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Opinião|Nada será como dentes

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O dentuço que não ri para que não se perceba que ele é dentuço, está perdido.

(DALL-E)  

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"Creio ter aprendido com minha mãe que o dentuço deve ser rasgado para não se tornar antipático. O dentuço que não ri para que não se perceba que ele é dentuço, está perdido. Aliás, de um modo geral, a boca amável é a boca em que se vê claro. Era o caso de minha mãe: tinha o coração, já não digo na boca, mas nos dentes, e estes eram fortes e brancos, alegres, sem recalque: anunciavam-na. Moralmente julgo ser muito diferente dela, mas fisicamente sinto-me cem por cento dela, que digo? sinto-a dentro de mim, atrás dos dentes e de meus olhos."

Eis aí um trecho da crônica, Minha mãe, escrita em 1957, por Manuel Bandeira. Sempre vi fotos do poeta e notava que os seus incisivos centrais superiores eram, de fato, bastante incisivos. Identificava-me com o fato: como ele, também sou um dentuço.

No ensino fundamental, naqueles tempos em que bullying ainda nem existia como palavra, recebi, de um professor de Geografia, a alcunha de Carlos Castor. Ninguém poderia dizer que se tratava de uma injustiça. A impressão que sempre tive era a de que minha cavidade bucal era semelhante a de um hamster, mas os dentes eram do tamanho dos de um hipopótamo. Tal conformação anatômica me deixava com a cara de um terceiro animal: o tigre-de-dentes-de-sabre.

É evidente que, se eu fosse seguir a ideia de Bandeira, estaria perdido. Não me agradava em nada rir escancaradamente para que percebessem (e zoassem) minhas deformidades dentais. Para sobreviver, tive que me tornar um tigre-de-dentes-de-sóbrio.

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Durante um curto período de prosperidade da família, me instalaram um aparelho ortodôntico fixo. A questão é que, passado um ano, acabou a verba para a manutenção do artefato. Terminou também o dinheiro para que o dentista o retirasse na clínica.

Foi um momento inesquecível da adolescência ver meu pai entrando em meu quarto, com uma caixa de chavezinhas de fenda e um alicate, para efetuar o procedimento de extração em domicílio.

Esses 12 meses ao menos serviram para que eu deixasse de ser um felino de dentes gigantescos. Passei à categoria javali.

Dizem que Bandeira soube usar com inteligência suas malformações ósseas. O sorrisão franco, a vasta cultura, a meiguice de seus versos e a fragilidade de poeta tuberculoso encantava as mulheres. Vinícius ficou com a fama, mas o pegador mesmo era o hóspede de Pasárgada.

Eu só possuo as presas enormes. Por outro lado, felizmente, a coisa mais próxima de tuberculose que tive na vida foi uma crise de espirros ao abrir uma lata de polvilho Granado.

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Hoje, por vezes, me pego refletindo: foi por isso que nunca encantei ninguém que fosse encantadora. Mas fazer o quê? Melhor ter os dentes desalinhados do que a vida torta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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