PUBLICIDADE

Publicidade

Ghosn chega ao Líbano em momento de ‘tempestade perfeita’ da economia do país

Executivo tem sido visto como uma possível tábua de salvação em um momento de problemas financeiros e de fornecimento de energia; Ghosn nega intenção de assumir cargo público

Foto do author Fernando Scheller
Por Fernando Scheller
Atualização:

BEIRUTE - Circulando pelas ruas de Beirute, em meio ao trânsito caótico e à chuva insistente que caiu sobre a cidade ao longo da semana, foi possível perceber pequenas aglomerações de pessoas em volta de caixas eletrônicos de bancos. É um sinal de uma crise financeira que já causou violência e protestos, levando o governo a construir muros de concreto e ampliar a vigilância ao redor de edifícios oficiais, como o do Parlamento.

Foi nesse momento de “tempestade perfeita” para a economia do país que Carlos Ghosn - o ex-presidente da aliança Renault-Nissan - chegou ao país após fugir do Japão, onde é considerado foragido da Justiça. Os cidadãos libaneses enfrentam controles de capital que impedem os saques de seu saldo no banco. É o tipo de crise que põe uma economia em xeque - e faz lembrar os problemas de liquidez enfrentados pela Grécia em 2015. 

Em Beirute, militares fazem vigilância em pontos de checagem nos quais quem entra e sai precisa explicar o que está fazendo. Foto: Fernando Scheller/Estadão

PUBLICIDADE

Não é para menos que Ghosn, com sua fama de bom administrador, está sendo visto por alguns políticos libaneses como uma espécie de tábua de salvação para a crise administrativa do país, que sofre com falta de liquidez dos bancos para honrar os saques dos cidadãos. 

O recém-formado gabinete de governo não é considerado estável. Hassan Diab assumiu o cargo de primeiro-ministro em 19 de dezembro, depois de seu antecessor ter ficado menos de dez meses no posto. O governo do presidente Michel Aoun enfrenta diversas acusações de corrupção.

Sem liquidez

O problema agora sentido no dia a dia da população reflete a “bola de neve” de uma economia que, desde o fim da guerra civil, entre 1975 e 1990, se baseia em empréstimos internacionais. Para atrair moeda forte, o governo libanês prometeu juros altos sobre depósitos em dólar. Na hora de pagá-los, vem tomando emprestado dos cidadãos. Diretamente de suas contas.

Oficialmente, o governo ainda mantém o câmbio estável em 1,5 mil libras libanesas para cada dólar. Esse é o valor pago em hotéis e aeroportos, por exemplo. Nas casas de câmbio, com a população atrás de dólares para se proteger da desvalorização extraoficial da moeda libanesa, a cotação chega a 2,4 mil libras para cada dólar - uma diferença de 60%.

Publicidade

Maioria das casas de câmbio de Beirute apenas troca dólares por moeda local, não o contrário Foto: Fernando Scheller/Estadão

Mesmo quem está disposto a abrir mão de muita moeda local para conseguir alguns dólares, a situação não está fácil. O Estado foi a algumas casas de câmbio. A maioria delas apenas troca dólares por moeda local, mas não faz o contrário. Até hoje, a economia do Líbano funciona em um sistema de câmbio híbrido, em que o dólar é altamente aceito no dia a dia - por isso, as pessoas faziam seus depósitos nos bancos na moeda americana.

Restrições e protestos

Os enormes protestos que tomaram conta das ruas libanesas, em setembro e outubro de 2019, estão relacionados às restrições ao capital, que hoje permitem que cada pessoa saque pouco mais de US$ 100 por semana. Entre a população de mais alta renda, cada retirada em dólar é motivo de comemoração. “Hoje, por sorte, consegui sacar US$ 500 das minhas contas”, disse um morador do bairro de Achrafieh, em Beirute, ao Estado.

Governo ergueu barreiras em pontos estratégicos de Beirute para evitar protestos. Foto: Fernando Scheller/Estadão

“Em algum momento, essa injeção de capital (estrangeiro) tinha de acabar - e esse ponto veio no fim de 2019, depois de uma série de choques negativos”, explicou o economista libanês Ishac Diwan, em artigo publicado no site Project Sindicate, especializado em análises político-econômicas. 

PUBLICIDADE

Um dos principais especialistas no Oriente Médio, Diwan é professor da École Normale Supérieure, de Paris. Segundo ele, quase sem indústrias e com importações anuais que equivalem a 400% do PIB, o Líbano vive hoje o que parece “a construção de uma grande depressão”. O país é uma das economias mais frágeis do Oriente Médio. Tem 6 milhões de habitantes, incluindo 1 milhão de refugiados sírios que chegaram nos últimos anos.

Infraestrutura

A questão econômica se soma a problemas que foram ignorados durante muito tempo, principalmente na infraestrutura. Nos seis dias que a reportagem do Estado permaneceu no Líbano foi comum que a cidade sofrer quatro ou cinco “apagões” por dia. 

Publicidade

Logo em seguida, pelo menos nos bairros de maior poder aquisitivo, um sistema de geradores costuma restabelecer o fornecimento. No entanto, no período de um minuto que geralmente esse processo leva, pessoas ficam presas em elevadores dos edifícios.

Ligações irregulares de energia são vistas do lado externo de prédios até em bairros nobres de Beirute. Foto: Fernando Scheller/Estadão

Essa “garantia” dos geradores, no entanto, não sai barato. Quem pode paga duas contas de luz - a do sistema que deveria dar conta do consumo e a dos geradores. Quem não pode, fica no escuro. Mesmo em bairros chiques, como em Achrafieh, onde agora reside Carlos Ghosn, é possível ver “gatos” fora dos edifícios. São as ligações improvisadas feitas para fazer a energia dos geradores chegar até as casas.

Na sexta-feira, 10, um grupo de pessoas invadiu o edifício da companhia de eletricidade na cidade história de Balbeque, em protesto contra o agravamento do racionamento de energia na região.

A tensão com a erupção de eventuais protestos é constante. Na área mais nobre de Beirute, onde ficam o Parlamento, sedes de bancos e lojas de grifes de luxo, a tensão é palpável. A reportagem circulou pela área nesta sexta-feira. Militares armados com metralhadoras guardam pontos de checagem nos quais quem entra e sai precisa explicar o que está fazendo.

Em uma praça próxima ao Parlamento, alguns grupos de manifestantes ainda acampam, mas a chance de conseguirem chegar perto de edifícios oficiais é pequena diante da constante vigilância ao redor deles. Isso prejudicou o comércio da região. Diante da dificuldade de circulação na área, algumas lojas ficaram isoladas, depois das barricadas, e agora há muitos pontos comerciais vagos.

Ghosn no comando?

Carlos Ghosn fala a jornalistas em Beirute. Foto: Mohamed Azakir/Estadão - 8/1/2020

Desde que Ghosn desembarcou em Beirute no dia 30 de dezembro, depois de uma fuga ainda não completamente explicada que incluiu o uso de jatos particulares, uma escala na Turquia e um quase inexplicável “furo” da polícia japonesa, fala-se na TV libanesa da possibilidade de o ex-titã da indústria automotiva ajudar a “dar um jeito” no país.

Publicidade

Na quinta-feira, 9, pelo Twitter, o líder do partido libanês PSP, Walid Jumblatt, sugeriu que Carlos Ghosn seja nomeado ministro de Energia do Líbano. “Eu proponho sua nomeação para substituir a atual gangue que causou um déficit massivo e rejeita qualquer ideia de reforma. Carlos Ghosn construiu um império - e nós bem que poderíamos nos beneficiar disso.”

O ex-presidente da aliança Renault-Nissan, disse nesta quarta-feira, 8, na primeira entrevista que concedeu sobre o caso, que poderá auxiliar o governo do Líbano com sua experiência corporativa, mas sem assumir cargo oficial. “Não tenho nenhuma ambição política, mas, se for convidado a aplicar minha experiência de alguma forma, estou pronto.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.