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Crise da 123milhas: como apostas erradas levaram empresa de viagens à recuperação judicial

Agência vendia serviços esperando queda nos preços das passagens, o que não se concretizou

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Por Elisa Calmon

São Paulo - A crise financeira da 123milhas, que levou a empresa à recuperação judicial, tem levantado questionamentos sobre a estratégia da empresa, com destaque para o Promo 123. O programa previa a venda de passagens aéreas e de pacotes de viagem com datas flexíveis, com emissão posterior do bilhete, sem data predefinida. Para especialistas, o modelo mostrou-se uma estratégia arriscada, que não entregou os resultados previstos.

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“Eles vendiam pacotes achando que os preços vistos no passado iriam se repetir, mas o modelo de negócios falhou porque o mercado mudou”, avalia o sócio do escritório de advocacia PGLaw e professor da USP, Carlos Portugal Gouvêa. “Os dados que parecem dar resposta mágica não se confirmaram porque existem mudanças de cenário que a inteligência artificial não consegue capturar.”

No pedido de recuperação judicial, a agência digital de viagens reconhece que os resultados previstos mediante estudos preparatórios para o Programa Promo123 não foram atingidos. Não se confirmou, por exemplo, a redução do preço das passagens com a expectativa de aumento da oferta de voos pelas companhias aéreas, especialmente após a pandemia.

Para especialista, com mercado de turismo voltando a crescer, empresas aéreas não precisam fazer promoções e queimar caixa Foto: Marcelo Chello/Estadão

Na verdade, aconteceu o contrário, com empresas adotando uma postura mais conservadora de controle de oferta. As aéreas saíram da crise sanitária com o “pé no chão”, segundo o coordenador do Startup Lab da ESPM e professor do curso de Administração da ESPM, Fernando Domingues. “As companhias não têm motivo para fazer promoções e queimar caixa num momento em que o mercado de turismo voltou a crescer e a retomada orgânica tem sido suficiente para a recuperação”, explica.

A 123milhas aponta ainda, no pedido de recuperação, que acreditava que, para cada voo vendido, o cliente também adquiriria outros produtos atrelados à viagem (como reservas de hospedagem, passeios etc.). Mas isso acabou não ocorrendo na prática.

Rodrigo Gallegos, sócio da consultoria RGF e especialista em reestruturação empresarial, considera que a 123milhas fez uma aposta arriscada ao vender os serviços esperando um movimento de um mercado de difícil previsão, indicando problemas de gestão riscos e de planejamento financeiro.

Crise de confiança

A 123milhas precisa agora continuar ativa para que o processo de recuperação judicial seja bem-sucedido, disse uma fonte com conhecimento do assunto ouvida pelo Estadão/Broadcast. “A companhia não tem ativos e a única chance de o processo dar certo é dar uma parada, se reinventar e reconquistar a confiança de seus fornecedores e consumidores”, afirmou.

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Contudo, a plataforma passa por uma grave crise de confiança, mesmo em relação aos outros produtos oferecidos, o que pode dificultar a recuperação, de acordo com o responsável pelas áreas de Contencioso, Arbitragem e Insolvência do escritório Marcos Martins Advogados, Leonardo Ribeiro Dias. “A reestruturação precisa ir além do aspecto financeiro. A companhia vai precisar repensar o modelo de negócios e a marca”, afirma, destacando o alto índice de judicialização do caso.

A lista de credores da 123milhas é composta por quase 700 mil nomes, sendo a maior parte pessoas físicas, segundo cálculos iniciais aproximados da decisão da juíza que aprovou o pedido de recuperação judicial. Há 16,6 mil processos de valores variados movidos por pessoas físicas contra a empresa que somam R$ 231,8 milhões. O maior deles tem valor de R$ 1,2 milhão. No total, as dívidas da empresa chegam a R$ 2,3 bilhões.

“Com o volume de credores, ações e desequilíbrio que a quebra de confiança causou é preciso racionalizar as ações, uma vez que a pulverização e a individualização pode não corresponder à satisfação do crédito e o sentimento de frustração e injustiça”, escreveu a juíza Cláudia Helena Batista, da 1ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte, na decisão de acatar a recuperação judicial.

Em meio a questionamentos sobre o funcionamento da operação, a CPI das Pirâmides Financeiras da Câmara dos Deputados pediu, na quarta-feira, 30, a condução coercitiva dos sócios da 123milhas para que prestem esclarecimentos à comissão. A medida foi tomada após Ramiro Julio Soares Madureira e Augusto Júlio Soares Madureira não atenderem à convocação do colegiado pela segunda vez. Em ofício para justificar a ausência, a defesa dos sócios afirmou que os executivos não puderam comparecer por causa de um conflito de agenda.

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Fontes ouvidas em condição de anonimato pela reportagem enxergam indícios de que a crise pode ter sido causada por um esquema de pirâmide. Mas, para isso se configurar, precisaria ser comprovado que a 123milhas, de forma deliberada e de má fé, pagava por passagens de clientes anteriores com a receita gerada por novos consumidores.

“A questão é se cometeram um erro estratégico no produto ou se fizeram de forma proposital a oferta de produtos que sabiam que não entregariam enquanto tentavam encontrar alguma saída para a situação”, afirma um especialista do setor. Ele diz ainda que, caso a empresa comprove que foi uma situação de mercado, uma aposta muito errada, ainda deve ser penalizada, mas de forma mais leve, porque não configuraria fraude.

Procurada pela reportagem, a 123milhas não se pronunciou. Em nota divulgada à imprensa após o pedido de recuperação judicial, a empresa afirmou que a medida deve permitir a aceleração de soluções com credores para, progressivamente, reequilibrar a sua situação financeira. Disse ainda que o objetivo é assegurar o cumprimento dos compromissos assumidos com clientes, ex-colaboradores e fornecedores e que permanece fornecendo dados, informações e esclarecimentos às autoridades competentes sempre que solicitados. / Colaboraram Cynthia Decloedt e Marcela Vilar

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