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Já somos doutores em escapar de sanções americanas, diz embaixador do Irã

Prestes a deixar Brasília e retornar a Teerã, Hossein Gharibi diz que o mundo todo deve se preocupar a possibilidade da volta de Trump e cobra o governo brasileiro a estabelecer mecanismos para facilitar o comércio

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Por Felipe Frazão
Atualização:
Entrevista comHossein GharibiEmbaixador da República Islâmica do Irã em Brasília

BRASÍLIA - Depois de quatro anos, o embaixador do Irã no Brasil, Hossein Gharibi, está prestes a retornar a Teerã. Representante do regime teocrático, ele disse em entrevista ao Estadão que todo o mundo deve temer pela possibilidade de retorno do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump ao poder. E afirmou, em tom provocativo, que seu país especializou-se em contornar as milhares de sanções impostas a Teerã desde a Revolução Islâmica de 1979.

“O mundo todo deveria se preocupar com Trump, não somente o Irã. Até mesmo os EUA. A polarização será muito maior, há potencial de conflito interno entre pessoas dentro do país”, disse Gharibi, na embaixada iraniana. “Estamos vacinados. Já experimentamos Trump no poder antes em um período muito crítico. O Irã agora está à prova de pressão. Nós temos PhD em escapar de sanções. Pós-doutorado, eu diria.”

As restrições comerciais e financeiras são uma das principais barreiras ao desenvolvimento e relacionamento global do Irã. Por causa delas, Gharibi não conseguiu, por exemplo, concluir um de seus objetivos em Brasília, destravar uma encomenda de 40 aviões de carreira da Embraer. Ele reclama que a companhia brasileira não se empenhou em tentar uma saída.

O diplomata iraniano também disse que seu país não pode ser responsabilizado pelos atos terroristas de grupos aliados, como Hamas, Hezbollah e Houthis. Gharibi não nega a rivalidade comum com Israel e o apoio financeiro, político e bélico de Teerã às facções radicais, mas afirma que seu regime não tem o “controle de fato” sobre as operações.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com o presidente da República Islâmica do Irã, Ebrahim Raisi, em Joannesburgo, África do Sul, no Brics de 2023 Foto: Ricardo Stuckert

Qual a responsabilidade do Irã sobre atos de terrorismo e bombardeios promovidos por grupos aliados como Hamas, Hezbollah e os rebeldes Houthis do Iêmen, no Mar Vermelho? Há evidências de apoio político, financeiro e bélico vindo do Irã a essas facções.

Os iemenitas são um povo independente, decidem seus atos por si mesmos. A posição do governo do Iêmen é clara. Vincular as decisões e ações das Forças Armadas do Iêmen a outros países é uma forma de desviar a atenção. Outros povos na região também estão tomando suas decisões independentemente. Tentar ligar uma coisa a outra tira a atenção do principal problema que está acontecendo agora em Gaza.

O Irã vai reagir à operação militar ocidental, contra os Houthis.

Ter boas relações não significa ter o controle de fato. No Direito Internacional, quando queremos atribuir algo a um país, temos de saber se esse Estado número 1 tem o controle de fato sobre o Estado número 2. Isso não ocorre entre nós e nenhuma outra nação, como o Iêmen. Agora falam sobre o Hamas. O Hamas apoiava os rebeldes na Síria, e nós estávamos ao lado do governo de Damasco. O que isso significa? Se tivéssemos controle sobre o Hamas, diríamos “apoiem esse, e não aquele”. Isso nunca aconteceu. E também com os Houthis. Nós temos boas relações, não escondemos isso. Mas não temos controle sobre o que eles fazem, depende deles. Não sabemos o que planejam, as operações deles.

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Mas há conexão com o Irã por causa do apoio.

É fácil vincular, fazer essa conexão, mas no terreno há muitos desafios, não é fácil controlar outros povos.

O que vem após o fim da guerra, se Israel eliminar o Hamas?

Vamos supor que eles tenham sucesso e derrotem o Hamas, matem cada membro. O que vem depois? E os outros palestinos? E a questão palestina? Não é uma questão de uma pessoa, mas de milhões de pessoas dentro e fora dos territórios palestinos. É uma questão de fé e de ocupação. Como administrar isso? Algumas pessoas dizem que estamos tratando de pressionar Israel e varrê-los do mapa. Você acha que um regime com uma política oficial de apartheid pode sobreviver no mundo? O apartheid nunca teve sucesso. É o que aprendemos com a África do Sul. Precisamos olhar o principal, não os problemas laterais.

O que seria aceitável para o Irã?

Nunca antes, pelo que sei, houve um apoio tão forte aos palestinos na região. Na Jordânia, no Egito, até no Marrocos, que é um povo menos politizado. Quanto mais se mata, quanto mais se pressiona o povo palestino, mais forte será a reação. Concordamos com qualquer solução que funcione e satisfaça os palestinos. O problema é que agora eles (Israel) falam claramente, antes havia certa ambiguidade. Agora dos embaixadores em Londres ao primeiro-ministro, eles dizem abertamente que não aceitam a solução de dois Estados. Então o problema está em outro lugar, não em Teerã, em Ramala, no Cairo.

Embaixador do Irã afirma que Hamas e Teerã sempre consideraram que Israel nunca aceitaria de fato uma solução de dois Estados nos territórios paletinos, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia 

Em Gaza também não há aceitação, o Hamas não concorda com a existência de Israel.

Sim, mas era claro para eles que Israel nunca se comprometeu com o estabelecimento de um governo independente para os palestinos. Eles sabiam e nós sabíamos. Agora é dito abertamente, por todos. Antes, alguns elementos mais radicais diziam isso, agora todos falam.

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O Irã foi alvo de um atentado terrorista em Kerman, reivindicado pelo Estado Islâmico. Cerca de 100 pessoas morreram. O governo e a Guarda Revolucionária prometeram vingança. O Irã atacou com mísseis alvos no Iraque, na Síria e no Paquistão. Que mensagem o Irã envia ao mundo?

Todo país tem o dever de combater o terrorismo. O terrorismo é um flagelo. Afeta a segurança de todos os países. Mina a ordem social, mina o desenvolvimento e atinge a vida das pessoas inocentes, como aconteceu na região, especialmente, recentemente no Irã. Nossa preferência é que todos cooperem para combater terrorismo. Espero que tenhamos bons contatos entre os países da região. É possível melhorar a cooperação. Estamos trabalhando juntos para suprimir o terrorismo e garantir que todos na região vivam em segurança, sem medo do terror.

Explosão assumida pelo Estado Islâmico em Kerman, durante homenagens póstumas ao general Soleimani, ex-comandante da Guarda Revolucionária do Irã 

O sr. menciona terrorismo, mas em Erbil, no Iraque, o alvo era uma suposta base de operações do Mossad, da inteligência israelense.

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A principal força por trás do terrorismo na região é o Mossad. Não há distinção entre Mossad e outros terroristas atingidos por nossas Forças Armadas.

O sr. fala em preferir a cooperação, e de fato houve conversas para reduzir a tensão, por exemplo, com o Paquistão. Mas o ministro iraniano da Defesa, general Mohammad Ashtiani, disse que não conhecerá ‘limites’ ao defender o país com seus mísseis, de forma ‘proporcional, mas dura e decisiva’. Essa é uma ameaça, um sinal de que novos disparos serão realizados? Nesse caso, o Irã não contribui com a escalada de violência?

A mensagem do ministro Ashtiani é geral, não tem conexão direta com o que está acontecendo bilateralmente entre nós e nossos vizinhos. Chamo a atenção para as posições anunciadas por nosso Ministério das Relações Exteriores, que claramente disse que estamos trabalhando de perto com o nosso país fronteiriço, com o Paquistão, a fim de tomar providências. Os contatos estão sendo feitos e continuamos muito amigáveis no nível mais alto. Certas medidas estão a caminho e eu tenho certeza que, a partir de segunda-feira, haverá notícias muito boas de mais cooperação entre os países fronteiriços.

Combatentes Houthis, apoiados pelo Irã, manifestam-se contra operações de bombardeio realizadas por Estados Unidos e Reino Unido para conter ataques no Mar Vermelho 

Quais dificuldades o sr. encontrou para promover negócios no Brasil?

O problema é que não conseguimos encontrar um mecanismo com o governo federal. Agora, parece que gradualmente, devagar, vamos achar um meio. Ainda é difícil de encontrar uma forma de estabelecer conexões. Quando o governo se envolve, ele tem a autoridade e o poder de coordenar as coisas. Mas, quando o governo de um lado não se envolve, temos de encontrar alguém para fazer esse papel. Fica difícil. A sinalização com a reforma tributária foi muito boa. Ouvi de diversos embaixadores europeus, especialmente dos grandes parceiros do Brasil, que havia insatisfação com o sistema tributário. Para nós era a mesma coisa. Se alguém me perguntava quanto pagaria de imposto de importação para trazer ao Brasil um copo de vidro, por exemplo: a informação online era uma, mas quando se conversava com alguém do setor que efetivamente atua, descobríamos que ainda tinha mais alguns impostos em cima e que o percentual mais que dobrava. Alguns exportadores perdiam o interesse, porque não havia vantagem relativa.

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A reforma tributária vai beneficiar o comércio internacional com o Irã?

Muito. Especialmente para países como o Irã. Nós tradicionalmente importamos um punhado de itens como carne, soja, açúcar, frango e, especialmente, o milho. Para esses já temos experiência, sabemos como fazer. Mas para novos produtos, por exemplo, como equipamentos médicos, agrícolas, nós não temos informação. E precisamos ter uma fotografia clara. Por exemplo, de quanto vamos pagar para trazer romã do Irã para o mercado brasileiro. Nós temos especial interesse em importar frutas tropicais, e o Brasil é um mercado importante para kiwi, romã, maçã, que temos em abundância. No ano passado chegamos à marca de US$ 6,5 bilhões no fluxo de comércio entre Brasil e Irã. É um recorde. Mas eu considero o comércio internacional direto e indireto. Nós compramos milho da Suíça, mas eles não produzem. É o milho brasileiro. Em 2020, o volume era de US$ 1,9 bilhão e esse número sob efeito do coronavírus, da pandemia. O governo brasileiro cita oficialmente US$ 4,4 bilhões. Mas sei que não é o dado real, não engloba tudo. Temos de ter cuidado com esses números e com o comércio indireto, que passa pela Turquia, por exemplo. Precisa olhar os detalhes. Sei que houve a importação de 1,5 milhão de toneladas somente de ureia. E o dado oficial de importação do Brasil é de US$ 140 milhões. Mas nunca essa quantidade de ureia seria esse valor. Custaria muito mais, com a crise dos fertilizantes no ano passado, efeito da guerra na Ucrânia, seria mais de US$ 1 bilhão. Então, considero que a corrente de comércio foi no mínimo US$ 6,5 bilhões.

O Irã é dos principais compradores do milho brasileiro, mas planeja diversificar sua pauta de importações e quer ônibus e aviões, segundo o embaixador Hossein Gharibi 

A pauta ainda é muito baseada nas commodities agrícolas. Como os países podem diversificar?

Somos um dos principais produtores de aço do mundo e para fazer o produto precisamos de duas coisas: minério de ferro e energia. Temos o segundo, mas enfrentamos escassez do primeiro. E vocês têm minério de ferro em abundância. O Brasil é um bom mercado para produtos acabados. Podemos comprar minério de ferro e pagar com produtos acabados. Somos o país número um do mundo em reservas de gás natural e petróleo combinadas. Quando separados, certamente somos o segundo de gás natural, e talvez quarto ou quinto do mundo em reservas de petróleo. Isso significa que temos instalações petroquímicas muito boas e estamos comprando mais complexos. Estimamos que vamos alcançar a capacidade de produzir 19 milhões de toneladas, o governo planeja alcançar esse número. Isso significa mais polímeros produzidos, polietileno e outros tipos. E o Brasil é um bom mercado para esses itens. Temos uma boa produção de metanol e será ampliada no futuro. A política anunciada pelo presidente Lula de usar mais energia limpa, tem um bom mercado. Para produtos brasileiros, há um importante mercado para a indústria de transporte no Irã. Os ônibus por exemplo. Todas as prefeituras iranianas reclamam de falta de ônibus para o sistema transporte público. Estive na Marcopolo e eles produzem bons modelos para o nosso mercado. E eles não exportam ainda para o Irã, embora tenham enviado algumas amostras. Além disso há a indústria da aviação.

O senhor não conseguiu destravar uma encomenda de 40 jatos comerciais da Embraer. Por quê?

O problema é que a equipe da Embraer nem sequer tenta. Eu li uma resposta deles, na imprensa, dizendo que por causa das sanções não poderiam fazer nada. Alguém perguntou por que não comercializavam com o Irã, e a resposta da Embraer foi por causa das sanções. Desde 2017, quando Donald Trump chegou à Casa Branca, tudo foi congelado. Nós tínhamos um contrato, um acordo, mas agora eles estão aguardando até que as sanções dos Estados Unidos sejam suspensas. Há dois anos, nosso ministro de Transportes me disse que assim que a Embraer estivesse pronta poderíamos conversar sobre os aspectos financeiros da compra, sobre como pagar pelos aviões. Entendo que se eles pudessem conversar com os norte-americanos, eles poderiam conseguir algum tipo de isenção das sanções. Ao menos eles introduziriam os aviões da Embraer no mercado e começariam a ser operados pelas companhias aéreas. Seria uma forma de colocar um pé no mercado para depois expandir.

Depende mais dos EUA ou do governo brasileiro? A mudança de governo não ajudou?

Eu já tive uma conversa geral sobre o assunto com o vice-presidente Geraldo Alckmin, mas não com outras pessoas no governo. Mas sei que a Embraer tem seu próprio sistema, tem o conselho de administração, o diretor... Eu já pedi uma oportunidade para encontrar um caminho, mas eles se recusam a conversar. O acordo que tínhamos inicialmente era para 40 aviões, mas claro que quando começarem a operar no mercado iraniano... Nós temos quase uma companhia aérea em cada província no Irã. A maioria delas são empresas privadas e quando um avião for introduzido, haverá muita competição. Temos países vizinhos por raízes culturais e religiosas, como Iraque, Azerbaijão, Dubai, Doha. Temos cerca de 60 voos diários para Istambul. O mercado aéreo no Irã é grande. Se tiver um bom negócio, haverá competição para aquisição de mais aviões. O número de 40 aviões era o acordado após um teste de voo realizado pela Embraer no Irã. Estava tudo certo. E tudo foi interrompido. Assim que tiver uma oportunidade de falar sobre o assunto, faremos isso, traremos pessoas diretamente de Teerã para conversar com a Embraer. Por agora, tudo está congelado.

Outras empresas concorrentes enfrentam problemas com as sanções?

Nós temos dois contratos, um com a Boeing e um com a Airbus. No total, são cerca de 160 aviões. São contratos válidos. Seriam com a Embraer três empresas e cerca de 200 aviões. Eles conseguiram vender alguns Airbus para o Irã. A italiana ATR também, mas não se tornaram aviões muito populares, havia reclamações. Na nossa experiência, não foi algo positivo para as empresas, pelo que ouvi, porque os custos de manutenção eram caros.

O Irã queria encomendar 40 jatos para operar em linhas comerciais internas, mas o embaixador queixa-se de que a Embraer alegou dificuldades por causa das sanções sobre o país Foto: DIV

Essas fabricantes agora devem enfrentar a concorrência chinesa. O avião comercial chinês C919 poderia se adequar ao mercado iraniano?

Sim, claro. Eles já fabricam excelentes trens e carros. Não está fora de cogitação que um dia se tornem fabricantes de avião muito qualificados.

O Brasil e a Embraer deveriam prestar atenção para não perder essa oportunidade para os chineses?

Se você não conversar, nada acontece. Se você dialoga, ao menos há 50% de chances de algo acontecer. Eu já tive muitas conversas aqui, entendi o problema com a Petrobras, e eles entenderam os desafios do Irã, a respeito do petróleo cru. Eles dizem que sofrem pressão da OFAC (Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA). Para mim, não é verdade. Porque se o dinheiro procedente da venda do petróleo é usado para fins humanitários fica isento totalmente de sanções. Mas eles dizem que introduziram ações no mercado de Nova York, cerca de US$ 60 bilhões, e eles não querem ser afetados. Eles se preocupam muito com as ações em NY e eu respeito, entendo. A decisão é deles. Só introduzi uma oportunidade. Quanto mais petróleo venderem aqui, mais nós compraremos.

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Há muitos modelos de cooperação. Um seria nos entregar uma refinaria, nós reformamos a refinaria, refinamos nosso petróleo lá e vendemos em cooperação com a empresa local. E a receita vai para uma conta bancária, para assegurar aos norte-americanos que o dinheiro será usado em fins humanitários, e a partir dessa mesma conta bancária usamos o dinheiro direto pra comprar gêneros alimentícios. Seria facilmente implementado e aceito perante a regulação OFAC. Mas a Petrobras tem outras preocupações.

Temos um mercado de 89 milhões de pessoas, que precisam de comida. É um mercado muito grande e relacionado ao Iraque e ao Afeganistão. Nós fornecemos muitos produtos a eles. Nossas empresas usam os itens que compram do Brasil, produzem produtos e vendem no Iraque, no Afeganistão, no Azerbaijão, principalmente comida do dia a dia. São marcas iranianas, com insumos do Brasil. Nós poderíamos garantir ao governo fertilizantes para a próxima safra, estamos prontos a garantir nossa participação. Por exemplo, 3 milhões de toneladas poderiam ser fornecidas pelo Irã. Mas precisamos de um pequeno mecanismo para garantir que será operacional.

A saída de Jair Bolsonaro e a eleição de Lula facilitaram os negócios?

O problema é o poder que os governos têm nessa área. O governo não pode por si só ser o comprador e distribuidor. Precisamos que o governo dê o primeiro passo e provoque o setor privado, as associações de produtores a encontrar um mecanismo, para garantir que eles comprem continuamente do Irã e que possamos usar o mecanismo para comprar produtos brasileiros. Seria muito útil e evitaria gastos extras por transferências internacionais. O dinheiro pago aqui em reais para compra de ureia seria usado pelos iranianos nas nossas compras. E os próprios navios que trazem produtos do Irã seriam recarregados para levar produtos de volta. Já operamos assim, mas em pequena escala e de forma fragmentada entre várias empresas, sujeita a variações de demanda do mercado. Poderíamos estabelecer um mecanismo contínuo, muito acessível. Estamos em negociação, depois da visita de nosso vice-ministro de Agricultura, mas sei que é complicado porque ninguém aqui assume a responsabilidade. Espero que encontremos um caminho, talvez com grandes compradores. Cooperativas que são quem na ponta da linha usam fertilizantes e têm larga produção. Elas poderiam se juntar e estabelecer um fundo. Elas produzem e vendem diretamente o estoque.

Bolsonaro era um crítico ideológico do Irã. Quais foram as mudanças no relacionamento político com Lula?

Sim, mas isso durou os primeiros dois anos, 2019 e 2020. Começamos a conversar, francamente, especialmente com a mudança do chanceler (Ernesto Araújo foi substituído por Carlos França, em março de 2021). Passamos a ter um ministro menos ideológico, mais profissional e pragmático no cargo, que preocupava-se mais com os interesses do Brasil. Passamos a conversar melhor com ele. Admito que no nível político mais alto (presidentes) não havia diálogo nem contato. Mas no nível médio as discussões aconteciam. Eu conseguia me comunicar com os aliados mais próximos de Bolsonaro. Na segunda metade do governo dele foi diferente, tivemos uma relação mais normalizada, distante de considerações políticas. Passamos a ter diálogo político em mais alto nível, entre os vice-chanceleres, conseguimos ter um comitê consultivo de agricultura, a então ministra Tereza Cristina, hoje senadora, visitou o Irã. Agora com o atual governo é diferente, em alto nível. Os dois presidentes (Lula e Ebrahim Raisi) já se encontram na África do Sul, durante o Brics, e tiveram uma conversa telefônica. Os ministros das Relações Exteriores já conversaram duas ou três vezes.

O quão decisivo foi o apoio de Lula para o ingresso do Irã no Brics?

Muito importante. Entendemos que foi muito válido o apoio de Lula porque deveria haver consenso entre os membros originais do Brics para aceitar novos integrantes. O Brasil fez parte desse consenso. O Brics será uma nova plataforma para aprofundar nosso relacionamento. Haverá uma longa lista de reuniões organizadas pela Rússia neste ano, em diversos setores, como bancos, cultura, mídia, educação, turismo... Temos agora um canal permanente de comunicação, de encontro, de troca de informações e visões, de aprender uns com os outros. É muito útil. Podemos encontrar um meio de facilitar a cooperação bancária, usando as moedas nacionais. Se aprendermos a usar moedas locais, não nos preocuparemos mais com intervenções de terceiros. O pedido de adesão oficial ao banco do Brics já foi preparado. Temos a intenção de ser membro pleno. Entendemos que o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento) é uma grande oportunidade para cooperação.

Irã já tem pedido oficial pronto para fazer parte como membro pleno do New Development Bank (Novo Banco de Desenvolvimento), criado pelos países do Brics Foto: Felipe Frazão

Como o sr. avalia o impacto para o Irã da possibilidade de vitória de Donald Trump nos EUA?

Não temos preocupação. Estamos vacinados. Já experimentamos Trump no poder antes em um período muito crítico, após ele abandonar o acordo nuclear. Já vimos vários presidentes no poder em Washington, como Bush... O Irã agora está à prova de pressão. Já sabemos como lidar. A pressão não consegue mais nos prejudicar. Somos à prova de pressão. Alguém já disse, não lembro quem, que nós temos PhD em escapar de sanções. Pós-doutorado, eu diria. Não há com o que se preocupar. Somos mestres nisso. O problema da pressão é que, se você não está preparado, perde o autocontrole. Esse é o pior efeito de qualquer tipo de pressão, na vida privada ou pública. Mas se você já enfrentou isso muitas vezes antes, você rapidamente procura uma forma de reagir, de solucionar e de se adaptar à nova situação. É o nosso caso. Em Teerã, diariamente analisamos as medidas que vamos tomar.

O principal navio da frota iraniana nas águas do Rio de Janeiro após embate diplomático com os EUA Foto: Ricardo Moraes/Reuters - 27/2/2023

Mas o cenário é diferente. Com Trump e Bolsonaro no poder, por exemplo, não haveria autorização para os navios de guerra do Irã atracarem no porto do Rio, como Lula autorizou sob protesto dos EUA.

Sim, é verdade. Mas em outro episódio, o Supremo Tribunal Federal estaria lá para ajudar. O STF autorizou o abastecimento de nossos navios de carga. Não aconteceu nada. A flotilha iraniana estava há quatro meses navegando em alto mar, sem ver terra firme, sem parar. Eles somente precisavam de um lugar para atracar, um lugar bonito como o Rio. Foram visitar, fazer compras, descansar. Ficaram somente uma semana. Não houve operações secretas, nem interações secretas. Eu fui até lá, promovemos uma cerimônia no navio. A tripulação foi autorizada a desembarcar e uma agência os levou para conhecer o Cristo Redentor. Os EUA não têm controle histórico sobre a América Latina. Como se pode considerar da fronteira norte do México com o Texas o até o Polo Sul como seu quintal? E ninguém está autorizado a vir aqui, a visitar? Eles têm uma máquina de propaganda.

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O Irã não tem então nenhuma preocupação com o retorno de Trump?

Falando francamente, o mundo todo deveria se preocupar com Trump, não somente o Irã. Imagine o que pode acontecer se ele voltar ao poder. O mundo inteiro, até mesmo os EUA. A polarização será muito maior, há potencial de conflito interno entre pessoas dentro do país. As reações na Europa, na Ásia... Se Trump retomar as mesmas políticas de 2017 a 2021, então todo o mundo deveria se preocupar, não só o Irã.

O acordo nuclear pode ser renegociado?

Há conversas em andamento. Nossa posição é clara. O texto está pronto. Estamos esperando o governo do EUA sinalizar positivamente uma boa intenção de implementar o acordo. Não temos dificuldade em nos engajar nisso em breve. Já dissemos várias vezes que estamos prontos. Não é uma questão nossa, é deles. Nós estávamos no acordo, mesmo após Trump, que abandonou o acordo, mantivemos nossos compromissos. Se eles retomarem os compromissos deles, nós vamos nos manter totalmente comprometidos com nossas obrigações.

Mesmo com Trump?

Aí veremos o que temos na nossa caixa de contramedidas.

Força eleitoral de Trump deveria preocupar a todos os países, e vitória do republicano poderia levar a conflitos nos EUA, diz o embaixador Gharibi 

A Polícia Federal investiga uma tentativa do Hezbollah, que é apoiado pelo Irã, de montar uma rede no Brasil, cooptando pessoas, para atacar instalações de Israel. O Irã permitiria uma ação num país amigo?

Há pelo menos 30 anos eu ouço isso. Se alguém está fazendo algo de errado, que seja preso e processado. Não você liga para a nacionalidade, a ideologia ou a religião. Os EUA tentam assustar o governo brasileiro e o povo brasileiro, criar histórias para alertar outros povos em relação a nós. Nós temos 2 mil iranianos morando no Brasil. É a nossa comunidade. Dê-me o nome de algum que tenham desagradado ou feito algo de errado. Eles estão aqui trabalhando. O Departamento de Estado tem um relatório anual com capítulo sobre Brasil e a América Latina. Eles sempre falam sobre o Hezbollah. Se eles têm informação, que forneçam à Polícia Federal para que sejam presos.

Houve cooperação internacional nesse caso. Como o sr. acompanhou? Conversou com o governo?

Ninguém nos pediu nada. Soubemos apenas pelo noticiário, e acompanhamos as declarações oficiais. Não era nada. Um mês depois os suspeitos foram libertados. Eu vou apenas um exemplo, porque não são situações comparáveis, jamais. Você acha que se o Irã prendesse membros do Daesh (Estado Islâmico), nós os libertaríamos após um mês? Não. Nós os manteríamos presos por vinte anos. Se o caso é sério, você não pode libertá-los dessa forma, em nenhum lugar do mundo. Há uma evidência estranha. Antes de a Polícia Federal anunciar algo no Brasil, uma postagem veio do governo de Israel. Normalmente, eu aguardaria o Brasil e depois reagiria. Não prestamos atenção no que é dito por Israel. Esse cara, Netanyahu, vive falando do Irã. É sempre Irã, Irã... O Irã é um mantra para ele.

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