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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Ao verme, com afeto: sobre epígrafes e dedicatórias de livros

Foi Machado de Assis quem dedicou um romance póstumo ao mais esdrúxulo dos destinatários: um verme roedor de cadáver

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Foto do author Sérgio Augusto
Atualização:

Sei de gente que compra livro pela capa, mas nem sequer as olho de soslaio por entendê-las perfeitamente, pois já fiz justo o contrário. Também compreendo as pessoas que se deixam seduzir pelas primeiras linhas de um romance ou ensaio, embora não tenha sido por isso que lemos O Estrangeiro, Anna Kariênina, Lolita, e nos forçamos a ler Moby Dick até o fim.

Já as pessoas que vão direto às últimas páginas menos para saber de antemão se o mordomo é o assassino do que para certificar-se de que tudo afinal acaba bem, essas me espantam ainda mais do que aquelas que, antes de se decidir pela compra, conferem minuciosamente as dedicatórias e os agradecimentos do autor – como se ambos abrigassem revelações por ventura ocultas nas epígrafes a seguir. Dedicatórias e agradecimentos por vezes se fundem e confundem. As platitudes predominam, mas não são tão raros os exemplos que aspiram a esferas mais elevadas, quase sempre com alguma dose de humor e cinismo.

Imagem que fez parte da 'Ocupação Machado de Assis', no Itaú Cultural Foto: Academia Brasileira de Letras

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O poeta T. S. Eliot dedicou sua obra máxima, A Terra Desolada, ao colega Ezra Pound, para ele, “il miglior fabbro”, mas a maioria de nós, triviais criaturas, costumamos fazer agradecimentos e dedicatórias a familiares, amigos, a menores mestres inspiradores (“sem os quais, blablablá”), quando não, cabotinamente, ao próprio editor do livro e ao designer da capa. Até remédios antidepressivos e anfetaminas já vi brindados com as blandícias de praxe. Certas gozações resultam melhores que os próprios livros. Um ficcionista gringo cujo nome não guardei se atreveu a agradecer, no frontispício, a própria esposa, pelo apoio ao tomo por ele escrito sobre as mulheres com as quais transara no passado. O poeta e.e.cummings listou as 14 editoras que haviam recusado seus originais, por sinal só materializados em livro com a ajuda financeira da mãe.

Louise Erdrich publicou há dois anos um romance em parte dedicado ao dicionário com que fora premiada num concurso de ensaios – na escola primária. Perfeito. Se Pound era (ou foi) “il miglior fabbro”, por que não considerar o dicionário “la migliore fabbrica” de palavras?

Entre os saudados e agradecidos mais esdrúxulos com os quais cruzei em minhas leituras, pelo menos dois merecem aqui especial destaque: o desconhecido que gritou com o autor num supermercado, quando ele tinha apenas 8 anos de idade, e “todos aqueles que já experimentaram a dor de uma depilação a cera quente”, que uma escritora nova-iorquina (não, não foi Nora Ephron) decidiu homenagear, não sei se antes ou depois de aderir, sabiamente, à depilação a laser.

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Nossos autores se amarram mais em epígrafes, e, no caso particular de Machado de Assis, em prólogos e advertências, velharias há muito sem clientela. De todo modo, foi Machado quem, através de Brás Cubas, dedicou um romance póstumo ao mais esdrúxulo dos destinatários: um verme roedor de cadáver.

Opinião por Sérgio Augusto

É jornalista, escritor e autor de 'Esse Mundo é um Pandeiro', entre outros

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