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Tristeza de carnaval

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Por Marcos Caetano
Atualização:

É curioso que, em meio a tanta folia Brasil afora, eu insista em sentir certa melancolia no carnaval. Nessas épocas, eu sempre planejo uma coluna feliz, deixando de lado as mazelas do futebol para falar apenas da sua simplicidade, presente nas divertidas peladas à fantasia que os jogadores costumam disputar e que se reflete na percussão das escolas de samba e blocos de embalo. Mas, como no samba antigo, a tristeza insiste em pedir passagem, sufocando as palavras alegres do texto que não cheguei a escrever. Não é preciso fazer análise para descobrir a razão da minha melancolia carnavalesca. É que foi justamente às vésperas de um carnaval que a Dona Eulália, minha avó querida, grande filósofa do esporte e personagem recorrente desta coluna, decidiu enxergar a vida do outro lado do biombo. Para culminar, foi num carnaval que perdemos Zizinho, nosso mestre dos mestres. Como tenho juízo, Zizinho também era personagem mais do que recorrente desta coluna. Nascido Tomaz Soares da Silva, filho de Dona Quitu, por obra dela virou Tomazinho e depois Zizinho. E por obra própria, pelo que fez no futebol, tornou-se Mestre Ziza - denominação mais do que justa para aquele que, sob qualquer ótica que se pretenda avaliá-lo, foi um verdadeiro mestre. Mestre dos gramados, com extraordinária visão de jogo e domínio de bola, Zizinho chutava com ambas as pernas, cabeceava com categoria, driblava fácil e lançava com perfeição. Pelé começou a jogar bola querendo ser como ele - e até nisso provou por que era genial. O Rei teve no pai, Seu Dondinho, o grande exemplo. Mas de mestre ele só chamou uma pessoa: Zizinho. Mestre da valentia, Zizinho ensinou que era possível ser craque e jogar com raça. Recordo-me do dia em que ele me contou como quebrou a perna de um alemão que o caçava em campo. "O craque é melhor que o perna-de-pau até para bater" - disse ele. "Quando um vaca-brava entra de carrinho em você, é só levantar a perna um palmo, para que a canela dele se encaixe entre a sola do teu pé e o chão. O peso do teu corpo e a velocidade do bruto farão o resto. Naquele dia, o estádio inteiro ouviu o estalo do osso". Cinqüenta anos depois, foi como se eu também tivesse ouvido. Mestre da liderança, Zizinho costumava bater com as palmas das mãos nas coxas, enquanto corria com a bola, para chamar a atenção dos companheiros. Era uma referência absoluta dentro de campo, o jogador para o qual todos voltavam os olhos - companheiros, torcedores e adversários - quando a situação se complicava. Mestre da tática, Zizinho foi um precursor do jogador-treinador. Não apenas porque escreveu livros e virou técnico, mas principalmente por ter sido, junto com Puskas, um dos primeiros jogadores a comandar o time de dentro de campo, promovendo alterações táticas com a partida em andamento. Zizinho foi uma ponte luminosa que interligou três grandes gerações do futebol brasileiro: a de Leônidas na Copa de 38, os injustiçados de 1950, e os grandes campeões, liderados por Pelé, Garrincha e Didi. Naquele carnaval de 2002, saí do funeral da Dona Eulália diretamente para o velório do Mestre, em Niterói. Lá, não encontrei bandeiras do Bangu ou um mísero dirigente. Que eu saiba, nenhuma estátua foi erguida em sua homenagem. Pouco antes de morrer, ele disse: "O medo de perder está acabando com o futebol". Pensando bem, não há mais espaço no futebol de hoje para um homem como Zizinho. E seria injusto pedir-lhe que continuasse querendo viver nesses tempos de falta de reverência aos mestres. Que o carnaval do amigo leitor não tenha a melancolia deste texto.

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