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Artigo: Ameaça da esquerda à democracia

A clássica defesa da liberdade de expressão está sob pressão nos Estados Unidos – e pela esquerda 

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Por Fareed Zakaria

Por vários anos, estudiosos vêm afirmando que o mundo vive uma “recessão democrática”. E a transição dos países para a democracia desacelerou, cessou e, em alguns lugares, seguiu caminho inverso. E observaram também um esvaziamento da democracia no mundo industrializado. Quando refletimos a respeito, nos preocupamos com Donald Trump, seus ataques contra juízes, contra a imprensa livre e o seu próprio Departamento de Justiça. Mas vemos também uma corrosão preocupante de uma norma democrática fundamental no campo da esquerda.

Steve Bannon discursa em comício do candidato republicano derrotado ao Senado pelo Alabama, Roy Moore, em dezembro Foto: AFP PHOTO / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / JOE RAEDLE

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Hoje, são comuns os clamores da esquerda no sentido de ser negado a figuras controversas o direito a uma plataforma para expressarem suas opiniões. Universidades retiraram convites de palestras feitos a personalidades como Condoleezza Rice e Charles Murray. Outras se viram impedidas de possibilitar ou permitir que convidados conservadores se expressassem, diante de protestos sufocando os eventos.

Uma controvérsia similar envolve agora Steve Bannon, que nos últimos meses tem aparecido no rádio e na imprensa, incluindo uma entrevista que fiz com ele na CNN. Algumas pessoas alegam que Bannon, desde que deixou o governo, se tornou uma figura sem importância e, portanto, não deveria ter mais espaço para se pronunciar. Mas, se fosse o caso, seguramente a mídia, que afinal é um setor com fins lucrativos, notaria a falta de interesse público e não o convidaria.

A realidade é que as pessoas que dirigem a Economist, o Financial Times, o programa 60 Minutes, a New Yorker, e muitas outras organizações de mídia que recentemente entrevistaram Bannon sabem que ele é um ideólogo inteligente e influente, um homem que criou a maior plataforma de mídia para a nova direita, geriu uma campanha bem sucedida para Trump antes de trabalhar na Casa Branca e continua a expressar e incentivar o populismo que está em ascensão em todo o mundo ocidental. 

Ele pode estar desfrutando dos seus 15 minutos de fama que desaparecerão, mas, no momento, é uma figura absorvente. O temor real de muita gente da esquerda não é de que Bannon seja uma figura opaca e desinteressante, mas o oposto – de que suas ideias são sedutoras para um grupo muito grande de pessoas. Daí a solução dos seus detratores: não dar a ele um espaço para se expressar, esperando que suas ideias desapareçam. Mas não é o caso. Na verdade, ao tentar sufocar Bannon e outros da direita, os liberais contribuem para que suas ideias pareçam mais robustas. Os esforços dos países comunistas para silenciar as ideias capitalistas funcionaram?

Os liberais devem ser lembrados da origem da sua ideologia. Em 1950, quando governos em todo o mundo ainda eram bastante repressivos – proibindo livros, censurando comentários e prendendo pessoas por suas crenças – John Stuart Mill explicou na sua obra seminal, On Liberty (Sobre a Liberdade), que a proteção contra os governos não era suficiente. “É necessária também uma proteção contra a tirania da opinião e dos sentimentos dominantes; contra a tendência da sociedade a impor suas próprias ideias e práticas àqueles que discordam delas”. 

Essa clássica defesa da liberdade de expressão, que o juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes, mais tarde, definiu como “liberdade do pensamento que detestamos”, está sob pressão nos EUA – e pela esquerda. Já vimos isto antes. Há 50 anos, estudantes também impediram que oradores cujas teses consideravam ofensivas se expressassem. Em 1974, William Shockley, cientista vencedor do prêmio Nobel que, sob muitos aspectos, foi o pai da revolução da computação, foi convidado pelos alunos da Universidade Yale para defender sua tese abominável de que os negros eram uma raça geneticamente inferior que deveriam, voluntariamente, ser esterilizados. Do debate participaria também o líder negro Roy Innis, do Congresso de Igualdade Racial. Houve um tumulto no câmpus e o evento foi cancelado. Um debate posterior com outro oponente foi interrompido.

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A diferença é que, na época, Yale reconheceu ter cometido um erro ao não garantir que Shockley fizesse sua palestra. E encomendou um estudo sobre liberdade de expressão que ainda é uma declaração transcendental sobre o dever das universidades de encorajarem o debate e a dissensão. 

O estudo afirma peremptoriamente que uma universidade “não pode considerar como valor primário e predominante a fomentação da amizade, da solidariedade, harmonia, civilidade ou respeito mútuo. Jamais deve permitir que esses valores dominem o seu objetivo fundamental. Valorizamos a liberdade de expressão precisamente porque ele oferece um fórum para o novo, o provocativo, o perturbador e o não ortodoxo.”

E acrescenta: “Apostamos, como a Primeira Emenda, quando defendemos a ideia de que a liberdade de expressão resulta num benefício geral no longo prazo, por mais desagradável que esse resultado pareça no momento”. E é nessa aposta de longo prazo, na liberdade que se apoia a democracia liberal. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*É COLUNISTA

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