Como uma rede nacional de ex-espiões rastreia ameaças antissemitas nos EUA

O massacre a tiros na sinagoga Árvore da Vida, em Pittsburgh, desencadeou, pode-se argumentar, o esforço mais ambicioso já empreendido para proteger instituições judaicas nos EUA

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Por Campbell Robertson
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Em uma sala de reunião a meia-luz, num andar alto de um edifício de Chicago, retratos intrincadamente detalhados do perigo nos Estados Unidos são tirados minuto a minuto — evidenciando um panorama perturbador. Registros originados em todo o país — de tiros, ameaças de bomba e posts antissemitas agressivos — aparecem listados em mais de uma dúzia de telas. Analistas com experiência militar ou em inteligência privada as observam atentamente, prontos para alertar qualquer uma das milhares de sinagogas, centros comunitários ou escolas que possam estar em risco. Com frequência, esses analistas são os primeiros a emitir o alerta.

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Estamos no centro de operações da Secure Community Network (Rede Comunidade Segura, ou SCN), entidade que funciona como uma agência de segurança oficial das instituições judaicas dos EUA. Existem outras organizações especializadas em fazer a segurança de centros judaicos, mas nenhuma é tão abrangente quanto a SCN, que foi criada pelas Federações Judaicas da América do Norte (JFNA) depois do 11 de Setembro. A SCN cresceu exponencialmente ao longo dos últimos cinco anos, transformando-se de um pequeno escritório com uma equipe de cinco pessoas em uma organização nacional com 75 funcionários atuando em todo o país.

Essa rápida expansão foi ocasionada pelo assassinato de 11 integrantes de três congregações judaicas, praticado por um atirador tomado pelo ódio, na sinagoga Árvore da Vida, em 27 de outubro de 2018 — no ataque antissemita mais mortífero da história dos EUA.

Analistas com experiência em empresas militares, de inteligência privada e de mídia social trabalham no centro de comando na sede da Secure Community Network em Chicago. O tiroteio em massa na sinagoga Tree of Life em Pittsburgh levou a o esforço mais ambicioso já realizado para proteger as instituições judaicas nos EUA Foto: Jamie Kelter Davis / NYT

Julgamento

O julgamento do atirador, iniciado na terça-feira, 30, na corte federal de Pittsburgh, ocorre em um país que se impressionará menos quem qualquer revelação do que poderia ter se impressionado cinco anos atrás, dada a atual abundância em massacres a tiros e incidentes de antissemitismo. A Casa Branca anunciou na semana passada um programa que qualificou como a primeira estratégia nacional de combate ao antissemitismo, envolvendo várias agências e com foco em treinamento e prevenção.

Mas mesmo que os judeus americanos já não se surpreendam tanto com incidentes desse tipo, eles têm tido de estar muito mais alertas em razão da nefasta necessidade.

O massacre a tiros na sinagoga Árvore da Vida, em Pittsburgh, desencadeou, pode-se argumentar, o esforço mais ambicioso já empreendido para proteger a comunidade judaica nos EUA. Além de conduzir mais de US$ 100 milhões em subsídios federais para organizações judaicas locais, as Federações Judaicas da América do Norte levantaram US$ 62 milhões com o objetivo de garantir a segurança de “todas as comunidades judaicas” do continente.

Existem atualmente 93 federações judaicas com diretores trabalhando em tempo integral — esse número mais que quadruplicou ao longo dos cinco anos recentes.

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Uma porta da frente quebrada da sinagoga da Congregação Beth Israel de Colleyville, Texas, está em exibição na sede da Secure Community Network em Chicago Foto: Jamie Kelter Davis/ NYT

Federações locais têm expressado há muito tempo preocupações de segurança a prefeitos e chefes de polícia, e algumas entidades pagam vigilância privada para escolas e outros locais, afirmou Eric Fingerhut, presidente da JFNA. Mas nunca houve, afirmou ele, “esse tipo de esforço amplo para afirmar que todas as instituições em todas as comunidades judaicas precisam ter segurança e ser conectadas a uma operação de boas práticas”.

A Secure Community Network coordena grande parte dessa operação. O mais graduado conselheiro de segurança nacional do grupo, que projetou grande parte da abordagem que a rede compartilha com as federações locais, é Bradley Orsini, um corpulento e sociável ex-agente do FBI. Em outubro de 2018, ele era diretor de segurança da Federação Judaica da Grande Pittsburgh.

“Foi o pior dia da minha carreira profissional”, afirmou Orsini, em entrevista no centro de operações do grupo, referindo-se ao ataque. Ele era encarregado de preparar a comunidade para evitar a calamidade, e ela se abateu. Mas havia uma outra maneira de lidar com a situação, que a fundação em que ele trabalha hoje passou a adotar: se táticas básicas de resposta a atiradores ativos não tivessem sido transmitidas, o horror na sinagoga Árvore da Vida teria sido ainda pior.

“Coisas ruins vão acontecer”, afirmou Orsini. “Mas nós podemos estar um passo adiante.”

Relatório

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Em um relatório lançado em março, a Liga Antidifamação enumerou 3,7 mil ocorrências de assédios, vandalismos ou ataques antissemitas em todo o país somente no ano passado, o número mais elevado registrado nos 43 anos de acompanhamento. O FBI também constatou que o índice de crimes de ódio está em elevação; entre os crimes de ódio com motivação religiosa, quase dois terços miraram judeus.

Os crimes mais assustadores alcançaram as manchetes no país, como a situação de reféns em uma sinagoga no Texas, no ano passado. Em janeiro de 2022, um cidadão britânico aparentemente radicalizado por extremistas islâmicos fez um rabino e outras pessoas reféns, que escaparam sem ferimentos em grande medida por causa do treinamento que eles receberam da Secure Community Network, segundo afirmou o rabino posteriormente.

“É uma desgraça estarmos crescendo, porque a necessidade que ocasiona esse crescimento é desgraçada”, afirmou Orsini. “Todos sabemos que a questão não é se isso vai ocorrer, mas quando e onde.”

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Michael Masters, diretor da Secure Community Network, em seu escritório em Chicago. Masters disse que muitas comunidades judaicas com as quais ele falou viram o ataque em Pittsburgh a princípio como uma anomalia trágica, em vez de um sinal de novo normal Foto: Jamie Kelter Davis/ NYT

Quando Orsini foi trabalhar na federação judaica de Pittsburgh, em 2017, judeus da cidade e de outras partes vinham notando uma virada ameaçadora na retórica nacionalista, com uma hostilidade manifesta contra imigrantes e alertas codificados sobre “elites globalistas”. Mas poucos percebiam algum perigo iminente.

“Quando Brad começou a conversar com as nossas organizações, ele perguntava, ‘Vocês recebem telefonemas ameaçadores?’”, disse Jeff Finkelstein, presidente da federação de Pittsburgh. “E lhe diziam, ‘Sim’. ‘E o que vocês fazem?’. ‘Nós não fazemos nada’.”

Orsini, que não é judeu e conhecia a ameaça da violência sectária em razão dos anos que passou no esquadrão especializado em direitos civis do escritório do FBI em Pittsburgh, concebeu uma abordagem sistemática para garantir a segurança de instituições contra ataques, que ele batizou de “modelo Pittsburgh”.

Orsini iniciou o trabalho examinando de perto todas as instalações da comunidade judaica na região e recomendando melhorias na segurança, como planejamento de rotas de fuga ou instalação de vidros à prova de balas. Ele se dedicou a fortalecer relações com a polícia local e encorajar pessoas a denunciar qualquer expressão de ódio. E conduziu mais de 100 sessões de treinamento, incluindo duas na sinagoga Árvore da Vida, onde em 2017 um cético frequentador chamado Steven Weiss aprendeu os princípios de “correr, se esconder, lutar”.

O centro de comando na sede da Secure Community Network em Chicago Foto: Jamie Kelter Davis / NYT

“Nós apenas ensaiamos movimentos”, recordou-se Weiss, que era professor na época. “Qual era o sentido disso?”, pensou ele naquele momento. “Nada disso nunca vai acontecer por aqui.”

Mas em uma manhã chuvosa de sábado, um ano depois, quando Weiss estava na sinagoga e ouviu os tiros no saguão da casa de oração, ele se agachou imediatamente e se abrigou atrás de um banco. Então ele se lembrou das palavras de Orsini: “Não se esconda num lugar óbvio. Você tem de sair daí”. Ele viu uma outra porta e, enquanto o ruído dos tiros se aproximava, fugiu do recinto.

Treinamento contra atiradores ativos não é garantia contra o tipo de terror que irrompeu naquele dia. Mas Weiss acredita que isso salvou sua vida.

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Em novembro de 2018, mês seguinte ao ataque, o empresário da área da saúde e filantropo Lloyd Myers, que tinha frequentado por um período a sinagoga Árvore da Vida, reuniu algumas dezenas de congregados para uma sessão de tempestade de ideias.

“Comecei perguntando: ‘como isso pôde acontecer?’”, afirmou Myers. “Eu tinha perguntado à minha família, a rabinos, às pessoas da Federação. E todos responderam, ‘A realidade é que ninguém nos protege’.”

Dados

A empresa de tecnologia em saúde de Myers tinha se especializado em coletar dados de fonte aberta e esquadrinhá-los em busca de padrões ou sinais de ameaças. Myers imaginou se seu conhecimento e experiência poderiam ser úteis. E Orsini lhe comentou a respeito da Secure Community Network.

A abordagem epidemiológica de Myers — de “olhar para o ódio como um vírus”, conforme ele descreveu — veio à fruição na sala de reuniões repleta de telas do centro de operações da SCN.

Os analistas passam grande parte dos dias revirando o esgoto da internet, examinando atentamente posts que expõem a intimidade de judeus ou exaltam violência, uma tarefa repulsiva que alguns analistas qualificam como “caça proativa de ameaças”.

Uma parte da porta da sinagoga Beit Israel, de Colleyville, Texas, está na sede do Secure Community Network em Chicago  Foto: NYT / NYT

Existem cerca de 1,3 mil indivíduos nesses canais que os analistas acompanham com atenção especial, compartilhando constatações perturbadoras com forças policiais que, em alguns casos, levaram a prisões. Mas os analistas afirmaram que o antissemitismo anda mais descentralizado do que em anos recentes, quando os neonazistas que marcharam em Charlottesville em 2017 atraíam atenção para grupos mais organizados de extrema direita.

A supremacia branca agora se manifesta em panfletos racistas deixados nos jardins das casas, em pequenos comícios que se formam e se dissipam rapidamente e em torrentes de repugnantes expressões discriminatórias postadas em fóruns online. De certas maneiras, afirmou um analista, isso torna a coisa ainda mais perigosa, similar ao desmantelamento de células terroristas pequenas e semi-independentes.

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A rede planeja operar um posto avançado em Pittsburgh durante o julgamento do atirador, que colocará em debate a questão do réu dever ou não receber a pena de morte.

O diretor da rede, Michael Masters, formado em direito em Harvard e ex-fuzileiro naval, afirmou que muitas comunidades com as quais ele conversou a princípio consideraram o ataque em Pittsburgh uma anomalia trágica em vez do sinal de uma nova normalidade. Mas o ataque contra a sinagoga de Poway, na Califórnia, exatamente seis meses depois, cujo atirador afirmou ter o matador de Pittsburgh como inspiração, dissipou essa noção.

“Foi nesse momento que Brad e eu percebemos uma mudança”, afirmou Masters. “Mesmo que ainda tivéssemos aquela dúvida — ‘Não sei se isso acontecerá por aqui’ — se pensarmos ‘Pittsburgh, Poway. Nós não vamos escolher a hora e o lugar’.”

A necessidade por uma nova vigilância tem sido amplamente reconhecida, mas ainda há quem resista à ideia. Weiss soube disso quando deixou Pittsburgh e se juntou a uma nova congregação em Lebanon, Pensilvânia, onde ele apontou imediatamente falhas na segurança da sinagoga.

O rabino da casa de oração, Sam Yolen, afirmou que muitos membros da congregação compreenderam facilmente os alertas de Weiss — em particular os jovens, que vinham testemunhando o ódio se disseminar na internet, e os mais velhos, que viveram numa época em que o antissemitismo era presente na vida cotidiana.

Mas alguns, afirmou disse o rabino Yolen — aqueles que viraram adultos acreditando que podiam viver como judeus nos EUA protegidos em grande medida de ameaças e perigos relacionados à sua identidade — precisaram ser convencidos. “Pessoas que podem ter crescido em meio à promessa americana de vizinhanças com casas de cercas baixas”, afirmou o religioso, estão tendo de aprender que “aquilo era a exceção, não o ódio que estamos experimentando agora”.

A situação de reféns no Texas no ano passado foi um dos lembretes mais recentes desta nova normalidade. Após 11 horas de impasse na sinagoga, o rabino, que tinha passado recentemente pelo treinamento da Secure Community Network, jogou uma cadeira no criminoso, dando aos reféns chance de escapar. Essa cadeira está agora exposta em uma plataforma baixa, no centro de operações em Chicago. Ao seu lado, foi colocada uma cadeira menor, revestida de vinil desbotado, com alguns buracos — da sinagoga Árvore da Vida. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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