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Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião | Mama Rose de Audra McDonald faz o público lembrar de todas as mães dominadoras que conhecemos

Atriz vencedora do Tony fez sua estreia em ‘Gypsy’ em dezembro; musical clássico remete às mães de astros infantis que, de um modo ou de outro, sabotavam a carreira das crianças

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Foto do author Sérgio Martins

Mama Rose é um dos personagens mais conhecidos da história dos musicais. Primeiro porque trata-se de um tipo que até hoje assombra o showbiz: a mãe dominadora, que acredita que seu rebento seja a estrela maior do entretenimento. Rose, aliás, realmente existiu: trata-se de Rose Thompson Hovic, mãe da atriz e dançarina June Hovic e da vedete e escritora Gypsy Rose Lee – e foi eternizada em Gypsy, musical de 1959 que traz músicas de Jule Styne, letras de Stephen Sondheim e libreto de Arthur Laurents.

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Segundo porque Mama Rose é um desafio que toda atriz de talento decide encarar pelo menos uma vez em sua vida – de Ethel Merman, uma das divas da Broadway do século 20, a Bernadette Peters, Bette Midler, Patti Lupone e Totia Meirelles, que a viveu numa montagem de 2010 da dupla Charles Moeller e Claudio Botelho.

Em dezembro do ano passado, a cantora e atriz Audra McDonald assumiu a responsabilidade de se tornar a primeira afro-americana a interpretar esse controverso personagem. Audra, para quem não conhece, é uma força da natureza, como pude comprovar ao vivo em duas ocasiões.

Eu a assisti em 2011, na montagem moderna de Porgy & Bess, ópera do compositor George Gershwin, onde fez par com o talentoso cantor e ator Norm Lewis (Audra foi Bess, claro, e ali usou lindamente sua voz de soprano). Três anos depois, “recebeu” o espírito de Billie Holiday em Lady Day at Emerson’s Bar and Grill, recriação do que teria sido o último show da carreira da lenda do jazz. Nada, contudo, prepara o público para a quantidade de emoções que ela desperta em Gypsy.

Rose, em geral, pede uma interpretação intensa, muitas vezes exagerada de quem a leva para os palcos. Mas Audra optou pela delicadeza e pelo humor, o que nos leva perguntar se Rose realmente era a lambisgoia a qual nos acostumamos a ver em outras versões. E se suas intérpretes anteriores faziam uso do belting (uma técnica de canto típica do teatro musical, onde se atingem tons muito altos), Audra lança mão de sua experiência como cantora lírica – o que faz de Everything’s Coming up Roses e Together, Wherever We Go, dois standards do espetáculo, uma experiência inédita. Despida dos exageros habituais de interpretação do personagem, a Mama de Audra McDonald nos faz acreditar que todo mundo, com maior ou menor impacto, teve uma Mama Rose em sua vida.

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Muitas das pessoas presentes no Teatro Majestic, em Nova York, onde Gypsy está sendo encenado, se lembraram dos embates com suas próprias mães – em geral, nos momentos em que elas duvidaram de suas escolhas profissionais ou tomaram para si o sucesso de seus próprios filhos. Mama Rose, porém, me fez recordar das mães de astros infantis que, de um modo ou de outro, sabotavam a carreira das crianças.

Recentemente, presenciei uma experiência dessas: uma dupla sertaneja feminina, formada por filhas de um músico da noite que nunca saiu desse circuito. Elas seriam o passaporte para a fama que ele não alcançou. A boa conversa inicial descambou para pedidos de músicas que “atendiam às exigências do mercado” e contas nababescas de hotel sem nunca sequer terem finalizado uma canção sequer. O projeto, claro, foi abortado.

O caso dessas duas intérpretes é mais conhecido como projeção. Ou seja, os pais projetam nos filhos tudo aquilo que gostariam de ser e por algum motivo não conseguiram. É muito comum se deparar com esses casos em duplas infanto juvenis – sertanejas e pop –, onde os progenitores até se incumbem de dar entrevistas.

Outro tipo comum de Mama Rose no showbiz brasileiro é aquela que se envolve na produção, discussão de contratos e também nas entrevistas, não possuindo o mínimo conhecimento para essas atividades. Muitas, aliás, acabam prejudicando companheiros de grupo dos filhos para garantir uma parte maior do lucro para seus pimpolhos.

Audra McDonald como Mama Rose e Joy Woods como Louise no musical 'Gypsy', em cartaz na Broadway, em Nova York. Foto: Julieta Cervantes/Broadway/Divulgação

Por fim, há aquela que larga tudo para servir apenas à carreira dos filhos. Uma posição que as deixa sem saída para os momentos em que a fama do astro mirim se esvai – o que, para mim, foi o mais comum: o pai se tornava empresário, a mãe dirigia o fã clube e o irmão mais velho ia para a estrada. E qualquer manifestação do cantor ou cantora em ir de encontro ao que era proposto pela gravadora saía abafada pelos pais que tinham medo de perder o status conquistado.

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Eu raramente me deparei com Mamas e Papas Rose que conseguiram manter seus filhos em posição de destaque. Ou havia um embate natural – e esperado – da criatura em relação ao seu criador ou ambos sucumbiam aos perigos da fama. Pelo menos no caso dessa versão de Gypsy, a personagem principal se torna uma artista de sucesso e se reconcilia com a mãe. Essa, por sua vez, ousa ainda a dar palpites nos próximos movimentos profissionais da filha. Mas Audra McDonald torna tudo tão leve que até o público espera pelas novas sugestões de Mama Rose. Quisera eu ter conhecido uma Mama Rose dessas na minha experiência no mundo do showbiz.

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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