BRASÍLIA - Sem avanços da reforma tributária no Congresso Nacional, o Rio Grande do Sul saiu na frente e tirou do papel a proposta de devolver à população de baixa renda parte do imposto estadual (ICMS) que as pessoas pagam quando adquirem mercadorias e serviços. O governo gaúcho vai devolver a cada família R$ 100 por trimestre, beneficiando 432.194 famílias – cerca de 1,2 milhão de pessoas. No ano, a devolução chegará a pelo menos R$ 400.
O primeiro pagamento foi feito em meados de dezembro por meio da distribuição de um cartão de débito do Banrisul que pode ser usado na compra direta de produtos em estabelecimentos comerciais.
É a primeira vez que esse tipo de instrumento de devolução do imposto para as famílias de baixa renda é adotado no Brasil. A medida é vista pelos especialistas como um teste da reforma tributária na direção de um modelo tributário mais moderno, eficiente e com menor regressividade – termo usado pelos tributaristas para tratar da situação em que os mais pobres acabam pagando mais impostos proporcionalmente a sua renda do que as pessoas mais ricas.
No caso do Brasil, essa regressividade existe mesmo com inúmeras desonerações vigentes na legislação, como as que beneficiam os produtos da cesta básica, o que inclui não só alimentos consumidos pelos mais pobres, mas itens como carnes nobres e peixes, como salmão.
A ideia do governo gaúcho é mudar esse quadro a partir de uma política de desoneração focalizada, em que benefício é concedido à pessoa e não ao produto. A expectativa é a de que esse “laboratório” da vida real comprove a eficácia de modelo dando força para a aprovação da proposta de reforma tributária em tramitação no Congresso, que unifica os tributos do governo federal, Estados e municípios e prevê um mecanismo de devolução de imposto para a baixa renda.
Secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul, Marco Aurélio Cardoso explica que esse é um gasto tributário mais focado, que torna a tributação mais justa, e que faz mais sentido do que as desonerações gerais. Na definição do valor do benefício, foram utilizados os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE para calcular a carga de ICMS que está embutida em cada faixa de renda no Rio Grande do Sul. “Os R$ 400 parecem pouco, mas o que vimos nas entregas é que faz muita diferença”, diz Cardoso.
Segundo ele, a partir do segundo semestre de 2022, além do valor fixo de R$ 100 por trimestre, será introduzida uma parcela variável de devolução, de acordo com o consumo do chefe familiar do registrado em notas fiscais. Nessa modalidade, o portador do cartão deve colocar CPF na nota para pontuar mais. Uma forma de estímulo à emissão da nota fiscal, prática que é pouco comum na população de baixa renda.
Efeito cascata
Para o tributarista Eduardo Fleury, o teste que está sendo feito no Rio Grande do Sul pode estimular um efeito cascata como ocorreu com os programas de incentivo à emissão de nota fiscal pelos brasileiros, hoje espalhados por todo o País, e até mesmo a isenção da tarifa de ônibus para idosos. O Estado de Rondônia já está fazendo estudos para ver a viabilidade de seguir os gaúchos.
“É um passo muito importante e que quebra a resistência e que vai se espalhando”, diz ele, que trabalhou como consultor para o relatório da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110 que tramita no Senado. Fleury foi um dos primeiros a estudar o impacto da desoneração da cesta básica. “É uma renúncia que vai para quem teoricamente não precisa”, ressalta ele, lembrando que a desoneração da cesta básica custa quase R$ 20 bilhões de perda de receita para o governo federal.
Outro especialista, o economista Sérgio Gobetti diz que a ideia de devolver o ICMS diretamente às pessoas de menor renda surgiu da constatação, por inúmeros estudos internacionais e também nacionais, de que os mecanismos tradicionais de desoneração focados em produtos específicos, são pouco eficientes do ponto de vista distributivo.
Gobetti, que participou dos estudos para a implementação no modelo gaúcho, destaca que a menor carga tributária de alguns bens essenciais acaba sendo anulada pela maior tributação de outros igualmente essenciais para a população de baixa renda (como ocorre com a alta tributação da energia e combustíveis).
Pouco impacto
No caso dos alimentos da cesta básica, por exemplo, o cruzamento dos dados da POF com as cargas tributárias vigentes na legislação brasileira (de ICMS ou PIS/Cofins) indica que, no Brasil, em média, apenas 15% das desonerações chegam ao quarto mais pobre da população, enquanto cerca de 30% beneficiam os 20% mais ricos.
“É muito melhor ter uma carga tributária próxima da uniformidade, como previsto pelas PECs 45 e 110 do Congresso, e instituir um mecanismo de devolução do imposto para as famílias de baixa renda”, avalia Gobetti.
De acordo com as simulações feitas para o Rio Grande do Sul, a regressividade do ICMS será sensivelmente reduzida com essa inovação, que também será acompanhada da redução das alíquotas sobre combustíveis, energia e comunicação. Atualmente, as famílias que vivem com até três salários mínimos suportam uma carga tributária do ICMS equivalente a aproximadamente 15% sobre o seu consumo, enquanto as mais ricas, que recebem mais de 25 salários mínimos, têm ônus de 13,5%.
Com as mudanças, a carga sobre os mais pobres será reduzida para cerca de 11% e a dos mais ricos para 12,5%. “Ou seja, pela primeira vez em décadas, a alíquota efetiva paga pelos mais pobres será mais baixa do que sobre os mais ricos”, diz o economista.
Para o auditor fiscal da Receita do Rio Grande do Sul, Giovanni Padilha, é um primeiro passo para uniformizar o ICMS e mostrar que a questão operacional foi sanada e o mecanismo foi colocado em prática. “É um grande avanço, havia um dúvida em relação à questão operacional e isso foi sanado agora”, diz ele, que destaca, porém, que a devolução é apenas uma parte de uma reforma mais ampla que avance na direção de um sistema com menos alíquotas e com mais justiça tributária. Segundo ele, o Canadá, Uruguai e o Japão tem programas nessa mesma linha, embora com características particulares.
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