa, há uma identidade comum europeia de centenas ou milhares de adolescentes, muitas vezes de famílias não muçulmanas, que deixaram as suas casas para ir viver com jihadistas no Daesh. Foram convertidas. Em Portugal, existem talvez duas dezenas de casos. Na França, há muito mais. Sucede que, contrariamente ao Brasil, toda a Europa viveu essa história de forma intensa, com reportagens diárias nos jornais e nas televisões. Com jihadistas que se transformavam quase em estrelas de novela. É um assunto muito atual em Portugal. p.s.: A boa desta terça-feira à tarde na Mostra é "Noites Alienígenas", de Sérgio de Carvalho. Enfim chega às telas do Sudeste o longa do Acre que ganhou o Kikito de Melhor Filme no Festival de Gramado Na Amazônia urbana, onde a ancestralidade dos povos tradicionais resiste frente à contemporaneidade que parece negar a floresta, acompanhamos as vidas de três jovens amigos de infância, na periferia de Rio Branco, cuja rotina se entrelaça, esbarrando numa tragédia comum, com ecos do crime organizado de outras metrópoles. Destaque para Chico Diaz no elenco. Sua projeção será no Cine Marquise, sala 1, às 14h.

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