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TCU avalia que governo cometeu irregularidades na decisão de fechar estatal que fabrica chip de boi

Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos decidiu dissolver a Ceitec em junho; área técnica da Corte diz que a simples apresentação de prejuízo da empresa não é suficiente para justificar sua dissolução

Por Anne Warth
Atualização:

BRASÍLIA - A área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) avalia que a decisão do governo pela extinção da Ceitec, estatal produtora de dispositivos microeletrônicos e de chips para identificação e rastreamento de produtos, medicamentos e animais, pode estar cercada de irregularidades que comprometem a legitimidade e a legalidade do processo. 

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Análise realizada no dia em que a recomendação foi aprovada menciona uma série de medidas infralegais que teriam permitido um processo expresso, tocado unicamente pelo Ministério da Economia, que manifestou por diversas vezes a intenção de privatizar e liquidar dezenas de estatais. A área técnica chegou a propor cautelar (medida provisória) para impedir a deliberação do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (CPPI), mas a ministra Ana Arraes não acatou a sugestão. O processo é sigiloso, mas o Estadão/Broadcast teve acesso à documentação. 

A Ceitec foi qualificada para o PPI em 14 de outubro de 2019 e a decisão de dissolver a estatal foi aprovada em 10 de junho deste ano pelo conselho do colegiado, que é formado por diversos ministros do governo. De acordo com o TCU, no entanto, o decreto que qualificou a Ceitec no PPI citava a elaboração de estudos e avaliação de alternativas para a empresa, mas não mencionava sua dissolução entre as possibilidades.

Para o TCU, a recomendação para liquidação teria sido enviesada, já que o comitê responsável por fazer as análises sobre o futuro da empresa sofreu uma mudança de composição em janeiro. Criado em outubro do ano passado, ele tinha seis assentos: dois da Casa Civil, dois do Ministério da Economia e dois do antigo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) - hoje dividido em dois, entre Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e Ministério das Comunicações.

O Tribunal de Contas da União (TCU)ainda não tem decisão final sobre o processo de venda da Ceitec. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado - 9/8/2019

Em 31 de janeiro, porém, o PPI migrou da Casa Civil para o Ministério da Economia, o que deu à Economia quatro dos seis assentos do comitê - ou seja, maioria dos votos. Foi esse grupo que sugeriu a alternativa da liquidação ao conselho do PPI. 

"Houve um abafamento das vozes interministeriais que formavam o CPPI - valor então idealizado na legislação original. A governança decisória compete unicamente, na prática, ao Ministério da Economia", diz a análise da área técnica do TCU. "Tal iniciativa fragilizou o sistema de freios e contrapesos da governança original, fragilizando sobremaneira a legitimidade de o CPPI deliberar pela dissolução da Ceitec com base no desenho normativo utilizado para o caso concreto."

Ao contrário do que ocorre nas análises de concessões de infraestrutura, também tocadas pelo PPI, a corte de contas não pôde acompanhar o caso da Ceitec. Uma semana antes da aprovação da liquidação da Ceitec pelo conselho de ministros, o TCU soube que a decisão pela extinção seria tomada e pediu ao PPI acesso aos estudos. O PPI, no entanto, respondeu que o relatório estava em fase de revisão e não enviou a documentação solicitada.

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Assim, a decisão pela liquidação foi aprovada sem que o TCU monitorasse o caso, "em contrariedade ao histórico de décadas de atuação desta Corte nos processos de desestatização no âmbito do governo federal, com prejuízos à eficácia da atuação do Tribunal e à segurança jurídica do processo".

"Em paralelismo com o praticado nas concessões e privatizações, em face das consequências muitas vezes irreversíveis advindas de fases específicas do processo decisório, faz-se necessário o encaminhamento prévio dos estudos motivadores anteriormente ao aperfeiçoamento jurídico de atos e decisões", diz a análise do órgão.

A aprovação da liquidação da Ceitec pelo CPPI se tornou uma resolução com recomendação à presidência da República, mas, formalmente, cabe ao presidente Jair Bolsonaro assinar um decreto para referendar a dissolução da estatal. O TCU destaca, porém, que a resolução do PPI, mesmo sem o decreto, permite a convocação de assembleia-geral pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para nomear um liquidante, acabar com as atribuições da diretoria e dos Conselhos Fiscal e de Administração, além de fixar prazo para conclusão do processo de liquidação.

Para o TCU, essas medidas têm "impacto significativo" e "baixo grau de reversibilidade". Por isso, o órgão prega que "a decisão de dissolução seja precedida da comprovação de que essa é a melhor alternativa para implementar a desestatização de uma empresa".

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Diante dos planos públicos do governo Bolsonaro para privatizar e liquidar dezenas de estatais, a Corte de Contas avalia que precisa "reconfigurar a forma de fiscalização", já que as gestões anteriores, como a dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, não foram marcadas por decisões dessa natureza. "Resoluções que recentemente têm modificado a governança do processo de desestatizações de empresas estatais sinalizam a instabilidade e pouca maturidade institucional desse processo", diz a análise.

O órgão ressalta que a simples apresentação dos resultados da Ceitec, que apresenta prejuízo há anos, não é suficiente para justificar sua dissolução, pois a União já investiu R$ 400 milhões em sua fábrica e, somente em 2018, destinou R$ 88 milhões do Orçamento para a companhia. "Propostas de desestatização que se pautem somente nos números resultantes de avaliações econômico-financeiras não encontram respaldo no comando constitucional em tela", diz o órgão.

Procurado pela reportagem, o TCU respondeu que não comentará o caso, pois ainda não tem uma decisão final sobre o processo e, por isso, não há informações públicas.

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O Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, ao qual a estatal está subordinada, informou que não foi comunicado sobre a instrução da área técnica do Tribunal de Contas. 

A pasta orientou questionar o Ministério da Economia que, por sua vez, afirmou que não houve alterações no comitê criado para avaliar o destino da empresa quando a equipe econômica assumiu o comando do PPI.

Informou ainda que a recomendação da liquidação foi baseada em estudos do grupo, que identificou que a dissolução societária e liquidação da empresa era a alternativa com "melhor condição de custo e benefício" entre as demais opções. "A condução dos estudos por um Comitê Interministerial, em que pese não seja uma exigência legal, foi o instrumento de governança proposto pelo CPPI para consagrar a pluralidade de ideias na construção da solução a ser encaminhada ao conselho para deliberação." / COLABOROU MARLLA SABINO

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