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Largo resiste ao tempo

Sete casas neocoloniais sobrevivem no Boticário, lugar que guarda lembranças de um Rio glamoroso

Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Bem na altura do número 822 do Cosme Velho, velho bairro de tradicionais famílias do Rio de Janeiro, sobrevive a duras e longas provas o legendário Largo do Boticário. Ali, sete harmoniosas casas neocoloniais têm árvores frondosas, o Corcovado a seus pés, o Rio Carioca a bordejar-lhes, e a Mata Atlântica da Floresta da Tijuca em seu quintal. Foram morada de artistas plásticos, intelectuais, estrangeiros, cariocas cultores do belo e da boa arte, além de palco de festas memoráveis num tempo de requinte e glamour quando o Rio era capital, sede de embaixadas - e o então beautiful people circulava de vestidos longos, summers e mesmo casacas com conderações. E isso sem medo de ser feliz ou de sair de Rolls-Royce, como fazia todos os dias o decorador Gustavo Magalhães, conduzido por motorista de libré e concentrado no jornal que nem sequer tremia em suas mãos. O Largo do Boticário com suas casas coloridas e a Floresta da Tijuca atrás. Foto: Marcos D'Paula/AE Deve-se a Joaquim Luís da Silva Couto, dono de uma botica na Rua Direita, hoje Primeiro de Março, o nome desse Largo e do Beco, que por pequena ponte lhe dá acesso, ruela estreita com apenas duas casas se faceando e que seriam as mais antigas do local. Em uma delas, onde antes moraram os pais, avós e bisavós, vive até hoje a octogenária e venerada crítica teatral Barbara Heliodora. Bem-sucedido e tendo a família real entre seus clientes, o boticário Joaquim inovou comprando terras no Cosme Velho. Não raro, a cavalo, o imperador d. Pedro II passava para uma visita. O Largo começou a ser habitado em 1831 e seria de 1846 a casa de número 32, construída pelo marechal Joaquim Alberto de Souza Silveira, homem da corte do imperador e padrinho de nascimento de Machado de Assis. Bastante depois, nos anos 20, durante a gestão do prefeito Antonio Prado, o chão de terra e o calçamento pé-de-moleque original teriam sido substituídos por lajes de pedra capistrana. Foi quando o empresário Edmundo Bittencourt, fundador do jornal O Correio da Manhã, comprou os terrenos disponíveis e resolveu ali construir casas em estilo neocolonial, utilizando material antigo proveniente das demolições que aconteciam a todo vapor no centro da cidade. Nos anos 30, o colecionador de arte e mobiliário do século 17 e 18 Rodolfo (Ruddy) da Siqueira, que viveu na velha casa do marechal entre 1928 a 1941, e Silvinha Bittencourt, que na sua vive até hoje, muito contribuíram para o cenário neocolonial em que foi, aos poucos, sendo transformada a paisagem do Largo. Nos anos 40, pela mão do arquiteto modernista Lucio Costa, muitas das casas foram novamente reformadas de um modo a melhor ressaltar o estilo da época. A casa do meio ganhou na sacada um belo musharabi, típica treliça de origem árabe feita para permitir às mulheres olharem para fora sem serem vistas. São treliças em balcão adotadas na Espanha e Portugal como quebra-sol ou brise soleil e consideradas ideais para o clima tropical. Passou a ser elemento clássico da casa brasileira colonial e, sob novas leituras e materiais, continua presente em nossa arquitetura desde os primeiros prédios modernistas de Lucio Costa no Parque Guinle, nos anos 40. Consta que os musharabis não eram do agrado de d. João VI que, quando no Brasil, teria proibido o seu uso, acreditando que nos balcõezinhos treliçados poderia se esconder um assassino. Escadinhas no fundo Comuns também à arquitetura das casas do Largo, além dos telhões pintados a mão em porcelana de Delft, dos azulejos portugueses do período barroco e rococó dos séculos 17 e 18, dos mármores Lioz e Zé Miguel do chão nos halls de entrada, são as escadinhas no fundo das casas com pequenas portas que permitiam lavar a roupa no rio atrás. Em eras mais remotas ou nem tanto, como dos anos 30 aos 70, passaram e se apegaram ao local, além de Ruddy e Silvinha, outras figuras como Magú Leão, que ali viveu de 1942 a1986, em casa que depois ficou vazia por mais de 20 anos. Nela, onde no tempo de Ruddy dormiram, em 1929, os herdeiros britânicos Eduardo VIII e Jorge VI, Magú fez dos salões um ponto de encontro de artistas e intelectuais do movimento modernista. O artista plástico Augusto Rodrigues, também morador no Largo, era um habitué, assim como Manuel Bandeira, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, José Lins do Rego - e ainda Tarsila do Amaral e Le Corbusier, se estivessem no Rio. O inglês John Summers, hoje conhecido pelos estanhos british style que ainda produz em São João del Rey, também ali morou com a ex-mulher Rosane. Tinham residência no andar de cima da casa e, no térreo, um freqüentado antiquário. Ainda ali, a longeva Silvinha Bittencourt, responsável pela inclusão de um chafariz de discutível gosto bem no meio do Largo. Primeira mulher de Paulo Bittencourt, é mãe de Sibil, herdeira de boa parte das casas, inclusive a que foi ocupada por sem-terra em 2006. Ainda há quem se lembre desses dourados anos cariocas. Na casa alugada pelo americano Bob Winans e sua mulher, a paulista Nana Almeida (ele seria o representante de Nelson Ro-ckefeller no Brasil), rolaram festas memoráveis, muitas vezes organizadas a pedido do governo brasileiro desejoso de bem entreter e impressionar os dignitários estrangeiros em visita ao País. Para limitar a presença em sua casa àqueles que realmente possuíam casacas, Bob tratava de alugar todo o estoque da antiga Casa Rolo, de modo a que não estivessem disponíveis na noite da festa. E, para garantir a segurança de seus convidados, uma vez que os sobrados não tinham laje de concreto e seus salões poderiam desabar diante do peso dos convivas, Winans fazia retirar os carros do grande espaço de garagem e garantia a sustentação do piso superior com resistentes colunas de madeira. Presenças freqüentes das festas dos Wynans eram Paulo Bittencourt e a segunda mulher, Niomar Sodré, casal traquejado no mundo social e artístico europeu, ela fundadora do MAM do Rio. A seguir, quem veio ocupar essa bela casa foi o casal Gustavo e Guiomar Magalhães, ele decorador. Foram outros que deixaram no imaginário carioca a lembrança de festas legendárias. Nos salões dos Magalhães, podiam circular, esbanjando elegância, beleza e juventude, a morena Tereza Souza Campos e a loura Lourdes Catão, tão conhecidas das listas das "dez mais" ou belos e viajados casais como Carmem e Antenor Mayrink Veiga, colunistas como Ibrahim Sued e Maneco Muller, que assinava Jacinto de Thormes, assim como socialites famosos como Ivo Pitanguy e sua Marilú, ele o cirurgião plástico de todas as mulheres de então. Isso, fora banqueiros, embaixadores, donos de jornal e outros poderosos do momento. Há esperança, hoje, de que a decadência do Largo esteja com seus dias contados - uma lei da Prefeitura do Rio de Janeiro permitindo o aproveitamento comercial de imóveis tombados, medida que já beneficiou a hoje chamada Casa 32, transformada num simpático Bed&Breakfast, poderá, quem sabe, devolver a esse tão especial conjunto arquitetônico a sua atração perdida e sua capacidade de se autopreservar.

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