Guerra na Ucrânia: com desgaste e conflito entre Israel e Hamas, Kiev teme perda de apoio dos EUA

Com mais de 600 dias de guerra entre Kiev e Moscou e sinais de estagnação na contraofensiva, Zelenski já reclamou publicamente sobre atrasos na entrega de equipamentos e se preocupa que os EUA diminuam gradativamente o apoio

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Por Daniel Gateno

A mudança de foco da comunidade internacional da guerra da Ucrânia para o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas colocou uma pulga atrás da orelha do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski. Com mais de 600 dias de guerra entre Kiev e Moscou e sinais de estagnação na contraofensiva ucraniana, Zelenski já reclamou publicamente sobre atrasos na entrega de equipamentos militares e se preocupa que seu maior financiador, os Estados Unidos, diminuam gradativamente o apoio por conta das necessidades de Tel-Aviv e as negociações no Congresso americano.

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A viabilidade de um apoio financeiro e militar para Ucrânia e Israel é alvo de debate dentro da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos. Congressistas republicanos e democratas estão divididos sobre como aprovar o pacote de ajuda financeira e os políticos ainda não conseguiram chegar a nenhum acordo. O apoio dos republicanos à guerra da Ucrânia vem diminuindo nos últimos meses, com questionamentos sobre as enormes cifras já enviadas a Kiev, além de uma postura mais isolacionista de uma ala do partido, que é mais próxima do ex-presidente americano Donald Trump. O republicano forneceu declarações dúbias sobre a guerra entre Kiev e Moscou.

Já o apoio a Israel segue firme nos dois partidos americanos, mas com algumas ressalvas de uma ala mais progressista do Partido Democrata, que é minoritária, mas vocal, e questiona a resposta das Forças de Defesa de Israel (FDI) na Faixa de Gaza após a invasão do grupo terrorista Hamas do sul de Israel, que deixou mais de 1.200 mortos. Com bombardeios aéreos israelenses e incursões terrestres no enclave palestino, mais de 13 mil pessoas morreram em Gaza, segundo dados do ministério da Saúde do enclave palestino, que é controlado pelo Hamas.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, conversa com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em uma visita a Tel-Aviv, Israel  Foto: Miriam Alster/Reuters

De acordo com uma pesquisa da rede americana CBS, a maioria da população do país apoia o envio de ajuda financeira e militar para Israel. Entre os republicanos, o apoio é de 65%, enquanto 53% dos democratas aprovam a medida. Já quando a pergunta é sobre a ajuda a Kiev, o público democrata sinaliza um massivo apoio, com a aprovação de 70% dos votantes do partido, porém a maioria dos republicanos já não apoia o pacote financeiro e militar à Ucrânia, com 55% dos votantes da legenda sendo contra a medida.

“Há uma divisão política nos Estados Unidos entre quem apoia a ajuda financeira para a Ucrânia e quem apoia o fornecimento para Israel”, aponta o analista político e militar Raphael Cohen, da Rand Corporation, uma think tank americana. “Os progressistas tendem a apoiar muito a Ucrânia, mas são mais reticentes a Israel, enquanto membros do Partido Republicano estão céticos sobre Kiev, mas apoiam Israel de forma contundente”.

Sem um acordo com o Congresso para aprovar um pacote financeiro para a Ucrânia, os EUA podem ficar sem recursos para enviar dinheiro e armamentos a Kiev neste final de ano. “Sem ação congressual, nós vamos ficar sem recursos para encomendar mais armas e equipamento para a Ucrânia”, disse a diretora de orçamento da Casa Branca, Shalanda Young.

Negociação

Especialistas entrevistados pelo Estadão concordam que o impasse sobre o apoio americano a Israel e Ucrânia é mais político do que econômico, devido ao poderio de Washington, que teria totais condições de seguir apoiando Kiev e Tel-Aviv.

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“Os EUA tem totais condições de apoiar as duas frentes, a guerra da Ucrânia acaba sendo relativamente barata para os EUA se compararmos com o orçamento russo para o setor de defesa”, avalia o professor de relações internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Universidade de Harvard, Vitelio Brustolin.

O Partido Republicano apoia desde o início da guerra a luta ucraniana pela soberania de seu território, mas a posição desfavorável da legenda a ajuda militar e financeira americana a Kiev vem aumentando, principalmente desde as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos em novembro do ano passado, que deram um ligeiro controle da Câmara dos Deputados ao partido.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, segura uma bandeira americana após um discurso no Congresso do país, em Washington  Foto: Kenny Holston / NYT

“Se estivéssemos discutindo isso há 50 anos ou mesmo 30 anos atrás o apoio republicano a Ucrânia seria certo, porque seria um apoio anticomunista ou anti-Rússia, mas agora o Partido Republicano está sendo influenciado por Donald Trump, que é quase um isolacionista, e muitos congressistas do partido querem agrada-lo, dificultando a ajuda financeira para Kiev”, avalia Richard Bensel, professor de política americana da Universidade de Cornell.

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Apesar disso, a legenda está rachada e a posição sobre a Ucrânia não é unânime. Em outubro, pela primeira vez em 234 anos de história, a Câmara dos Estados Unidos apoiou uma resolução que destituiu o então presidente da Câmara Kevin McCarthy por 216 votos a 210. O republicano foi destituído por congressistas do seu próprio partido, por ter desagradado parte de sua base após aprovar um projeto de lei de financiamento de 45 dias para manter as agências federais abertas. O seu substituto, o conservador Mike Johnson foi eleito após três semanas de impasse.

No começo de novembro, a Câmara aprovou um projeto de lei que vinculava US$ 14,3 bilhões em ajuda militar dos Estados Unidos a Israel, deixando a Ucrânia de lado. A iniciativa patrocinada por Johnson cortaria fundos de um projeto de aplicação de impostos, uma parte da Lei de Redução da Inflação que é uma peça-chave da agenda do presidente dos EUA, Joe Biden. O projeto não passou pelo Senado, que é controlado pelos democratas.

O presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Mike Johnson, participa de coletiva de imprensa em Washington, Estados Unidos  Foto: Will Oliver / EFE

O partido de Biden gostaria de ter um pacote aprovado de US$111 bilhões, com fundos para Israel e Ucrânia. No Oriente Médio, os democratas querem aumentar o apoio nos setores de segurança e defesa de Israel e ajuda humanitária para os civis da Faixa de Gaza. Para a Ucrânia, o partido havia previsto o fornecimento de treinamento para soldados, equipamento e armas. O pacote incluiria também fundos adicionais para apoiar a segurança da fronteira entre os EUA e o México, incluindo mais agentes de segurança e uma maior fiscalização para reduzir a entrada de fentanil no país. Além disso, forneceria financiamento para reforçar a segurança na região Indo-Pacífico, incluindo Taiwan.

O Partido Republicano não quer que todas essas pautas sejam endereçadas em um único pacote e deseja mais do que a quantia que os democratas indicaram que iria para o reforço da fronteira com o México, além de mudanças nas políticas sobre o tema.

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Na segunda-feira, 27, Johnson afirmou em uma entrevista coletiva que estava otimista em relação a aprovação de pacotes de ajuda para Israel e Ucrânia, mas não se comprometeu com a aprovação de um mesmo projeto para os dois países, afirmando que a ajuda a Kiev deve ser acompanhada de mudanças nas políticas para a fronteira dos EUA com o México. “Israel é uma prioridade para os Estados Unidos e apoiar o nosso aliado é muito importante. A Ucrânia também é nossa prioridade, não podemos permitir que Vladimir Putin marche pela Europa e entendemos a necessidade de ajudar os ucranianos, mas também temos que trabalhar para mudar a nossa própria política de fronteira”.

Apesar disso, o Partido Republicano bloqueou na quarta-feira, 6, um projeto de lei de gastos de emergência para financiar a guerra na Ucrânia, exigindo em troca uma mudança na política das fronteiras com o México e comprometendo o esforço do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para reabastecer os cofres de guerra dos aliados americanos antes do final do ano.

“Não se engane: a votação de hoje será lembrada por muito tempo e a história julgará duramente aqueles que viraram as costas à causa da liberdade”, disse Biden na quarta-feira na Casa Branca, poucas horas antes da votação. Ele afirmou que os republicanos estavam “dispostos a literalmente dar uma joelhada na Ucrânia no campo de batalha e prejudicar a nossa segurança nacional no processo”.

Os líderes do Senado ainda tentam negociar um acordo. Republicanos e democratas tendem a dialogar melhor no Senado do que na Câmara.

O líder republicano no Senado, Mitch McConnell, participa de uma sessão legislativa em Washington, Estados Unidos  Foto: Drew Angerer/AFP

Apoios

As desavenças em relação aos pacotes de ajuda para Israel e Ucrânia ressaltam as diferenças nas relações destes países com os Estados Unidos. A parceria entre Washington e Tel-Aviv é bem mais sólida, com apoio bipartidário e colaboração em diversos setores que vão de defesa à tecnologia, além de laços culturais. Segundo dados, os EUA abrigam a maior comunidade judaica fora de Israel com mais de 7,5 milhões de pessoas.

As relações entre os dois países são reforçadas por diversas organizações relevantes como o Comitê Judaico Americano (AJC, na sigla em inglês), o Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel (AIPAC, na sigla em inglês) e na Liga Anti-Difamação (ADL, na sigla em inglês). Estas organizações contribuem no combate ao antissemitismo e auxiliam na relação entre os dois países.

No Partido Republicano, o apoio massivo a Israel ocorre mais por conta do voto do eleitorado evangélico do que pelo voto da comunidade judaica, aponta Cohen. Segundo uma pesquisa do Pew Research Center, 24% dos americanos se consideram evangélicos. “O eleitorado evangélico se identifica como pró-Israel e tende a votar mais nos republicanos, enquanto a comunidade judaica é mais dividida, principalmente a nível geracional, com eleitores mais jovens tendendo a votar mais nos democratas”.

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A congressista americana Rashida Tlaib participa de ato que pede um cessar-fogo na guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas  Foto: Shuran Huang / NYT

O analista político destaca que os democratas, apesar do tradicional apoio a Israel, também abrigam o eleitorado da comunidade muçulmana nos Estados Unidos, que conta com palestinos-americanos. A congressista democrata Rashida Tlaib foi a primeira mulher de ascendência palestina no Congresso americano.

O professor da Universidade de Cornell, Richard Benson, avalia que a Ucrânia não tem o mesmo histórico com os Estados Unidos, apesar da parceria estratégica entre os dois países após a invasão russa. “A Ucrânia não tem um apoio doméstico tão forte como Israel de grupos importantes de votantes nos EUA, é difícil até para que alguns simpatizantes americanos de Kiev vejam o país como uma democracia plena”, avalia o especialista.

Questão militar

Kiev e Tel-Aviv contam com a contribuição americana no setor militar, que é chave para a capacidade de defesa dos dois países. De acordo com dados do Instituto Kiel para a Economia Mundial, os Estados Unidos forneceram mais de US$ 75 bilhões para a Ucrânia, incluindo ajuda humanitária, financeira e militar desde o início da guerra com a Rússia, em fevereiro de 2022.

A administração de Joe Biden enviou para os ucranianos uma longa lista de arsenal militar como tanques Abrams, mísseis antiaéreos, sistemas avançados de vigilância, drones e artilharia. Washington também permitiu em agosto o envio de caças F-16 após o treinamento de pilotos.

Exército americano opera o tanque M1 Abrams, que foi fornecido para a Ucrânia  Foto: Sakis Mitrolidis/AFP

Já Israel é o país que mais recebeu ajuda financeira e militar americana desde a Segunda Guerra Mundial. Tel-Aviv recebeu US$ 263,6 bilhões entre 1946 e 2023, de acordo com dados oficiais. O país possui um dos exércitos mais poderosos do mundo.

Nesse momento, ambos necessitam da ajuda militar americana, mas de formas distintas, de acordo com Cohen, da Rand Corporation. “Os dois países precisam de sistemas de defesa aérea e artilharia, mas os israelenses têm um exército muito mais sofisticado do que o ucraniano. Os EUA debateram se iriam fornecer caças F-16 para Kiev, mas para Israel isso não precisaria ser discutido porque eles já têm esses caças. Israel também não precisa de tanques Abrams porque possui o tanque Merkava”, destaca Raphael Cohen

O sistema de defesa Domo de Ferro de Israel intercepta foguetes lançados da Faixa de Gaza  Foto: Amir Cohen/Reuters

Desde o início da guerra contra o grupo terrorista Hamas, no dia 7 de outubro, Israel recebeu munições, mísseis de defesa e duas baterias para o Domo de Ferro, sistema israelense projetado para defender o território contra mísseis de curto alcance, como os foguetes que o Hamas já disparou contra Israel desde o início do conflito. As Forças de Defesa de Israel (FDI) afirmam que o Domo de Ferro tem uma eficácia de 90%.

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Além disso, Washington enviou dois porta-aviões para a região com o intuito de “dissuadir ações hostis” contra Israel.

Eleições americanas

Os questionamentos relacionados à ajuda financeira à Ucrânia devem continuar com força durante as eleições americanas em 2024, com as pesquisas indicando uma possível volta de Donald Trump à Casa Branca. Especialistas entrevistados pelo Estadão destacam que o ex-presidente americano não tem uma posição uniforme sobre o apoio a Kiev.

“Trump é um político imprevisível e sua posição sobre o tema vai depender muito do Congresso, nada está muito definido”, opina Cohen. O analista da Rand Corporation avalia que um possível corte na ajuda financeira americana para Kiev significaria deixar a Ucrânia perder a guerra para a Rússia, o que não seria do interesse de Washington.

Republican presidential candidate and ormer President Donald Trump waves during halftime of an NCAA college football game between South Carolina and Clemson, Saturday, Nov. 25, 2023, in Columbia, S.C. (AP Photo/Artie Walker Jr.) Foto: AP / AP

Bensel, da Universidade de Cornell, não acredita em um apoio de Trump à Ucrânia caso ele seja eleito. “Acredito que o republicano cortaria a ajuda financeira a Kiev, ele nunca foi um apoiador da Otan e o lado ucraniano está sendo patrocinado pela Otan, então por suas características isolacionistas e a hostilidade conhecida contra a Otan, Trump poderia sim cortar o apoio”.

Para Brustolin, a União Europeia e os EUA não têm opção a não ser continuar apoiando a Ucrânia. “É completamente contra os interesses dos EUA perder esta guerra, seria enfraquecer a Otan e indiretamente fortalecer a China. Uma vitória de Moscou na guerra é um fortalecimento de Pequim”.

O pesquisador da Universidade de Harvard aponta que o pacote americano de ajuda para Israel e Ucrânia são inseparáveis no atual contexto geopolítico. “O Irã é parceiro da Rússia e fornece drones para Moscou atacar a Ucrânia, Teerã também financia o Hamas e a Jihad Islâmica em Gaza e tem como sua política externa a destruição de Israel. A Rússia também recebeu representantes do Hamas em Moscou, então os EUA não conseguem separar estas duas questões”.

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