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Opinião|Pai, afasta de mim esse táxi!

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Atualização:

Uma inesquecível corrida com carro de aplicativo.

(Dall-E)  

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Manhã dessas, atrasado para o trabalho presencial, peguei um carro de aplicativo a fim de compensar a demora. Sentei-me no banco traseiro nem olhando direito para o rosto do motorista. Passados alguns minutos de trânsito pesado, ele se dirigiu a mim com uma voz de barítono:

- Você acredita em mim?

Tirei o rosto do celular e o mirei detidamente. Era um homem de rosto magro, nariz afilado, barba e cabelo longos. Nem esperou a minha resposta e disse:

- Meu nome é Jesus Cristo, prazer em conhecê-lo.

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Ia responder "o prazer é todo meu", mas achei que não seria a melhor forma de se dirigir ao homem - ou ao Filho do Homem, como preferirem.

Jesus Cristo interrompeu as apresentações dando uma informação sobre o tráfego:

- Dei uma olhada no Waze e estão mandando ir pela Marginal. Se concordar, vou pela intuição: entro na Pedroso de Moraes e depois caio na Rebouças. Pode ser?

Quem sou eu para ir contra as intuições de Jesus? Nem que ele dissesse que andaríamos sobre as águas do Tietê, ousaria contrariá-lo. Pedi que fizesse o trajeto que julgasse mais adequado.

Ao entrarmos na Pedroso, curioso, voltei ao assunto crístico:

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- Então o senhor é Jesus Cristo...

- Sim, sou - ele respondeu, solene.

- Mas foi batizado com esse nome?

- Sim, por São João Batista, no rio Jordão.

- Ah, entendi. Mas, para mim, o Senhor, depois da ressurreição, teria subido aos céus e estaria sentado à direita de Deus Pai.

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- Estava lá, sim. A Bíblia não mente. Só que decidi voltar disfarçado de motorista de carro de aplicativo para compreender melhor o mundo de hoje.

- E o que está achando?

- Olha, eu julgava que Sodoma e Gomorra seriam o limite. Mas a coisa ficou bem pior.

- Vai fazer algo a respeito?

- Claro que sim, meu filho.

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- Logo?

- Bem, eu vos digo que dependo das decisões do meu Pai. De verbas que Ele vai, ou não, liberar. Em havendo o envio de capital suficiente, vou pra cima.

Ao dizer estas palavras, acabou indo pra cima de outro veículo. O motorista ficou irado, emparelhou conosco, e o xingou, em alto e bom som. Jesus o olhou, com uma expressão entre cansada e triste. Depois saiu para a rua e o benzeu fazendo o sinal da cruz com os dedos.

Talvez acreditando que fosse ser agredido, o motorista se jogou a seus pés. Antes de voltar à corrida, Jesus bradou ao homem:

- Levanta-te e anda!

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A conversa se desenvolvia bem e, quando percebi, já estávamos a dois quarteirões do meu escritório.

- Sua intuição funcionou - comentei.

Ao que Ele respondeu:

- Não sei por que não perco essa mania de fazer milagre.

Já me preparava para descer, quando sirenes soaram atrás de nós. Vinham de uma ambulância do SUS. Já deram uma fechada no automóvel de Jesus e o enfiaram, na sequência, numa camisa-de-força.

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- Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem - disse, contrito, ao ser levado para a ala psiquiátrica do HC.

 

 

 

 

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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