É falso que vacinas contra a covid-19 tenham provocado a morte de 17 milhões de pessoas

Artigo faz associação sem provar nenhuma relação causal entre excesso de mortes e imunizantes, avaliam especialistas

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Por Clarissa Pacheco
Atualização:

O que estão compartilhando: que as vacinas contra a covid-19 mataram 17 milhões de pessoas em todo o mundo. A legenda do post viral ainda atribui às mortes à “Nova Ordem Mundial” e especificamente às vacinas de RNA mensageiro (mRNA).

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O vídeo exibe uma entrevista com três autores de um estudo publicado em setembro de 2023 em uma revista científica canadense que faz uma correlação enviesada entre “mortalidade por todas as causas” e as vacinas contra a covid-19.

Em linhas gerais, o que eles argumentam é que houve um excesso de mortalidade no período de aplicação das vacinas e que as mortes aumentaram justamente quando houve aplicação das doses de reforço. Para os autores, estas mortes – 17 milhões – teriam sido provocadas pela vacina, mesmo que os dados utilizados na publicação não consigam apontar se as pessoas que morreram no período estavam ou não vacinadas.

O estudo ainda desconsidera as próprias mortes pela covid-19, alega que a doença não causou uma pandemia e defende, sem provas, que as vacinas não faram capazes de reduzir a mortalidade. Especialistas ouvidos pelo Estadão Verifica apontaram que as conclusões do estudo não fazem sentido. Este conteúdo também foi desmentido pela AFP e pela organização Health Feedback.

Procurado, o autor principal do estudo, Denis Rancourt, respondeu que as críticas ao trabalho “são amplas e não específicas” e que elas já foram previstas e detalhadas no relatório detalhado do trabalho, na sessão “Avaliando outras interpretações da causa do excesso de mortalidade”.

Arte/Estadão Foto: Arte/Estadão

Saiba mais: O artigo mencionado no vídeo viral foi publicado em 17 de setembro de 2023 na revista canadense Correlation. Dos quatro autores do material, três fazem parte da equipe da própria revista: Joseph Hickey, PhD em Física pela University of Calgary e ex-cientista de dados do Banco do Canadá – posição que perdeu, segundo ele próprio, por se opor à obrigatoriedade da vacina contra a covid pelo governo canadense; Denis Rancourt, que tem doutorado em Física e é ex-professor da University of Ottawa; e Marine Baudin, doutora em Microbiologia pela Université Paris-Saclay.

Denis Rancourt é o autor principal da publicação, e este não é o primeiro artigo dele com informações incorretas sobre a pandemia de covid-19: ele já espalhou desinformação sobre máscaras faciais e compartilhou nas redes sociais uma teoria conspiratória de que o governo de Joe Biden, nos Estados Unidos, havia encoberto 45 mil mortes provocadas pela vacina contra a covid-19.

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O portal Health Feedback, que publica resenhas de artigos científicos, classificou a alegação do artigo como “incorreta” e destacou que Rancourt é membro do grupo Pandata, que tem entre os integrantes pessoas que espalharam desinformação sobre a covid-19, e que o pesquisador chegou a negar a existência da pandemia. Para o Health Feedback, a análise presente no artigo é “altamente falha e não leva em conta os aumentos de mortalidade da covid-19″.

Em 2020, a prefeitura precisou aumentar a capacidade de enterros na cidade de São Paulo com a abertura de 13 mil novas valas e a compra de novas câmeras refrigeradas que podem armazenar temporariamente até mil corpos por dia para atender o crescente número de mortes provocadas pela pandemia de coronavírus. FOTO: FELIPE RAU/ESTADAO Foto: FELIPE RAU

Denis Rancourt nega que o estudo desconsidere as mortes pela covid, mas alega que o excesso de mortalidade não condiz com o quadro pandêmico. “Demonstrámos que os excessos na mortalidade por todas as causas são incompatíveis com uma doença respiratória viral de causa pandémica em expansão”, disse ao Verifica, insistindo que o trabalho consegue provar isso.

Os dados utilizados

De acordo com o resumo publicado no site da revista, o artigo se baseou em dados de mortalidade em 17 países do hemisfério sul e da região equatorial e demostrou uma “ligação causal definitiva entre muitos picos de mortalidade por todas as causas e a rápida implementação de vacinas”. No vídeo viral, um dos autores do estudo, Jérémie Mercier, chega a afirmar que as mortes aumentaram mesmo no verão do hemisfério sul – quando em tese deveriam diminuir – e que isto deixa claro como há “uma correlação dramática entre as campanhas forçadas de vacinação e o aumento das mortes nestes países”.

Isso não é verdade. Segundo análise do site Health Feedback, o artigo sequer estabeleceu se as pessoas que morreram no período tinham sido vacinadas. “Estabelecer que as pessoas que morreram tinham sido vacinadas deveria ter sido um primeiro passo essencial na análise. Sem determinar se este é o caso, não podemos fazer inferências causais entre a vacinação e a morte”, diz o texto.

Vacinação contra a covid-19 começou no Brasil em janeiro de 2021. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO  Foto: Tiago Queiroz

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A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, que possui doutorado em neurociências e pós-doutorado em bioquímica, também observa que o artigo faz uma associação entre as mortes e o início da vacinação sem estabelecer nenhuma relação causal. “O relatório não leva em consideração diversos outros eventos que poderiam causar esse excesso de mortalidade”, diz, citando o relaxamento de medidas não-farmacológicas contra o coronavírus, que resultou num aumento de casos e de óbitos, além do avanço da variante Ômicron.

Mellanie cita ainda que, apenas no primeiro ano de vacinação, os imunizantes evitaram cerca de 20 milhões de mortes pela doença, como mostra este artigo publicado em junho de 2022 pela conceituada revista científica The Lancet. Isso significou uma redução de 63% das mortes entre dezembro de 2020 e dezembro de 2021 em 185 países e territórios.

“Me parece que a metodologia é completamente falha no que tange ao estabelecimento de relação de causa entre o excesso de mortalidade e a vacinação, e deixa de considerar diversos outros fatores que podem também estar por trás desse aumento que, inclusive, era visto já em momentos anteriores à vacinação”, completa Mellanie.

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Premissa incorreta

Para Isaac Schrarstzhaupt, doutorando em Epidemiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Rede Análise, que atua para coletar, analisar, modelar e divulgar dados relativos à ciência e à saúde, o estudo mencionado no vídeo viral é falho porque já parte de uma premissa incorreta: “Ele tenta ver se as vacinas são benéficas buscando uma redução da mortalidade por todas as causas após a vacina. Isso faria sentido se a vacina fosse para todas as causas, mas não é. Como não houve redução, o estudo diz que a vacina não foi benéfica”, explica.

Denis Rancourt nega que haja essa premissa no estudo e insiste na vacina como causa do excesso de mortalidade. “Descobrimos empiricamente que a implementação de vacinas está temporariamente associada a picos de mortalidade por todas as causas, na ausência de qualquer explicação plausível que não seja uma ligação causal com a implementação”.

O excesso de mortalidade aumentou no período da pandemia – e também no período da vacinação. No entanto, algum aumento da mortalidade já é esperado ano a ano, porque há aumento da população. “Para que algo seja apontado como a causa de um desfecho, tem que ser um evento ou uma condição que precede esse desfecho e que sem isso, esse desfecho não aconteceria ou demoraria muito para acontecer”, aponta Isaac Schrarstzhaupt.

O que os pesquisadores fizeram foi apontar uma correlação entre o excesso de mortes – que de fato ocorreu – e as vacinas contra a covid-19, sem levar em conta os óbitos causados diretamente pela própria doença, apontam especialistas. De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), coletados até 24 de dezembro de 2023, o mundo inteiro registrou 6.990.067 mortes pela covid-19. “Por esse modelo, até mesmo as mortes por covid-19 foram atribuídas à vacina na estudo”, aponta Isaac.

Número oficial de óbitos por covid-19 reportados à OMS até 24 de dezembro de 2023 era de 6,9 milhões Foto: Reprodução

Já o excesso de mortalidade associado direta ou indiretamente à covid, também segundo a OMS, foi de 14,9 milhões de óbitos entre 2020 e 2021. Isso inclui tanto as mortes por covid quanto aquelas provocadas pelo impacto da pandemia nos sistemas de saúde e na sociedade, como a falta de acesso à prevenção e tratamento de outras doenças porque os sistemas de saúde ficaram sobrecarregados.

Mortalidade aumentou 27,5% no Brasil entre 2020 e 2021

De acordo com Isaac Schrarstzhaupt, o primeiro passo para uma investigação como essa é verificar se houve excesso de mortalidade além do projetado, para, só então, verificar a causa. Foi o que fez Departamento de Economia e Estatística do Governo do Rio Grande do Sul em um artigo publicado em maio de 2023 analisando o excesso de mortalidade no Brasil e nas suas regiões entre março de 2020 e dezembro de 2021.

“Eles fizeram um levantamento de mortalidade de 2011 até 2019 e depois fizeram, a partir desse dado, um modelo preditivo de como deveria ser em 2020 e 2021. Então, eles excluíram 2019, que era o dado que eles já tinham, aplicaram o modelo e o número bateu cravado. Quando eles pegaram os dados de 2020 e 2021, deu um excesso, justamente o das mortes por covid”, aponta Isaac, que fez um fio no X (ex-Twitter) detalhando o estudo.

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Entre as conclusões do estudo está a de que, entre março e dezembro de 2021, houve 27,5% de óbitos a mais do que se esperava no Brasil – cerca de 625 mil mortes em excesso. Outra conclusão é de que, mesmo no ano de 2020, os óbitos seguiram o padrão dos anos anteriores, até que começaram a aumentar, justamente no período em que começaram as mortes por covid-19.

Artigo do Departamento de Economia e Estatística do Governo do Rio Grande do Sul mostra como número de óbitos após o início da pandemia foi muito maior do que o previsto para os anos de 2020 e 2021 Foto: Reprodução

O estudo observa ainda que é possível que as mortes em excesso tenham ocorrido por outras causas que não a covid, mas em decorrência do esgotamento da capacidade hospitalar promovido pela pandemia.

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